Neste dia 3/02 a população paulistana, nos subterrâneos da grande cidade, revoltada com o caos e o sufoco nos metrôs, gritava: “Não vai ter Copa! Não vai ter Copa!”. É compreensível: se nada funciona hoje, imagine na Copa!
Mas, mesmo sendo compreensível, boa parte da esquerda opta por não acompanhar esse sentimento e está relativamente divorciada da voz das ruas. Afinal, por que isso ocorre? Para responder é preciso, antes, caracterizar a luta contra a Copa.
O “Não vai ter Copa” se assemelha em muitos aspectos à luta contra os 20 centavos em junho de 2013, pois expressa algo muito maior do que parece. Em junho ouvíamos: “não são só 20 centavos!”, e não eram. A bandeira dos 20 centavos permitia o grito de revolta contra uma situação limite de repressão, miséria e humilhação por que passa quotidianamente a esmagadora maioria da população trabalhadora brasileira.
Desde então, cada novo ataque aos trabalhadores é sentido como a gota d’água e provoca o mesmo tipo de resposta defensiva. E a Copa não é qualquer ataque: está justificando a flexibilização de leis trabalhistas (CLT), o aumento da intensidade do trabalho, o pisoteamento da constituição via aprovação de leis autoritárias, o uso indiscriminado do exército, a remoção de populações de suas moradias, etc. Somados, esses elementos significam os piores ataques da história recente do país. A população, que não é ignorante, sabe que essas serão as heranças da Copa, junto com o aumento do desemprego. Ela sabe também que é falso o discurso oficial de que a Copa trará melhorias ao país, afinal, já estamos na boca da Copa e as tais melhorias não chegaram. Portanto, a Copa é percebida pelo proletariado como um ataque e ele, desde junho de 2013, não está disposto a engolir qualquer ataque.
Mas a luta contra a Copa tem uma grande vantagem, se comparada à dos 20 centavos: se opõe diretamente ao governo federal petista.
Como se sabe, o PT não tem o menor interesse em dar vazão à revolta das ruas, afinal, ela pode afundar os contratos milionários dos seus mantenedores. O PT foi o primeiro a desafiar a população e a dizer, como Dilma em seu twitter: “Vai ter Copa!”. Junto com ele se colocaram diversos agrupamentos supostamente de esquerda: o PCdoB — automaticamente também a UNE —, a CUT, o MST, a CMP, a Consulta Popular (e seu grupo de juventude, o Levante Popular) e outros. Todos estão deliberadamente muito longe das ruas, em seus escritórios.
Isso dá à esquerda “radical” um desenho político há muito desejado, onde a população revoltada está nas ruas relativamente “órfã”. Mesmo assim, a esquerda “radical” — talvez para não abalar suas rotinas parlamentares ou sindicais — reluta em ocupar esse espaço, teme acompanhar a população, assume posições centristas e tudo fica, em última instância, como antes, num pesadelo sem fim onde a situação da classe trabalhadora somente piora.
Um dos piores exemplos vem da “Esquerda Marxista”, estranhamente ainda dentro do PT, que afirma: “Vai ter Copa, mas para poucos”. Outro péssimo exemplo vem do PSTU, que também dá a Copa como fato consumado: “Na Copa vai ter luta!”. Importantes setores do PSOL (como a APS e o MES) estão, até agora, mais ou menos à margem do problema, mal se pronunciando e marcando pequena presença nos atos.
Outros setores do PSOL, como o Primeiro de Maio e a LSR, têm se posicionado mais à esquerda, não vendo a Copa como um fato consumado. Ao menos é o que transparece quando afirmam: “Se não tiver direitos, não vai ter Copa!”. Essa posição, mais consistente, ainda dissolve parte da revolta do proletariado, que diz em alto e bom som: “Não vai ter Copa!”
A burguesia e o governo, curiosamente — e diferentemente da esquerda centrista — não veem a copa como um fato consumado. Se isso transparece quando afirmam “Vai ter Copa!”, fica mais claro quando se nota que a Fifa tem um plano B (EUA) e um plano C (Alemanha), e fica evidente quando se olha para o armamento do aparato repressor.
A questão, colocada de outra forma, é: se nossos inimigos de classe não veem a Copa como um fato consumado, por que parte da esquerda o faz? Pensamos que a resposta é simples: ilusões no petismo e adaptação ao programa do petismo.
Após mais de 10 anos de governo petista se mantém o pesadelo, o círculo vicioso onde a esquerda não encontra caminho próprio e é aos poucos destruída. Após mais de 10 anos, a configuração política brasileira é muito parecida: não houve ainda um “realinhamento” na esquerda, pois esta ainda não teve coragem de enfrentar o PT.
Veja-se no caso de 2005, no auge do mensalão, quantas analogias com o presente: lá a defesa do PT significava a defesa de interesses particulares, burgueses e oligárquicos, opostos aos interesses do proletariado. Era preciso escolher um lado e a “esquerda” que domina os aparelhos sindicais burocráticos, a mesma que hoje defende o “Vai ter Copa!”, ficou do lado do governo. Também não havia meio-termo consistente, como hoje. Então o PSOL calou-se e setores como o PSTU, para fugir da aguda contradição, se valeram de um artifício esquerdista — defenderam “Fora todos os corruptos!” —, tirando o foco de Lula e do PT.
Lá também muita coisa se justificava pelo “medo da direita”. Temia-se que o PSDB e o PFL (hoje DEM) tentassem derrubar o governo e retornar ao poder. Hoje, a respeito das manifestações, retorna o mesmo argumento, orquestrado pelo Palácio da Alvorada. Ignora-se que já lá, em 2005, a oposição dita de direita optou por não derrubar o governo. FHC já se cansou de dizer que foi o responsável por segurar o PSDB e o PFL e impedir o pedido de impeachment. A oposição de direita temia a crise institucional que poderia se abrir, podendo afetar seriamente a ordem burguesa e seus lucros. Teria coragem ela de fazer isso hoje, quando a situação econômica do país é muito pior? A oposição de direita, hoje, para supostamente derrubar o governo petista, atira com arma de fogo nos manifestantes, como a PM de Alckmin…
Passados quase 10 anos desde o mensalão e mais de 10 anos de governos petistas, a esquerda continua a fugir das contradições e a burguesia — PT e PSDB — continua unida nas questões fundamentais para garantir a ordem do capital. Mais do que nunca, é preciso sair desse pesadelo, desse ciclo vicioso e miserável, encontrando a tangente que nos leve além.
Uma das primeiras tarefas é desequilibrar de forma consequente o governo petista. Isso acelerará o fim deste ciclo de dominação burguesa e oporá de forma decisiva as massas proletárias aos aparelhos burocratizados. Só isso pode abrir o caminho para um “realinhamento” verdadeiro, para a construção mais rápida de novas organizações no seio do proletariado. Sem dúvida, isso exige a ruptura com as posições centristas.
É preciso também ultrapassar o velho programa petista, ainda hoje o programa da maioria da esquerda, cheio de ilusões em reformas no Estado, reivindicações ao Estado, meros direitos democráticos, etc. O Estado, como nos ensina o Manifesto Comunista, não é público. A luta da esquerda precisa migrar desse âmbito abstrato, supostamente neutro, para a esfera propriamente de luta contra o capital, para o “chão da fábrica”, onde se dão as relações de produção — sobretudo os principais pólos econômicos do país. A cada dia há aí um maior e mais revoltado setor do proletariado aguardando um novo caminho.