“Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue”.
“Cálice”, Chico Buarque
Não se escuta mais o silêncio em diversas cidades do México. Manifestações se espalham por todo o país há três semanas, desde o desaparecimento de 43 jovens que viajavam à cidade de Iguala (na província de Guerrero, próxima à Cidade do México). Os jovens viajavam para protestar contra uma atividade da mulher do prefeito de Iguala, responsável, junto com seu marido, pela morte de ativistas camponeses há cerca de um ano. O prefeito e a sua mulher – José Luis Albarca e María de los Ángeles Pineda, membros do partido de “esquerda” do México, o PRD (Partido da Revolução Democrática, uma falsa opção de esquerda), eles próprios chefes do narcotráfico local – ordenaram a prisão do ônibus dos estudantes que iriam protestar. No momento da prisão houve conflito entre estudantes e forças policiais locais (cujos membros são muitas vezes indicados pelo narcotráfico). Alguns jovens foram mortos no conflito e outros, os 43, foram presos e enviados a outros locais, onde foram brutalmente executados por narcotraficantes vinculados ao casal que comanda a cidade. O acontecimento ocasionou um levante nacional, uma comoção em todo o país.
Afinal, “como beber dessa bebida amarga?” Como “tragar a dor” diante de tamanho massacre compartilhado e executado pelo Estado? Não há como permitir que se “escute o silêncio”. Com toda a razão, os mexicanos não param de se manifestar: queimaram o parlamento da província, atacaram o Congresso, bloquearam o acesso ao aeroporto nacional e continuam heroicamente protestando diariamente.
Esse “cale-se” que resulta em sangue de manifestantes não é, evidentemente, uma particularidade mexicana. Na França um manifestante ambientalista foi morto num confronto com a polícia há duas semanas. Desde então jovens realizam protestos contra a violência policial em várias regiões do país. No Chile um membro do Partido Comunista foi espancado quando chegava em sua casa.
O Brasil não fica atrás no mapa da violência. Segundo pesquisa feita pelo professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Julio Jacobo Waiselfisz, somente em 2010 foram assassinados 52.260 pessoas no país. Esse número representa o dobro das mortes ocorridas no período mais sangrento da Guerra do Iraque, considerado o conflito mais violento dos últimos anos. Em 2006, no auge do conflito, morreram 26.910 pessoas no país de Sadam Hussein.
Outra informação que demonstra o profundo nível de violência no Brasil é a taxa de homicídios por 100 mil habitantes. O índice do Brasil (27,4) é maior que o do México (22,1), que nesse momento chama a atenção do mundo devido à chacina dos estudantes. Os homicídios no Brasil representam 5 vezes os dos Estados Unidos (5,3) e são 27 vezes mais que os da China (1). O Brasil é responsável por 11% da violência mundial.
Como se vê, a violência contra os trabalhadores é generalizada. Haveria algo que pudesse indicar uma tendência de diminuição da violência em escala mundial? Dificilmente, sobretudo diante da permanência da crise econômica mundial, que provoca o acirramento objetivo das contradições de classe.
De que maneira os trabalhadores podem enfrentar tamanha violência? Seria por meio da reivindicações gerais da esquerda – “desmilitarização da polícia” ou “fim da polícia militar” (que são, em essência, quase a mesma coisa)? Essas propostas, sem dúvida, são muito limitadas, por serem reformistas ou carecerem de uma dialética real para superação do problema. Para piorar, para boa parte da população aparecem como inocentes, pueris, diante da crescente força do narcotráfico, que controla (também de forma violenta sobre a população) grande parte das periferias das grandes cidades brasileiras. Se é inegável que tráfico e Estado estão a cada dia mais vinculados em todo o mundo (também no Brasil), é inegável que para a maioria da população a mera proposta de desmilitarização ou fim da polícia parece ser dar maior espaço para o fortalecimento e crescimento das forças para-militares privadas.
O que se trata, sem dúvida, muito mais do que demandar (ainda mais da limitada forma reformista), é fazer. Fazer como a população da província de Guerrero, que se auto-organizou para realizar sua própria segurança. A população local, formada sobretudo de camponeses, assaltou as delegacias locais e se armou para se defender, ao mesmo tempo, do Estado e do narcotráfico.
No Brasil nos parece, a forma mais consistente de realizar a auto-defesa é, como ensinava Trotsky no Programa de Transição, por meio da criação de destacamentos de autodefesa nos locais de trabalho, nas grandes categorias sindicais. Esses destacamentos tem nos piquetes de greve e em todas as lutas importantes das categorias sua célula base. É para defender sua luta, sua greve, da polícia, dos fura greves sabotadores, dos bandos fascistas ou paramilitares que são criados os destacamentos de auto-defesa, eles próprios o gérmen de uma milícia popular. É só a necessidade de autodefesa que cria as milícias populares, e não um programa “ofensivo”, de ação direta, de ataque ao Estado ou ao narcotráfico (tais ações ofensivas em momento inoportuno correm o enorme risco de se descolarem das massas, que lutam inicialmente de forma apenas defensiva).
A classe trabalhadora não se mobilizará, neste momento da luta de classes, para atacar o capitalismo, não se mobilizará, imediatamente, para atacar as instituições burguesas. A classe trabalhadora é conservadora, no exato sentido de que quer, legitimamente, conservar seu nível de vida. É preciso saber partir exatamente daí. A classe trabalhadora tende a se mobilizar para se defender da superexploração imposta pelo capital. A forma clássica de mobilizar a classe trabalhadora não é por meio da luta ofensiva, mas pela defesa de seu emprego e de seu salário. É essa ação defensiva que a levará a construir organizações de luta consistentes, realmente preparadas para o confronto final e que, por isso mesmo, serão necessariamente atacadas pela burguesia. Ao longo do período de transição, a classe trabalhadora vai avançando, avançando, avançando, ao se defender dos ataques da burguesia, e nesse mesmo processo defensivo cria seus destacamentos de defesa, sua milícia e, enfim, como coroamento, seu exército.
Sua ofensiva ocorre em momentos isolados, mas decisivos: ocupação das fábricas, expropriação das fábricas e, finalmente, expropriação de todos os expropriadores. Entretanto, mesmo nesses momentos ofensivos a classe é conduzida por objetivos defensivos: no primeiro, a defesa das escalas móveis; no segundo a defesa das escalas móveis; e no terceiro, a defesa das escalas móveis. Em suma, se a classe trabalhadora conseguir construir um caminho ao socialismo o fará para defender seu emprego e seu salário, duas condições que o capitalismo é incapaz de lhe garantir: atacará o capitalismo para dele se defender. Trotsky mostra, na História da Revolução Russa, que mesmo a tomada do poder na maior e mais importante revolução que o ocidente já viu foi realizada pela luta defensiva. O ato da tomada do poder, no dia 25 de novembro de 1917, foi marcado por caráter defensivo, e não ofensivo. Tal é a dialética da luta revolucionária, que não deixa espaço para aventuras guerrilheiras pequeno-burguesas.
Quando os trabalhadores, por meio da luta de classes, tiverem construído os organismos de seu futuro Estado (controle operário da indústria, controle dos bancos e formação de um exército), terá chegado o momento decisivo do retorno da violência contra os expropriadores, o momento do ataque frontal e definitivo às instituições burguesas, o momento da violência em toda a sua magnitude, em toda a sua expressão, em toda a sua potencialidade. Não se trata, portanto, de negar a necessidade da violência revolucionária, mas de prepará-la com bases realmente sólidas, num processo transitório.
Se a genialidade criativa de Chico o fez compor “Cálice” contra a ditadura militar, é preciso reconhecer, passados quase 30 anos de democracia burguesa, que não basta enfrentar a ditadura na instância barulhenta da política, é preciso e necessário combinar esse enfrentamento político, nas ruas, com o enfrentamento da ditadura no local para o qual ela se transferiu desde a década de 1980, um local onde é o ruído ensurdecedor das máquinas o que impede que “se escute o silêncio”. Há 30 anos, o “cale-se” da ditadura encontra-se, sobretudo, no interior das fábricas. Desde o início da crise econômica em 2008, o “cale-se” voltou a se espalhar das fábricas para toda a sociedade, expressão do aprofundamento da falta de controle da burguesia sobre a classe trabalhadora. Para se defender desse “cale-se” que se generaliza, o fundamental é conseguir combinar a luta nas ruas com a luta no interior das fábricas, de onde pode brotar a única resistência capaz de superar a ordem do capital.