Há menos de dez dias do cinquentenário do Golpe Militar de 1964 é difícil olhar para esta data e o período que ela inaugura como páginas viradas da história deste país. Personagens atuantes daquela trama nunca foram verdadeiramente banidos, muito menos julgados e condenados; não foram poucos os que morreram no poder ou desfrutando de suas regalias. Hoje, se a presidente do Brasil é uma ex-guerrilheira que diz se orgulhar de seu passado de luta contra a ditadura, então que explique o Senado nas mãos de José Sarney e Renan Calheiros, assim como Defim Neto como o eterno consultor econômico dos palácios de Brasília.
50 anos depois, lá estão as mesmas figuras cadavéricas que depuseram Jango após seu discurso na Central do Brasil. A verdade é que mudaram as siglas dos partidos, os trajes e o tom dos discursos, aperfeiçoaram os recursos de comunicação, novas trucagens de marketing foram desenvolvidas, muito dinheiro foi (e é) gasto na encenação toda; mas a massa, no geral, continua sendo explorada, reprimida, vivendo das migalhas que caem do banquete do andar de cima. Nos próximos dias, como um irônico símbolo de que as coisas não mudaram, o exército volta ao Rio de Janeiro. Seu retorno pode ser lido de diversas formas, e a mais ingênua delas é a de zelar pela segurança dos trabalhadores que vivem e moram nos morros da cidade.
Tropas nas ruas
A decisão do envio de tropas foi feita após reunião entre o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o governador carioca Sérgio Cabral, após 5 bases-avançadas das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) serem incendiadas em confronto com traficantes em duas comunidades da zona norte do Rio. Os ataques deixaram uma favela sem luz, criando pânico generalizado e interrompendo o tráfego de trens para baixada fluminense, dois carros da PM e um ônibus também foram incendiados, 5 mil crianças tiveram as aulas suspensas.
“A marginalidade tenta reocupar territórios e desmoralizar nossa polícia, mas o Estado é um só”, disse o governador Sérgio Cabral ao anunciar a ajuda do Governo Federal. No entanto, Cabral omite que o maior dos ataques, em Manguinhos, começou com protesto de moradores contra uma operação policial para desocupar um prédio. Traficantes aproveitaram o tumulto e começaram a atirar. A informação é relatada pela Folha de S.Paulo e confirmada pelo site G1, mas nada além é dito. Por que os moradores protestavam? Por que ninguém da comunidade foi ouvido?
A paz “democrática” das UPPS
A primeira UPP foi implantada em 2008 como parte de um programa dos governos Cabral e Lula; em 2013 completaram-se 5 anos com 33 UPPs e a meta é chegar a 40 até o final de 2014. Os índices oficiais do governo, reforçados por intensa ação publicitária, confirmam o “sucesso” dessa política nas comunidades cariocas. No entanto, a realidade é bem mais complexa e contraditória. A começar pela escolha das regiões a receber as unidades. Desde o início foram privilegiadas as favelas da zona sul, centro e norte, deixando de lado outras regiões mais violentas e pobres do Rio; a escolha não foi acidental, tratava-se de regiões mais próximas das áreas nobres e daquelas que sofreram intervenções para a Copa do Mundo.
Outra questão é a repressão policial. Até o caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo (para não lembrar de outros casos como a chacina da Maré) o governo Cabral não aceitava as acusações de abusos na conduta dos policiais nas UPPs. O que se viu foi que não apenas havia abusos, como a prática da tortura era institucionalizada na UPP da Rocinha, conforme denúncia dos promotores do caso Amarildo e confirmada por diversas testemunhas. Asfixia com saco plástico, choque elétrico com corpo molhado, introdução de objetos nas partes íntimas e até ingestão de cera líquida eram alguns dos “castigos” aplicados aos moradores da Rocinha, dentro e fora das dependências da UPP.
A tortura foi circunscrita, pelo governo Cabral, à comunidade da Rocinha, como um desvio do capitão daquela Unidade, mas, segundo apurou o jornal Folha de S.Paulo, nas favelas “pacificadas” houve um aumento de 56% no registro de desaparecimentos, enquanto o número de crimes caiu, o que sugere fortemente que os autores dos desaparecimentos sejam policiais e não o crime organizado. Há também as abordagens e revistas, que são citadas como práticas constantes em todas as UPPs, chegando a ser descritas como um “fator negativo” porém inevitável deste tipo de política.
Como se vê a pacificação é, na verdade, controle e militarização do cotidiano dos morros cariocas. Para os trabalhadores a escolha que se coloca é viver sob o regime do tráfico ou sob aquele da polícia militar e, agora, do exército. Desde a implantação das UPPs, além da repressão e cerceamento das liberdades democráticas nos morros cariocas, qual o ganho real para os trabalhadores?
Passados 50 anos do 1o. de abril de 1964, em que os tanques saíram dos quartéis, agora é preciso recorrer a eles novamente para tentar salvar um Estado corrupto e inoperante que governa somente para a classe dominante e seus privilégios. Quando o exército desembarcar no Rio, vai sitiar os morros, selando, de certo modo, o fracasso do discurso pacificador das UPPs, mas vai também dirigir seus canhões para as ruas e avenidas à espera da massa, a protestar, contra a Copa, que cada vez mais se escancara como um símbolo de toda a podridão deste país.