Neste editorial comentamos o programa eleitoral apresentado pelo PCB (fizemos o mesmo nas últimas semanas com os programas do PSTU e do PSOL). O programa eleitoral do Partido Comunista Brasileiro chama-se “Construindo o Poder Popular, por um Brasil Socialista” (disponível aqui). O partido está representado nacionalmente pelo professor da UFRJ Mauro Iasi, secundado pela também professora universitária (da UESB) Sofia Manzano.
O documento programático de 18 páginas do PCB destaca-se pela qualidade teórica marxista em sua introdução, que analisa a economia capitalista e suas relações (já degradadas) de produção. Entretanto, nos parece que, passada essa primeira parte, o próprio caráter programático do documento se esvai. Mesmo amparado em uma análise séria da economia capitalista e suas contradições, o documento mostra-se, a nosso ver, incapaz de sintetizar tal análise em ação, ou seja, mostra-se incapaz de pensar uma dialética que conduza a classe trabalhadora da crise objetiva da sociedade capitalista à superação desta. Isso nos transpareceu nos cinco “eixos” apresentados no documento, na ordenação desses “eixos”, bem como nos “21 pontos” ao final do texto.
Adiantamos o seguinte: a nosso ver a noção de programa é fundamental pois unifica a forma e o conteúdo do processo revolucionário. Ou seja: um programa não é apenas um conjunto de pontos de princípio (ou “eixos”), ele é, muito mais, o cuidado extremo (quase artístico) na ordenação e disposição desses pontos de princípio, visando conduzir o conjunto da classe trabalhadora à tomada do poder. Como nos ensina Trotsky no Programa de Transição, é preciso saber fazer a ponte entre o “programa mínimo”, que se baseia na consciência atual do trabalhador médio, e o “programa máximo”, a tomada do poder. É essa ponte – a construção da dualidade de poderes – que nos parece faltar no programa do PCB. Seria essa ausência um mero deslize? Seria resultado das opções teóricas do PCB (Antonio Gramsci e George Lukacs)? Ou seria ela proposital, para esconder algo pouco defensável? Vejamos.
O programa defendido por Mauro Iasi tem por “primeiro eixo” “um programa anticapitalista para desmercantilizar a vida”. Ele próprio explica o que é anticapitalismo: “é a convicta afirmação de que a saúde não é, ou não pode ser, mercadoria, que a educação não é mercadoria, que a moradia não é mercadoria, que a cultura não é mercadoria, que transporte não é mercadoria, em resumo, que nada que seja essencial à vida pode ser transformado em mercadoria”.
Todos esses diversos elementos da vida humana – saúde, educação, moradia, cultura, transporte, etc. – tornaram-se mercadoria, segundo o programa do PCB, para que a burguesia tenha uma hegemonia social: “Seu domínio precisa se combinar com formas de hegemonia para que a classe burguesa seja mais que dominante, mas também dirigente da sociedade”.
Caberia portanto, em primeiro lugar – como “primeiro eixo” –, combater a hegemonia, ou “mercantilização”, de todos os aspectos da vida, pois elas fazem “com que a ordem capitalista seja muito poderosa e enraizada na sociedade e nas pessoas, mesmo no meio da classe trabalhadora”. E segue: “Por isso a luta contra a mercantilização da vida tem que se expressar programática e praticamente contra o modo de vida próprio da ordem burguesa, contra seus valores, sua ideologia e sua cultura, afirmando um novo modo de vida, o que implica no desenvolvimento de novos valores, novas formas de ser e de uma nova forma de consciência social”.
Trata-se, como pode-se observar, de variação do programa “gramsciano” (do Gramsci dos Cadernos do Cárcere), o qual sobrevaloriza ou parte (enquanto primeiro eixo) da disputa na superestrutura da sociedade capitalista (disputa na cultura, vida, valores, ideologia, etc). Ou seja, trata-se do programa que não parte da estrutura capitalista, da relação propriamente entre trabalho e capital em torno da apropriação da mais-valia.
O “segundo eixo” – chamado “A necessidade e urgência da alternativa socialista para garantir a vida” –, em vez de apontar reivindicações centrais para a classe trabalhadora, avança para o que deve ser feito após a realização da revolução, ou seja, para o programa máximo: “Em um primeiro momento, deverão ser transformados em meios sociais de produção o solo e o subsolo, incluindo todas as riquezas naturais que são a base sobre a qual é possível a garantia da vida (…)”. No parágrafo seguinte: “Em seguida, deve-se afirmar que algumas atividades, bens e serviços essenciais para a garantia da produção social devem assumir também a forma de propriedade social (…)”. E poucos parágrafos adiante: “É fundamental que se busque superar a divisão entre trabalho manual e intelectual pela socialização da educação e do conhecimento (…)”.
O último parágrafo desse eixo termina falando que isso tudo, anteriormente descrito, é a “transição socialista”. Num jargão abstrato e humanista tipicamente lukacsiano, termina-se o eixo de forma utópica: “O principal produto da transição é a criação das condições nas quais se possa germinar um novo tipo de sociabilidade e um ser social emancipado, que será o sujeito da construção de uma nova sociedade, sem classes e sem Estado: o comunismo”. A transição ao socialismo no programa do PCB não é – como era para Marx, Lenin e Trotsky – a transição até a tomada do poder pelo proletariado, mas, para o PCB, a transição é que se dá após a tomada do poder, ou seja, a transição do socialismo para o comunismo. Ainda assim, permanecem as questões: como tomar o poder imediatamente? Como partir da atual consciência do proletariado?
Eis que entramos então no terceiro eixo: “a construção do poder popular”. Corretamente este afirma que “só é possível contrapor o poder com poder”, ou seja, que a “única maneira de contrapor o poder daqueles que querem manter as formas de propriedade atuais e as relações sociais de produção a elas associadas é constituir um poder capaz de enfrentá-los com força para derrotá-los, neutralizando ou destruindo seus recursos de poder (…), [um poder] capaz de transformar os trabalhadores em classe hegemônica, dirigente e protagonista de uma alternativa de sociedade contra a ordem do capital”.
Defende o PCB que para que a classe trabalhadora seja “hegemônica” ela deve constituir um “Bloco Revolucionário do Proletariado”, um bloco amplo, centralizado por essa classe, mas que abarque também “setores não propriamente proletários, como é o caso dos pequenos camponeses e dos setores médios empobrecidos, assim como segmentos das massas urbanas que não se colocam em luta pela dimensão do trabalho, mas por demandas e opressões específicas”.
Concordamos que é necessária a criação de um bloco amplo centralizado pelo proletariado (como foram os Conselhos, Sovietes, na Rússia Revolucionária de 1917 a 1923), mas a questão ainda é: como criá-lo? De onde se deve partir para criá-lo? O documento, estranhamente, para criar um bloco com centralidade no proletariado, secundariza as formas de organização atuais e imediatas do proletariado: “O Poder Popular não pode ser confundido com um conjunto de instituições, como conselhos, assembleias, associações ou qualquer outro organismo ou organização próprios da vida dos trabalhadores, ainda que estes sejam importantes e cumpram funções na luta de classes. O Poder Popular deve constituir-se como forma de dar unidade a esta diversidade das lutas sindicais, sociais e outras, como expressão política de uma alternativa de poder dos trabalhadores contra o Estado Burguês”.
Na verdade, no programa eleitoral de Mauro Iasi, o Poder Popular coincide com os Sovietes, ou conselhos, a forma acabada da dualidade de poderes nacional. Entretanto, frisamos, até aqui (pág. 14) ainda não foi apresentada, concretamente, nenhuma reivindicação estrutural – ou seja, que parta diretamente da relação entre capital e trabalho – para que a classe trabalhadora possa organizar-se em poder popular e centralizar os demais setores oprimidos. Pelo contrário, até agora foram apresentadas apenas formas de luta superestruturais, de disputa da hegemonia capitalista (nos âmbitos da vida, cultura, moral, valores, ideologias, etc.), formas de luta, portanto, que não têm necessariamente centralidade no proletariado. Como formar um Bloco Revolucionário do Proletariado se se luta com reivindicações abstratas que não têm necessariamente centralidade no proletariado?
Após apresentar a forma organizativa suprema, os conselhos ou Poder Popular, surge o quarto eixo, que trata, finalmente, das condições de vida da classe trabalhadora: “Quarto eixo: garantir e avançar os direitos da classe trabalhadora”. Entretanto, novamente, o texto secundariza as questões mínimas e imediatas da classe trabalhadora: “o PCB afirma seu compromisso com os direitos dos trabalhadores, começando por aqueles ligados ao mundo do trabalho, no entanto, é necessário também neste campo ir muito além”. O que é esse “muito além” tão importante, que ultrapassa o “mundo do trabalho”? O seguinte: “A intransigente defesa dos direitos humanos”, que “aponta para a superação das formas econômicas, sociais e culturais próprias da ordem burguesa”, visando a “verdadeira emancipação humana”. Ou seja, o texto, para ir além, retorna ao idealismo e à abstração pequeno-burguesa, e assim fecha-se o curto eixo que, supostamente, trataria das reivindicações da classe trabalhadora.
O quinto eixo – “o papel do Brasil para um mundo sem guerras imperialistas e sem opressão” – supera todos os demais em utopia e idealismo; trata do que será feito em política internacional após a tomada do poder, ou seja, após a vitória do Poder Popular.
O tempo verbal registra bem o caráter utópico: “No governo do Poder Popular (…) será abandonada a estratégia principal do estado burguês brasileiro”; “o Brasil se empenhará na criação de um polo de nações e povos que lutam contra o imperialismo”; “Serão prioritárias a luta pela desativação da IV Frota e das bases militares na Colômbia”; “o governo do Poder Popular promoverá um Encontro Latino-Americano contra o Imperialismo”; “estimulará uma luta continental contra a mafiosa Sociedade Interamericana de Imprensa”; “marcará seu lugar na arena internacional na luta intransigente contra o fascismo”, etc.
Os 21 pontos ao final vêm apenas concretizar essa abstração, confusão programática e caráter utópico, idealista e pequeno-burguês, onde a própria forma organizativa se torna, estranhamente, uma reivindicação.
Na verdade, do ponto de vista marxista, a dualidade de poderes – o Poder Popular –, para surgir, exige centralidade em reivindicações com caráter transitório, isto é, reivindicações que tenham a potencialidade de conduzir o proletariado, desde a sua situação atual, até a conquista do poder; reivindicações elementares e imediatas, pela mera manutenção dos salários e empregos. O capital é incapaz de manter as condições de vida atuais da classe trabalhadora.
É em torno da quantidade de salário e do tempo de trabalho que se define a mais-valia, o alimento do capital, a condição para a reprodução e acumulação do capital. É portanto aí que está o ponto nodal da luta de classes, e não nas lutas abstratas das reivindicações “anticapitalistas” do “primeiro eixo” do programa do PCB.
Para construir a dualidade de poder, portanto, é necessário que o processo de luta da classe trabalhadora pela manutenção dos seus salários e empregos (uma luta aparentemente conservadora) avance para greves, para ocupações de fábricas, construindo comitês de greve; é necessário que estes comitês se transformem em organismos de caráter permanente, como comitês de fábrica, e que comitês de diferentes locais se unam construindo organismos de controle operário, atingindo, assim, uma dualidade de poder nas escalas regional e setorial, preparando as condições para construir os conselhos ou sovietes, o mais alto nível da dualidade de poder, que abrange o país todo, momento no qual os dois Estados, o burguês e o operário, terão seu enfrentamento decisivo. Nesse processo a luta deve transbordar para a esfera da circulação de mercadorias, centralizando as demais classes oprimidas. Ou seja, o Poder Dual, ou sua forma simplificada, o Poder Popular, é um processo que se inicia com a disputa básica (e aparentemente conservadora) pela manutenção de empregos e salários dentro da esfera da produção, com as primeiras ocupações de fábrica.
Esse movimento geral programático, já contido de forma abstrata no movimento geral expositivo de O Capital de Marx, foi realizado pela Revolução Russa de 1917 sob direção do partido bolchevique, e depois sintetizado ao longo dos 4 primeiros Congressos da III Internacional, assim como em O Programa de Transição de Trotsky.
Uma vez este programa já tendo sido historicamente realizado pela classe trabalhadora, determinado e sintetizado teoricamente por Lenin e Trotsky, nos perguntamos: a quem interessa retornar a um programa abstrato, como o apresentado pelo PCB para as eleições? O que, de fato, podem esconder essas abstrações, essa não centralidade no proletariado, por exemplo?
Em debate na TV globo (disponível aqui), Mauro Iasi, talvez por pressão, apresentou esse Poder Popular do PCB de forma mais determinada, menos abstrata do que no texto. Por volta dos 18 min da entrevista, pergunta o apresentador a Mauro Iasi como funcionaria o tal “Poder Popular”. A o que ele responde: “por eleição direta nos locais de trabalho, moradia, em assembleias locais, regionais e nacional, que tenham a construção de uma proposta de ação política de governo”. Cortou-lhe rapidamente o apresentador: “Mas para onde iria essa proposta?”. Mauro Iasi responde: “essa proposta vai para o Congresso, mas a diferença é que ao construir isso de forma participativa o governo se fortalece para negociar com o congresso, e não fica refém dessa velha política”.
Ou seja, aqui, o Poder Popular, aparentemente uma dualidade de poder, torna-se na prática uma Frente Popular, uma forma de governo onde um partido da classe trabalhadora assume o executivo do Estado burguês, visando salvar o próprio regime burguês desmoralizado, como ocorreu na Espanha e França na década de 1930, e no Chile no começo da década de 1970.
Será isso que esconde a abstração chamada “Poder Popular” do PCB, mesclada com concepções utópicas sobre a sociedade comunista do futuro?