Lula agora está totalmente nas mãos do juiz federal de Curitiba, Sérgio Moro. As chances de Lula escapar são muito pequenas. Caso condenado em primeira instância, sua defesa recorrerá à segunda instância. Todavia, isso tende a ser em vão, pois a segunda instância, no caso, é o Tribunal Federal Regional de Porto Alegre, que até o momento confirmou 96% das decisões de Moro a respeito da Lava-Jato.
O que significará o possível ato futuro de Moro, a condenação de Lula? Não cabe especular. Se o ato será ilegal, ainda não é possível dizê-lo. Caberá avaliar as provas a serem apresentadas pelo Ministério Público Federal, bem como os argumentos da defesa de Lula. Sobre o que cabe dizer, realmente, é sobre a legalidade do processo até aqui.
Foi correto Moro aceitar as denúncias do MPF contra Lula (e os demais)? Não eram essas denúncias “sem provas, mas com convicções”? Na verdade, muitos repetem essa história do “sem provas, mas com convicções” e nem se dão ao trabalho de verificar o que foi dito pelo promotor Roberson Pozzobon. O que ele afirmou, ao tratar da acusação de ocultação de patrimônio (Tríplex), foi: “Em se tratando de lavagem de dinheiro, não teremos aqui provas cabais de que Lula é o efetivo proprietário no papel do apartamento”. Pronto, bastou ele dizer isso para os defensores de Lula afirmarem que o MPF não possuía prova sobre nada! Na verdade, a frase de Pozzobon foi descontextualizada para uso político. Ora, nada mais óbvio do que afirmar que, num caso de ocultação de patrimônio, aquele que oculta o patrimônio não aparece, no papel, como proprietário. É da natureza e da essência desse crime buscar ocultar a prova cabal sobre a propriedade real. A frase de Pozzobon talvez tenha pecado por ser óbvia demais, quase inocente, num momento em que a política nacional não o permite.
Ora, se não há prova cabal a respeito desse crime, há o que? Há indícios, obviamente (e muitos!). Claro, a julgar pela forma como a Lava-Jato tem atuado, dando ponto com nó, é possível que haja muito mais do que indícios. Os promotores têm atuado junto com Moro (e com a PF). O mais provável é que haja novos elementos da acusação, mais complexos, a serem apresentados nessa nova fase. Essa tática, de apresentar as coisas aos poucos, tem sido usada para quebrar e enredar em contradições a defesa de Lula e demais. Mas, independentemente disso, a questão que deve ser feita neste momento é: cabe a um juiz aceitar uma denúncia do Ministério Público com base em indícios? Moro respondeu essa questão, no despacho sobre a aceitação da denúncia, da seguinte forma: “A aceitação da denúncia não significa que os acusados sejam culpados – isso só será definido na instrução do processo, fase em que são produzidas provas e os denunciados apresentam defesa”. Moro, nesse quesito, tem razão, pois é papel do promotor denunciar se houver indícios. É claro, o promotor não é plenipotenciário: em caso de má-fé ou de dolo na promoção da denúncia, ele está sujeito a responder na esfera civil, criminal ou administrativa.
Cabe perguntar, então, se há indícios contra Lula. Ora, essa pergunta mal precisa ser respondida. Apenas lembremos, como escreveram recentemente companheiros do Território Livre, que “a denúncia tem 149 páginas, onde descreve-se com exatidão o passo a passo de uma estrutura criminosa, detalhando contratos, reuniões, datas, nomes, volumes de propinas pagas e depoimentos. O documento contém quase 300 anexos, com mensagens de e-mails e de textos de celular, notas bancárias, notas fiscais, etc. Além disso, o documento apresenta 28 testemunhas e sugere ao juiz convocá-las”. Há indícios de sobra, dado que Lula é citado por vários delatores cujos crimes já foram comprovados, os quais foram inclusive condenados, bem como tais delações, envolvendo o ex-presidente, confirmam-se com provas utilizadas para se prender outros membros do PT, como José Dirceu e os últimos três tesoureiros do partido. Lula não está sendo acusado de formação de quadrilha (que seria propriamente a essência de seu crime), pois sua possível quadrilha envolve políticos com foro privilegiado, portanto, tal investigação não está correndo no MPF, mas no STF. Aos promotores coube apenas denunciar Lula (e os demais) por crimes que não envolvem políticos com foro privilegiado, os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção (que se vinculam à formação de quadrilha), para os quais também há indícios de sobra.
Até aqui, portanto, tudo está, em linhas gerais, dentro da legalidade possível, num processo tão polêmico e sob pressão permanente. É preciso, como falamos, aguardar ainda a instrução do processo e a sentença para se ter um julgamento final sobre sua legitimidade.
Ora, por que, então, parte da esquerda se negou, até agora, a defender a prisão de Lula, quando é evidente que ele é um político corrupto burguês?
Não consideramos o PT um partido de “esquerda” (nem o PCdoB). Quando usamos o termo “esquerda”, fazemos referência ampla à oposição de esquerda ao PT: o PSOL, PSTU, PCB, PCO (e outros grupos não organizados na forma de partido político legal).
De todos esses grupos, apenas o PSTU está defendendo a prisão de Lula, muito corretamente. Os demais se valem de diversos subterfúgios políticos para não fazê-lo. O primeiro e mais frágil, quase primário, é o que defende que apenas a classe trabalhadora poderia julgar Lula e condená-lo. Esse argumento sustenta que Lula está sendo julgado pela “direita tradicional reacionária”, que não teria legitimidade para tanto, e isso seria parte de uma “onda conservadora” que se avoluma na “sociedade” brasileira . Os que defendem tais ideias necessariamente têm de concluir que o PT é relativamente de esquerda (diante da “direita tradicional”). De súbito, os que defendem tais posições são novamente jogados no esquemão que sempre sustentou o PT: a lógica pobre do “menos pior”.
A justiça burguesa – argumenta essa “esquerda” – não tem legitimidade para julgar Lula. Todavia, na ausência de um poder paralelo ao oficial burguês, um poder da classe trabalhadora, a única legalidade que existe, objetivamente, é a justiça burguesa. Se não for essa justiça a julgar Lula, nenhuma outra será. Esse argumento da “esquerda” – mostram bem os companheiros do PSTU – serve apenas para não defender a condenação de Lula, e nada mais. Aliás, esses mesmos grupos que vacilam diante do líder máximo do PT são os primeiros a defender a prisão dos políticos burgueses de oposição ao PT. Ou algum desses grupos é contra defender a necessária (e correta) prisão de Eduardo Cunha? Essa “esquerda” é seletiva – na exata medida em que sempre protege politicamente Lula e o PT. De tão acostumada e acomodada que está, em seus vários anos de tranquilidade política, essa “esquerda” não sabe mais ver seu futuro numa realidade sem PT e Lula.
O segundo argumento é o de que Moro e o MPF são agentes do imperialismo ianque, que quer acabar com a política nacionalista-burguesa do PT e se apoderar das riquezas nacionais. Se o argumento acima trabalhava com a lógica vazia de “direita x esquerda”, este segundo argumento, sobre o “imperialismo”, trabalha, por sua vez, com a velha lógica nacionalista herdada do stalinismo, que foi decisiva para enterrar a revolução socialista nos principais países da América Latina. Não à toa, os neo-stalinistas de hoje acreditam que o Brasil é um país atrasado, colonial ou semi-colonial, no qual deve-se valorizar tarefas burguesas “não resolvidas”, nacional-democráticas, sempre postergando as reivindicações transitórias-socialistas.
Assim, defendem que estaria se passando uma grande conspiração do capital internacional, articulado sobretudo pelos EUA, para acabar com Lula e o PT e pilhar mais facilmente as riquezas nacionais. Ora, esse argumento não explica como Lula era, até ontem, chamado de “o cara” pelos presidentes das potências mundiais, a começar por Obama. Lula nunca teve um projeto nacional-desenvolvimentista burguês (até porque esse projeto nunca teve grande fôlego em nosso país). O projeto de Lula e do PT no poder sempre foi de submissão completa ao grande capital internacional. As “campeãs nacionais”, as empresas que Lula insuflou nos anos de governo – as empreiteiras, Odebrecht, OAS, Mendes Junior, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, as empresas de Eike Batista, as gigantes da comunicação, como a Oi, as do ramo de alimentação e bebidas, como a JBS e a Ambev, o agronegócio, etc. – todas essas gigantescas empresas capitalistas, que atuam para além do Brasil, e que foram alimentadas com dinheiro fácil (e suspeito) do BNDES e fundos de pensão, às custas da população trabalhadora brasileira, todas essas grandes empresas têm seus valores de mercado negociados na bolsa de valores aqui e fora, sendo totalmente abertas ao grande capital. São empresas absolutamente integradas ao grande capital. No momento de crise aguda recente, após 2008, grande parte do capital internacional migrou para o Brasil (e para os BRICS), em busca de valorização, e a encontrou justamente nessas empresas. Por isso, graças ao grande capital internacional, o final do segundo mandato de Lula foi o dos anos de ouro do lulismo.
Não se deve, de forma alguma, confiar um milímetro nas instituições burguesas. A classe trabalhadora não deve confiar em Moro, nem na Polícia Federal, nem no MPF, nem em nenhuma instituição burguesa. A classe deve criar, na luta, seus próprios organismos de poder.
Todavia, não se deve (nem se pode) ignorar que vivemos sob um regime político democrático-burguês. A democracia burguesa, ensinava Marx, é a melhor forma de regime para a classe trabalhadora dentro do capitalismo (pois é a que mais lhe permite organizar-se politicamente). A democracia burguesa é o regime em que, no máximo possível, todas as frações burguesas podem se representar no Estado, com relativa igualdade. Ela pressupõe, portanto, instituições que impõem uma relativa igualdade e que, para isso, têm de ter relativa autonomia. Acontece que essas instituições burguesas – como todas as instituições estatais no Brasil – são em grande medida compostas por elementos advindos do proletariado (ou de uma “classe média”, que é também, em geral, proletária, embora mais bem remunerada), dado que não há outra classe numerosa no Brasil. Como comprovam todas as estatísticas, desde o aprofundamento da crise econômica no Brasil (desde 2013, sobretudo), o proletariado, inclusive a chamada “classe média”, tem perdido renda ano a ano. Isso provoca um descontentamento legítimo. Em condições de democracia-burguesa, onde há relativa autonomia das instituições, com algumas delas bastante coorporativistas, é normal e necessário que haja um reverberamento do descontentamento popular nas instituições. Aliás, é por isso que, em geral, a burguesia dissolve as instituições democrático-burguesas quando entra num período agudo da luta de classes. Ela dissolve o parlamento, pois pode ficar muito sujeito às pressões populares e ela dissolve muitas vezes o próprio exército, que também é formado por proletários, por não confiar totalmente na base deste (e em seu lugar forma milícias armadas, bandos fascistas, com outras classes, como a pequena-burguesia ou o lumpemproletariado). Essa é a análise clássica de Marx no 18 de Brumário de Luis Bonaparte, onde registrou a transição de um regime democrático-burguês para um regime autoritário, ditatorial.
Enfim, o fato é que o mais provável é que esteja se passando hoje no Brasil uma forte pressão popular sobre as instituições democrático-burguesas. Note-se que os principais partidos do Congresso, apesar de terem sido base do PT até o final de 2015, foram forçados, pelo descontentamento popular, a votar pelo impeachment de Dilma. O mesmo pode se dar em parte da estrutura jurídica estatal, como o MPF, por exemplo. Note-se que mesmo após um ano e meio de operação Lava-Jato – iniciada em março de 2014 – os principais setores burgueses nacionais ainda eram contra o impeachment da Dilma e o cerco total ao PT. Os interesses entre esse corpo estatal e a grande burguesia eram diferentes.
Tudo isso, considerado acima, não faz dos promotores ou do Juiz Sério Moro menos de “direita”, de acordo com o que dizem sobre si mesmos ou como se localizam no espectro político-partidário brasileiro. Mas, para além do que dizem de si mesmos – e a despeito de darem azo ao crescimento de relativos, mas pequenos, grupos de extrema-direita –, é preciso pensar para que servem politicamente tais figuras numa conjuntura com contradições gigantescas, que ultrapassam em muitos graus as meras vontades e concepções dos indivíduos.
O fato é que a desmontagem do projeto de poder do PT – projeto a serviço de uma forma de valorização de capital com base no uso forte do Estado como alavanca de acumulação –, essa desmontagem neutraliza um caminho de catástrofe iminente. Essa forma de acumulação vinculada ao PT, marcada desde o final do primeiro mandato de Lula, mas insuflada no segundo, não era lastreada na realidade econômica do país. Era mero ilusionismo financeiro e transferência da crise econômica mundial para cá, com sua dimensão global e suas consequências catastróficas. A mera manutenção dessa forma de acumulação, conduzida de modo aventureiro, levaria o conjunto da classe burguesa (e a própria classe trabalhadora) para o buraco. Todavia, a burguesia não conseguiria, objetivamente, retomar as rédeas minimamente necessárias da economia sem tirar o grupo petista do poder. A manutenção do grupo petista (e demais partidos, associados) no poder, com sua estrutura e hierarquia vinculadas à própria forma específica de acumulação de capital, inviabilizava, em última instância, a mínima racionalidade burguesa sobre a condução da crise econômica nacional. Esse é um aspecto positivo da saída da Dilma e, agora, da possível prisão de Lula, na medida em que impede um caminho de catástrofe conjunta para a burguesia e a classe trabalhadora (ou seja, uma crise ainda mais grave, que em pouco se manifestaria caso Dilma tivesse se mantido no poder, com falta séria de liquidez financeira e, em seguida, contração produtiva ainda mais profunda).
O segundo elemento positivo da quebra do projeto do PT é o enfraquecimento da sua burocracia sindical e demais braços pelegos associados. Há tempos esse setor serve apenas para conter, de forma mafiosa, a classe trabalhadora, e sobretudo a classe operária do ABC e da grande São Paulo, a vanguarda do proletariado, que aliás, está revoltada contra seus sindicatos e quer a prisão de Lula. O enfraquecimento material dessa enorme burocracia favorecerá a luta autônoma e independente da classe trabalhadora, abrindo uma nova conjuntura para reorganização da esquerda revolucionária, sem esse peso morto que significou por décadas o PT.
Por fim, um terceiro elemento positivo (similar ao segundo) é que, sem Lula, a burguesia perde hoje aquele que seria o principal líder nacional para conter as massas, caso haja um ascenso proletário. Lula é ainda uma forte figura nacional. Nas pesquisas eleitorais aparece à frente de Aécio e Marina. Lula tem ainda grande popularidade, sobretudo nos setores mais pobres da população, que se iludiram com as possibilidade de inserção no mercado via consumo facilitado. A queda e prisão de Lula aprofundam a confusão política da classe burguesa, gerando indefinições quanto ao seu futuro e mais divisões entre suas frações. A paralisia da classe burguesa é um elemento favorável à classe trabalhadora.
É por tudo isso que os revolucionários não devem temer a prisão de Lula, mas defendê-la taticamente. Se ela se realizar, tende a trazer condições mais favoráveis para a luta da classe trabalhadora na correlação de forças com o capital. O próximo momento histórico, em que se começa a virar a página de Lula e do PT, tende a ser marcado cada vez mais pela entrada da classe trabalhadora em cena. Nada está dado, mas a conjuntura se abre para a luta de classes, dentro da qual novas e grandiosas possibilidades surgirão para a classe trabalhadora. Haverá risco, mas nada de grande se fez sem risco.