Mal foi eleito, Jair Bolsonaro já desapareceu. Esfumaçou.
Na realidade, o processo de desvanecimento começou no início de 2018, quando ainda era uma ideia lutando para ser. Foi aí que finalmente Paulo Guedes — após a desistência de Luciano Huck — aceitou ser “guru” econômico do ex-capitão. “Não entendo de economia, pergunta lá no Posto Ipiranga, no Paulo Guedes, tá ok?”, repetia à exaustão o candidato.
Sabe-se que Paulo Guedes em nada se assemelha à imagem que Bolsonaro ostentava em searas econômicas… E agora, inacreditavelmente, o rebento do cassino financeiro – cujo banco BTG Pactual cresceu e prosperou, com André Esteves, graças ao PT; cujo nariz está metido em esquemas espúrios com verbas de fundos de pensão – terá um Super-ministério da Economia, concentrando poderes antes inimagináveis (Fazenda; Planejamento, Orçamento e Gestão; e Desenvolvimento, Indústria e Comércio exterior). Bolsonaro se apequenou ante outro poderoso no Executivo.
Mas o novo capítulo na semana que passou apequenou todo o apequenamento até então visto. Sérgio Moro na regência de outro super-super-ministério, fundindo Justiça com Segurança Pública, COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, antes no ministério da Fazenda) e CGU (Controladoria Geral da União). Moro é o sujeito que, de acordo com as pesquisas, venceria até mesmo Lula numa disputa presidencial; sobrepuja Bolsonaro com folga no quesito ídolo nacional. Lembremos que há um ano Bolsonaro aproximou-se de Moro num aeroporto, qual criança inquieta, tiete, visando a registrar em vídeo uma possível recepção calorosa do juiz… e foi esnobado publica e vergonhosamente.
O Moro superministro requisitou a COAF, deixando claro que quer imprimir em sua gestão sobretudo a digital de combate à corrupção. Quer dar um impulso novo à Lava-Jato. Todavia, ganhou de presente também a CGU, o que é no mínimo curioso. A função desse órgão é realizar uma espécie de policiamento administrativo no próprio governo. É um órgão para esquadrinhar e inspecionar inclusive o poder Executivo. Pela primeira vez desde que foi criada (em 2003), a CGU não estará mais vinculada diretamente à Presidência, mas a um ministro superpoderoso externo a ela.
Parece-nos que, mesmo após as voltas eleitorais do mundo, é lícito questionar: quem mandará nessa relação? Quem sombreará quem? Ou melhor: quem será o presidente?
Sigamos no caso de Moro. O ex-juiz da Lava-Jato pode ser acusado de ambição (almejar o supremo), de fazer jogo político, de interferir na eleição etc., mas, ao menos até agora, não pode ser acusado de querer acabar com Estado Democrático de Direito (regime democrático-burguês), na linha de antigas e repudiáveis declarações de Bolsonaro. Não há quaisquer declarações de Moro nesse sentido, e, a rigor, nem mesmo ações.
Os únicos a fazer acusações nesse sentido hoje são os petistas, que vão à falência fragorosamente graças às suas próprias contradições. Mas mesmo Haddad foi obrigado a elogiar Moro na reta final da eleição, por seu “bom trabalho”; e os elementos que os petistas usam em discurso contra Moro advêm de políticas aprovadas pelos próprios petistas – uso de delações premiadas, condenação em segunda instância, lei da ficha limpa etc. Não dá para dar crédito para os petistas e sua narrativa. Lula, por exemplo, foi condenado por um juiz de primeira instância (Moro), três de segunda (com agravamento da pena), cinco de terceira, e seu habeas corpus foi negado por uma maioria de 6 a 5 no STF; teve amplo direito de defesa (mais do que a esmagadora maioria da população presa sob seu governo).
Enfim, o que interessa notar é que Moro, por mais que possa ser questionado, agiu dentro dos limites da democracia burguesa, e agora representa esse capital político dentro do Poder Executivo, em grande medida sombreando o próprio presidente eleito. E mais: nas mãos de Moro ficarão alavancas de controle poderosas em torno de temas que o eleito costuma tornar assunto de polêmica: demarcação de terras indígenas, combate às drogas, imigração, reparação de perseguidos da ditadura militar, forma de atuação das polícias, uso da Força Nacional de Segurança etc. Ainda cabe saber o que Moro pensa de cada um desses elementos, mas é de se supor que não compartilhe de todas as ideias que Bolsonaro vira e mexe vocaliza fanfarronicamente. Segundo Lauro Jardim (O Globo), Moro é contra o “excludente de ilicitude” (carta branca para as polícias matarem) e contra taxar movimentos sociais de “terroristas”.
Na correlação de forças atuais em nossa sociedade, parece-nos que Bolsonaro só teria meios de fazer avançar tais medidas retrógradas por dentro do Poder Legislativo. Não nos parece haver condição real para um golpe similar ao de 1964. Entre o atual presidencialismo de coalizão (cooptação) e a derrubada de qualquer coalizão (golpe como o de 1964), não há propriamente caminho, senão um populismo light, muito mais marcado pela representação e pela performance do que pela musculatura política real. Trump está aí para comprovar. Mas Bolsonaro tem diante de si, no Legislativo, uma base política frágil. Apesar da segunda maior bancada da câmara (que deve se tornar a primeira em breve), não tem uma base de sustentação de facto. Na Câmara, por exemplo, Bolsonaro não terá opção senão coligar-se com o chamado “centrão”, para obter então cerca de 250 deputados. Ele necessitará de 308 para qualquer emenda constitucional (muito dependerá ainda das definições do MDB e do PSDB).
Entretanto, cabe notar que, se, de fato, Moro der um novo impulso à Lava-Jato por dentro do poder Executivo, isso necessariamente chegará ainda mais fundo na cúpula e na base dos partidos do “centrão”, seja no Congresso, seja no corpo de estatais e agências. O governo tende a ficar suspenso no ar – não enquanto aquele que se eleva acima do congresso autoritariamente (visando a fechá-lo), mas enquanto tomado pela paralisia da vontade. Bolsonaro está em tal situação: tem a cabeça tripartida no Executivo, e um conflito fáustico entre esse cabeça múltipla e o coração Legislativo. Bolsonaro, de alguma forma, representa ao mesmo tempo, por um lado, um impulso de insatisfação popular com a velha política e, por outro, a própria velha política, o chorume do baixo-clero.
O presidente por subtração se apaga até quase desaparecer ante um economista e um juiz alheios às suas ideias e propostas. O que lhe restará? Além do fisiologismo político, os militares. Estes darão o ar da ordem institucional (ante à quase falência de todo o sistema político), mas talvez estejam mais interessados em fazer representar no governo os seus interesses corporativos (cabides de emprego em estatais “estratégicas”, reajustes, penduricalhos, “não-tetos” salariais para o funcionalismo, previdência etc). Ou alguém acha mesmo que as FFAA estão com Bolsonaro para preparar um invasão da Venezuela?
Ainda há muitos capítulos a se acompanhar. Não só nas próximas semanas, como também nos próximos meses. O que dá para farejar desde já é que, realmente, a montanha pariu um rato. Já se enfraquece a tese do risco do “fascismo”. Bolsonaro começa a ser moldado pelas instituições (em vez do contrário) – “amansado”, como disse Paulo Guedes. Isso se dará mais e mais a cada dia.
Triste é ver que nossa “esquerda” morre de medo de ratos. Isso mostra a sua dimensão. Na verdade, ela adaptou-se uma vez mais ao discurso do PT, cujo único interesse é financeiro, para quem nada há de “ideológico”. Os petistas querem voltar à fonte do ouro, seus cargos, seus projetos, financiamentos, e, sobretudo, querem não ser presos por suas ilicitudes. Para voltar à fonte do ouro, com ajuda de braços sindicais (CUT e CTB, sobretudo), movimentos sociais (MST, MTST e outros), partidos (PSOL e PCdoB), grupos midiáticos interessados em fomento (Mídia Ninja, Jornalistas Livres e variantes culturais), recriam uma militância que abarca a pequena burguesia delirante das grandes cidades. O interesse do PT com isso é tão somente se preparar para as eleições de 2020 e 2022, quando espera — com certa razão — aproveitar as crises políticas do governo Bolsonaro.
Na medida em que todo esse movimento do PT cria um bloqueio político, é dever dos revolucionários se contrapor claramente aos diversionismos petistas. O PT deve ser afundado. Essa pequena-burguesia intelectual cooptada pelo PT é um atraso político para a luta de classes. Os revolucionários devem ajudar de todas as formas a aprofundar a divisão entre os partidos que se dizem de esquerda e o PT. Os revolucionários devem se contrapor claramente às atividades convocadas pelos petistas para criar uma falsa narrativa de “defesa da democracia”, como os atos que ocorreram em algumas cidades na última semana. Deve-se repudiar tais atos-farsa, sem pauta real, baseados num delírio inconsistente. Deve-se explicar que ir nesses atos, hoje, é reforçar a estratégia petista de cooptação da pequena-burguesia para a sua política altamente oportunista. Os revolucionários não devem perder tempo com isso e devem voltar as suas energias e tempo ao trabalho com a classe operária nas fábricas. Aqueles que, impressionados, chafurdarem nessa lama petista terão o dobro de dificuldade para sair dela amanhã. Ela contaminará os grupos políticos internamente, puxando-os para a direita, afastando-os da classe trabalhadora.
Outra coisa serão os atos de frente única contra os ataques de Bolsonaro — como a reforma da previdência, a mesma de Meirelles (Lula e Temer) e Levy (Dilma) —, assim que tais ataques forem anunciados. Aí será o caso de toda a unidade em torno de uma pauta real, mobilizando antes de tudo a classe trabalhadora nos locais de trabalho. Mas, por enquanto, o rato mal-parido nem mesmo sabe se deve ou não se aproveitar da reforma de Temer, se deve buscar outra totalmente diferente (ouvindo os militares), nem se tentará aprovar algo este ano ou no próximo.
Para os lutadores de esquerda de verdade, deve-se alertar: queimar a largada impede a vitória.