A crise política que se instalou no governo brasileiro devido às gigantescas queimadas da floresta amazônica evidencia o temor dos capitalistas frente ao abismo da crise econômica que se anuncia. A troca de farpas entre Bolsonaro e Emmanuel Macron (França), as ameaças de bloqueio comercial da Finlândia, Noruega ou Irlanda, a ameaça de boicote ao couro brasileiro por empresas americanas, o apoio de Trump a Bolsonaro – são apenas episódios que anunciam a disputa capitalista por localização vantajosa na gigantesca crise que se abrirá.
Bolsonaro oscila pois busca fazer um milagre: atender os interesses do agronegócio brasileiro e, ao mesmo tempo, localizar-se geopoliticamente próximo ao maior concorrente de tal agronegócio – os EUA. Estes veem a fragilidade do governo brasileiro e aproveitam para reduzir barreiras brasileiras a produtos americanos, como o etanol e a carne de porco. O resultado da pressão foi a liberação da importação de trigo dos EUA, o que desagradou produtores brasileiros. Em resposta, Bolsonaro procurou agradar o setor, prometendo anistia de dívidas do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL – fundo que financia a aposentadoria, pensões e assistência social dos trabalhadores rurais. As dívidas perdoadas ficam na faixa de R$ 17 bilhões). O agrado aos ruralistas é acompanhado de ataques à fiscalização ambiental do país, aos “xiitas ativistas” (como chamou os ambientalistas) e às reservas indígenas. Resultado: o aumento no número de queimadas e desmatamento na Amazônia.
A anuência frente à irracionalidade do agronegócio brasileiro, entretanto, não é uma característica original de Bolsonaro. Ela é comum a todos os governos capitalistas dos últimos tempos. A partir dos dados do INPE, pode-se ver, por exemplo, que a Amazônia teve 125 mil quilômetros quadrados desmatados nos 8 anos do governo Lula. O recorde foi em 2004, quando o INPE registrou em apenas um ano desmatamento de 27,7 mil quilômetros quadrados, o equivalente ao Estado de Alagoas. O Instituto Imazon diz que nos últimos 12 meses foram desmatados 5 mil km quadrados, 66% a menos que a média anual do governo Lula. O governo Dilma, embora tenha representado uma diminuição relativa no número de área desmatada, aprovou medidas nefastas para favorecer interesses do agronegócio. Foi ele que preparou o Código Florestal aprovado em 2012, a PEC 215 (proposta que transfere a competência da União na demarcação das terras indígenas para o Congresso). E sem falar na longa construção da usina hidrelétrica de Belo Monte (que forçou dezenas de milhares de indígenas e ribeirinhos a abandonar suas terras, que provocou um surto de violência que persiste nas cidades do entorno da usina, etc.). Todos esses elementos têm e sempre terão a marca registrada do petismo. A diferença é que antes os petistas não protestavam, pois estavam satisfeitos nos muitos escalões do Estado burguês.
Curiosamente, assim como Bolsonaro e seus militares hoje, Lula fazia discursos nacionalistas, “anti-imperialistas” etc. A diferença entre Lula e Bolsonaro consiste em que o primeiro era mais competente, mais habilidoso; conseguia misturar o agrado ao agronegócio com frases falsas sobre defesa dos “povos originários”. Eis por que parte da burguesia olha nostálgica, sente saudade dos tempos de Lula, quando existia uma maior estabilidade institucional. Bolsonaro aparece como um trapalhão inconsequente, que não mede palavras e não age de maneira estratégica, dando ensejo a oportunistas que tiram proveito da situação de fragilidade do governo.
O recente bate-boca entre Emmanuel Macron e Bolsonaro foi o maior exemplo disso. A França, já temerosa quanto ao acordo do Mercosul-UE, aproveitou-se da situação de desgaste do trapalhão Bolsonaro. Este, tão logo subia o tom contra Macron, recuava (levando um “puxão de orelha” do agronegócio brasileiro, que teme a não realização do acordo). A UE é o segundo maior comprador, hoje, do agronegócio brasileiro, tendo sido o destino de 17,6% das exportações do setor neste ano, que geraram US $9,9 bilhões até julho. São os franceses que conduzem a agricultura para o restante do continente, especialmente de soja, leite e derivados. Já para a Irlanda, o interesse está no comércio de carnes, que seria afetado seriamente com o acordo.
A histeria, entretanto, começou a atingir também o presidente francês, demonstrando que, assim como Bolsonaro, tem o que temer. Para além da defesa do setor agrícola francês, contra o agronegócio brasileiro, o governo de Macron está seriamente abalado no seu próprio país. Desde o início dos protestos massivos dos chamados Coletes Amarelos, o governo está por um fio. Os protestos, embora tenham perdido força no último período, tiveram fortíssimo apoio popular e se mantiveram massivos por longo tempo – podendo retornar a qualquer momento. Por conta disso – e com uma reforma da previdência para aprovar –, o segundo semestre não promete ser nada fácil para o presidente da França. Nesse período houve também questionamentos sobre sua postura pró-meio ambiente. O primeiro ministro da Ecologia, Nicolas Hulot, abandonou a administração dizendo que as ações do presidente não condiziam com seus discurso sobre o assunto de mudança climática. Ao se colocar na posição de “salvador da Amazônia” enquanto as coisas estão mais calmas, Macron está estocando popularidade para o próximo período de tensão interna.
Toda a escaramuça comprova que os governos capitalistas – mesmo os dos países mais ricos – agem sempre, e antes de tudo, na arena mundial, tendo em vista contornar as contradições de classes internas aos seus próprios países.
A Alemanha, por exemplo, busca equilibrar a situação, e não à toa. Na última semana foi anunciado o dado definitivo de crescimento dos países da UE, com um progresso de apenas 0,2% no segundo trimestre frente a 0,5% do primeiro. A Alemanha está à beira de um recessão e vem enfrentando um problema interno sobre o direcionamento de sua produção industrial. Embora o acordo do Mercosul-UE não renda frutos imediatamente, o mercado consumidor brasileiro não é desprezível e pode ser uma tábua de salvação para as exportações alemãs. O Reino Unido, por sua vez, sabe que precisará costurar um acordo próprio com o Mercosul para não ficar isolado depois do Brexit. Angela Merkel e Boris Johnson sabem que não é hora de oscilar. Ou seja, apesar das ameaças francesas (e de outros países europeus) ao acordo do Mercosul-UE, o peso da indústria alemã junto à agroindústria brasileira são os verdadeiros agentes burgueses que irão determinar os rumos econômicos no que concerne ao acordo.
O que os produtores brasileiros temem é que os europeus tentem ganhar tempo antes de aceitar o entendimento. A previsão é que a avaliação legal do acordo se dê em um período de um a dois anos. Somente depois de concluída esta etapa, o entendimento seria submetido aos parlamentos do Mercosul. Na UE, o documento precisará ser aprovado pelos parlamentos dos 28 países, para só então ser submetido ao Conselho Europeu. Ou seja, ainda existe um longo processo pela frente e ele pode ser postergado. Diante das incertezas da economia mundial, cada estado capitalista busca arrancar com os dentes a fatia que conseguir.
O caso emblemático das queimadas na Amazônia mostra que não há qualquer interesse capitalista na sua preservação, senão uma desculpa para conter a luta de classes interna a cada país e assegurar o melhor lugar na divisão internacional do trabalho. As nuvens negras de fumaça nos céus das cidades brasileiras figuram de forma clara a destruição provocada conscientemente pelo modo de produção capitalista. Elas atestam que não há qualquer solução que conserve a vida humana e ambiental do planeta dentro dos marcos do capital. As chances que existem residem apenas em um futuro socialista da humanidade.