Transição Socialista

O projeto autoritário do PT

A classe trabalhadora saiu derrotada neste processo eleitoral porque sua correlação de forças com o capital piorou ao final dele. Apesar das manifestações de massa de 2013, a eleição reafirmou a tendência de enfraquecimento e fragmentação das organizações da classe trabalhadora em relação à força material do capital. Para contribuir para elevar a discussão entre a vanguarda e ajudar na luta contra essa tendência de enfraquecimento escrevemos este editorial, que tem por eixo a seguinte constatação: o Partido dos Trabalhadores é hoje um dos maiores perigos para classe trabalhadora brasileira.

PT e PSDB atendem igualmente ao capital. A rigor, no âmbito econômico, suas políticas são substancialmente iguais, embora se diferenciem em aspectos secundários; no modo de operacionaliza-las. Desde Collor é mantida essencialmente a mesma política econômica (ela própria uma diretriz do capital internacional): superávit primário, responsabilidade fiscal, autonomia do Banco Central, renúncias fiscais, desonerações da folha de pagamento, etc. Esses governos não têm autonomia diante do grande capital (basta lembrar que a primeira medida de Lula quando eleito foi nomear Henrique Meireles presidente do Banco Central). Mas a diferença entre PT e PSDB se dá no âmbito propriamente político de controle da classe trabalhadora. O PT é mais eficiente que o PSDB nesse quesito, portanto, está em melhores condições de manter a atual ordem burguesa no Brasil, crescentemente autoritária e repressora.

O PT não é mais eficiente apenas no uso da burocracia sindical pelega para trair processos grevistas. Isso é mais ou menos evidente, inclusive para os trabalhadores que com ela se chocam dia a dia. O PT é mais eficiente justamente por conseguir articular uma forma de governo que permite à burguesia aumentar o grau de violência colocado sobre a classe trabalhadora, sem que ela responda. Essa é a característica do “bonapartismo”, uma forma de governo burguês específica. O PT possui hoje traços bonapartistas, conduz o Estado a um governo bonapartista.

O bonapartismo é uma forma de governo burguês que se sustenta na aparente suspensão da luta de classes (por meio da paralisação dos principais setores da burguesia e dos trabalhadores em conflito) e no esvaziamento da democracia burguesa. Portanto, o bonapartismo é ele próprio uma forma mais ditatorial de governo burguês, uma forma que dilui aos poucos a própria democracia burguesa. Expliquemos um pouco mais, retomando alguns ensinamentos de Marx:

O deslocamento das forças políticas reais em luta

O ponto central de conflito político entre as classes é a luta pela apropriação da mais-valia – ou seja, a luta pelo salário e pelo tempo de trabalho nas fábricas. É da exploração do operário nas fábricas que surge a riqueza, o capital, e é aí que está, centralmente, em sua maior potencialidade, a verdadeira política, a luta de classes. Mas esse conflito central pode ser paralisado, aparentemente suspenso, graças a artifícios tradicionalmente usados pela burguesia. Um dos artifícios mais comuns é a deformação da relação política entre as classes por meio de pontos de apoio externos ao conflito central.

Marx, no século XIX, criou a caracterização de “bonapartista” para o governo que se baseasse demais num apoio externo; um pilar de sustentação política externo ao conflito central entre as classes. Luis Bonaparte, para dar seu golpe de Estado em meados do século XIX, se valeu do apoio político de uma classe externa às que estavam em luta, ou seja, externa à burguesia e ao proletariado. Essa classe era o campesinato. Bonaparte se apoiou na maioria camponesa da França para se sustentar, para se erguer sobre a nação e, assim, gerir o país em nome do grande capital (grande burguesia industrial, comercial e financeira).

No caso do Brasil a analogia é possível, embora não exata (como toda analogia). A rigor, não há uma classe camponesa relevante (numérica e economicamente) no Brasil. Há um proletariado miserável, historicamente miserável, que não está vinculado ao processo propriamente produtivo, fabril, e que é usado pelo PT para paralisar os principais setores da classe operária. É inegável que o programa Bolsa Família e diversos outros mecanismos de transferência de renda se tornaram um instrumento político poderosíssimo na mão do PT, pois hoje abarcam mais de 40 milhões de pessoas.

Esse setor empobrecido é “ajudado” pelo governo na justa medida de não deixar a miséria e não se inserir num processo produtivo que possa implicar num fortalecimento organizativo da classe trabalhadora. Esse setor não se torna, portanto, um setor organizado pelo próprio meio de produção, que possa se sindicalizar e agir como classe contra a burguesia; ele é mantido na pobreza e na fragmentação – o que interessa muito ao capital e explica porque tanto Marina quanto Aécio defenderam a manutenção dessas bolsas-auxílio.

Mas, o mais importante, esse processo artificial de cooptação dos setores empobrecidos impede a hegemonia política do operariado – a vanguarda da classe – dentro do conjunto do proletariado brasileiro. O operariado é a vanguarda da revolução justamente por ser o único setor da classe objetivamente capaz de dominar imediatamente os meios de produção. Afinal, quem mais poderia tomar e por para trabalhar as gigantescas forças produtivas brasileiras, senão aqueles que nelas trabalham diretamente hoje? Esse artifício eleitoral da burguesia visa justamente quebrar a importância política fundamental do operariado.

O PT não é mais um partido que se baseia nos setores mais importantes da classe trabalhadora. Basta ver, por exemplo, que Aécio Neves venceu nas regiões operárias mais importantes da grande São Paulo, sobretudo no ABC, bem como em diversas regiões fabris da cidade de São Paulo (além disso, venceu na esmagadora maioria dos bairros de São Paulo, mesmo nos mais pobres, bem como venceu nas principais metrópoles brasileiras). O operariado está votando contra o PT, embora, tragicamente, sem alternativa de esquerda, está optando erroneamente pelo PSDB.

A tropa de choque a mando do executivo federal

Outra característica do bonapartismo é o uso de formas de choque a mando do governo federal, mais ou menos legais. Luis Bonaparte se valia de dois grupos de choque: 1) a sua máfia gangsterista pessoal, semi-legal, a “Sociedade 10 de Dezembro”, os dezembristas e; 2) o Exército oficial. Essas duas formas de combate eram usadas pelo executivo federal – Luis Bonaparte – tanto contra o proletariado quanto contra setores da burguesia nacional francesa.

O PT, também nesse quesito, está muito mais bem articulado que o PSDB, graças à constituição de uma força burocrática comprada, a cada dia mais mafiosa e gangsterista, e graças ao uso da Força Nacional de Segurança (criada pelo próprio PT) e do Exército.

Para saber algo a respeito da burocracia mafiosa petista, basta, por exemplo, que você tente distribuir um jornal operário nas principais fábricas do ABC, entre os principais setores da classe trabalhadora. Rapidamente você será recebido por capangas da CUT, muitas vezes armados. Os setores sindicais vinculados ao PSDB – sobretudo a Força Sindical – são muito mais fracos e desorganizados, muito menos orgânicos com esse partido, portanto muito mais facilmente podem ser atropelados pela classe trabalhadora.

Mas a repressão, assim como a feita pelos dezembristas, não é só contra o proletariado. Basta ver, por exemplo, o ataque da UJS (UNE) à sede da revista Veja, ao prédio da Editora Abril, na última semana (em que pese o caráter reacionário dessa revista).

Vale lembrar ainda: os cartazes da Frente pelo Voto Nulo, da qual fizemos parte, foram atropelados por cartazes pró-Dilma em São Paulo, produzidos exatamente para esse fim por uma agência cultural “ativista” comprada pelo governo há anos. No Rio Grande do Sul, nossos cartazes foram atropelados por cartazes produzidos pelo “Levante Popular da Juventude”, grupo também vinculado ao governo. Alguém duvida que se a campanha do voto nulo tivesse tido maior expressão, maior tamanho, e uma sede, esse espaço não seria atacado por capangas do governo?

O uso de uma tropa de choque mafiosa e comprada, que vive às margens da legalidade, é, como dissemos, apenas um elemento da tropa de choque federal. O outro são as forças repressoras nacionais do Estado cada vez mais à disposição do governo federal. Dilma ou Lula não são militares como era Luis Bonaparte; seu controle do exército pode não ser tão estável como o do francês, mas, não podemos nos esquecer, foi o PT o responsável por usar o Exército em mega-operação nas favelas contra os trabalhadores brasileiros (para a qual a ação no Haiti de repressão nas favelas foi um laboratório). Além disso, foi o PT quem criou a Força Nacional de Segurança, também para usar na repressão ao próprio povo.

Essas forças de repressão provavelmente se tornarão um constante na realidade brasileira. Em qualquer governo democrático-burguês elas seriam extraordinárias (dada a existência das polícias militares estaduais), mas o PT quer torná-las permanente e ampliá-las. O PT não quer seu uso só para a “pacificação” de favelas ou para mega-eventos como a Copa do Mundo; quer uma mudança constitucional em nome da manutenção e ampliação dessas forças.

Na questão da repressão à classe trabalhadora – fundamental para o capital –, o programa de segurança apresentado por Dilma Rousseff é mais reacionário e repressor que o de Aécio. Isso se dá porque com o PT há melhores condições para a burguesia ampliar a repressão sobre a sociedade do que com o PSDB. Se Aécio é autoritário em medidas repugnantes como a redução da maioridade penal, Dilma propõe (e fará) criar o novo CCC – Centro de Comando e Controle, responsável por tornar permanente e ampliar para todo o Brasil o esquema de repressão e perseguição usado na Copa do Mundo. Imaginem isso numa conjuntura de maior crise econômica.

O nome CCC não é mera coincidência. Comando de Caça aos Comunistas (CCC) era a organização para-militar (composta em grande parte por membros do exército) que perseguia e matava militantes da esquerda durante a Ditadura Militar. Sem dúvida, não foi mero lapso do PT a escolha do nome. Da mesma forma, não foi mera coincidência o uso do Exército na Favela da Maré na semana de aniversário dos 50 anos do Golpe Militar, como também não foi em vão que Celso Amorim, ministro da defesa do PT, assinou o manual de Garantia da Lei e da Ordem das Forças Armadas, que qualifica grevistas e organizações políticas de esquerda como inimigos internos, forças oponentes das Forças Armadas).

O esvaziamento do Congresso Nacional

Outra característica do bonapartismo é o controle maior do congresso, que caminha para a sua perda de sentido e esvaziamento. É possível notar, por exemplo, desde Lula, o crescente número de medidas-provisórias, projetos com urgência constitucional e vetos do executivo ao legislativo. Isso significa que o poder legislativo tem cada vez menos autonomia, perdendo uma agenda própria, e depende cada vez mais do poder executivo. A maioria dos acordos políticos entre os partidos passa a se dar no âmbito do executivo, inchando o número de ministérios da presidência (39 ministérios!).

A cada dia que passa o legislativo tem menos sentido de existência e vai sendo preenchido por elementos duvidosos (Tiririca, astros da música e do futebol, pastores reacionários, policiais sanguinários, etc.). Assim o legislativo também prepara as condições de sua falência (e até possível fechamento pelo poder executivo), pois cai em descrédito diante da população.

Reforça o que estamos falando a proposta de Reforma Política, promessa de Dilma no seu discurso de vitória neste dia 26/10. O centro dessa reforma é deixar ainda mais desigual o poder dos partidos políticos. Por exemplo, o financiamento público das campanhas seria diferente para cada partido, de acordo com o tamanho de sua base no congresso. Ou seja: o partido com maior base ganhará maior valor (de um novo fundo, criado para isso, via aumento dos impostos), e o partido sem base não ganhará dinheiro extra para campanha. Isso fará, sem dúvida, com que os partidos com maior base (PT e PMDB, respectivamente) se tornem cada vez mais hegemônicos. Os partidos pequenos, como os de esquerda – que podem contar com pequenos financiamentos privados de pequenas empresas e lojistas – praticamente desaparecerão.

A reforma política tem ainda, como elemento fundamental, o fim das coligações proporcionais para cargos de vereador, deputado estadual e federal (mas, curiosamente, não para o Senado, governo do estado e presidência). Ou seja: exatamente onde os partidos pequenos, da classe trabalhadora, podem eleger alguns representantes – vereadores e deputados – será vetada a coligação. A união de partidos de esquerda para favorecer a eleição de seus representantes será proibida, mas a coligação da burguesia para os cargos onde somente ela consegue eleger representantes (senado e executivos federal e estaduais) será permitida.

O necessário giro à direita do governo Dilma

Os elementos vistos acima – deformação das forças políticas em conflito na nação, uso de forças legais e semi-legais de combate centralizadas no âmbito federal e enfraquecimento do legislativo – apontam para uma mesma tendência: a elevação do poder executivo acima da nação, ou seja, a forma bonapartista de governo, uma forma autoritária.

Dilma teria condições de impedir essa tendência bonapartista? Não nos parece. Alguns incautos, ingênuos (ou comprados) afirmam que há chance de o segundo mandato de Dilma ir mais à esquerda que o primeiro. Pensamos que Isso é simplesmente impossível, devido à pior situação econômica brasileira e à mais difícil articulação política do governo no congresso. A crise está aí: as medidas econômicas preparadas pelo Ministério da Fazenda poucos dias após a eleição de Dilma são de fazer inveja mesmo a Armínio Fraga, responsável pela política econômica de Aécio Neves.

No âmbito político, fica claro que o PT é a cada dia mais refém da reacionária base aliada, que tem como expoentes Sarney (ex-presidente da Arena, o partido da Ditadura Militar), Maluf (governador biônico da Ditadura Militar), Collor (implementador das medidas de abertura do Estado forte militar para o capital internacional), Edir Macedo (representante-mor do fundamentalismo religioso), Kátia Abreu e Eraí Maggi (chefes da bancada ruralista), Kassab (símbolo do fisiologismo), etc. Com uma menor gordura política e econômica o governo Dilma só poderá manter e aprofundar a tendência geral do PT desde a entrada de Lula na presidência – a ida à direita e o ataque à população e seus direitos básicos.

Não há risco real de golpe da “direita fascista” contra o governo do PT. Quem espalha isso e superdimensiona as forças da direita é o próprio governo, buscando assim aliados ingênuos. A marcha pelo impeachment de Dilma no sábado 01/11 reuniu pouco mais de duas mil pessoas na capital paulista. Há 50 anos, a marcha da Família com Deus reunia mais de 500 mil pessoas na mesma cidade, como parte do projeto de golpe militar. É preciso refletir, portanto, que o risco trazido pelo PT pode ser muito maior que o trazido por um punhado de desclassificados da pequeno-burguesia histérica paulista.

É urgente, mais que urgente, a união da esquerda para, no mínimo, paralisar o projeto bonapartista do PT. É preciso abandonar a lógica do PT como menos pior e encarar de frente esse governo como nosso principal inimigo.