Transição Socialista

A reforma política na atual crise de dominação burguesa

Comentamos em alguns editoriais passados o caráter geral reacionário da proposta de reforma política apresentada pelo governo federal. Se bem analisadas, as linhas gerais da reforma revelam um redesenho do sistema político-partidário para que a burguesia exerça um controle de classe mais abertamente burguês (ou seja, autoritário) sobre os trabalhadores.

A necessidade de uma mudança séria na política nacional é evidente para toda a população brasileira (seja proletária ou burguesa). O que se passa é, como insistimos, o esgotamento da atual forma de dominação democrática da burguesia, iniciada no fim da ditadura militar.

O que caracteriza um regime democrático burguês é o pacto estabelecido entre as classes. Esse pacto só é possível quando as lideranças principais da classe trabalhadora são reformistas e conciliadoras, e passam a conduzir o descontentamento da classe trabalhadora para dentro do Estado burguês, alimentando a ilusão na possibilidade de mudanças por meio dele. O pacto entre as classes é a essência do regime democrático burguês, a forma preferida de dominação da burguesia, por ser a que mais abafa as contradições entre as classes e, assim, diminui as oposições entre setores da própria burguesia. É a forma mais estável para ela. No Brasil, esse pacto político foi assinado pelo Partido dos Trabalhadores já na primeira metade da década de 1980, o que tornou o PT um elemento fundamental do atual ciclo democrático burguês, seja na oposição ou situação.

O fim do ciclo de dominação significa exatamente que a paciência da classe trabalhadora com o PT acabou e ela está retirando sua assinatura do pacto, à revelia de seus “dirigentes”. A classe trabalhadora cada vez mais não respeita nem legitima seus “representantes”, com temos visto no aumento do número de greves — processo de alguns anos que se aprofundou após junho de 2013. Sem o elemento da classe trabalhadora no pacto, o Estado tem de assumir necessariamente uma forma mais burguesa. Assim, nos parece, um novo ciclo da burguesia (caso a classe trabalhadora o permita), tende a ser mais autoritário, com um caráter de classe mais evidente.

Para conseguir exercer esse controle maior sobre a classe trabalhadora, a própria burguesia precisa necessariamente reprimir e controlar também seus diversos setores internos. A burguesia só consegue aumentar seu grau de violência sobre a classe trabalhadora se estiver menos dividida; se redesenhar sua representação político-partidária. É esse, em linhas gerais, o sentido estrito da atual reforma política: rearticular o espectro partidário burguês de forma menos contraditória para a burguesia poder aumentar o grau de violência sobre a classe trabalhadora. Ao que nos parece, a rearticulação tende a ser em torno do PT, pois é o partido burguês em melhores condições de exercer a repressão sobre os trabalhadores (devido à sua extensão social e controle de sindicatos).

É justamente por isso que os setores da burguesia se apresentam hoje tão opostos e em conflito, pois apercebem-se da futura centralização política. Essa polarização inter-burguesa caracteriza um momento de crise da burguesia, em que seus setores ao mesmo tempo relutam e capitulam diante desse futuro necessário — eles próprios se veem impotentes e reféns, nas teias crescentes da crise. A crise é o momento de crescente divisão da burguesia, de luta ampliada entre seus próprios setores, que antecede a centralização política.

Mas é preciso distinguir entre o momento de crise e o estouro da crise. O estouro da crise (que parece se aproximar, embora não seja imediato) é a impotência da burguesia enquanto classe, ou seja, a sua paralisação diante da classe trabalhadora. A situação aberta pelo estouro da crise pode durar um período relativamente longo (de alguns meses a um ano ou mesmo mais) e, em geral, coincide com a entrada em cena da classe trabalhadora, que percebe espontânea e intuitivamente a brecha (ainda assim, o estouro da crise não significa necessariamente uma situação pré-revolucionária, pois esta é marcada, segundo Trotsky, pela abertura da dualidade de poderes, como ocupações de fábricas, mesmo que localizadamente. Só a dualidade de poderes permite caminhar para uma situação revolucionária).

É por isto que a burguesia teme iniciar a reforma política: pois ela acelerará ou desencadeará o próprio estouro da crise. O sentido amplo da reforma política pode ser o de catalisador da crise. É justamente por esse caráter que o PT ao mesmo tempo mostra a carta que tem na manga e a esconde, desde 2006. Temendo acelerar a crise, o PT apenas faz chantagem com a carta da reforma política, e no mesmo processo busca intimidar os demais setores burgueses (ou seja, se cacifa para a luta futura). O PT, ao mostrar a carta, mostra o exército que a empunha, que lhe caracteriza e coloca em situação privilegiada diante dos demais setores burgueses — ou seja, mostra sua burocracia sindical da CUT, da UNE, do PCdoB, setores do MST, Consulta Popular, etc., todos defensores ferrenhos da reforma política. Os cães de guarda do PT mostram os dentes e bradam que “com esse congresso não dá, Dilma!”.

Há ainda alguns setores mais à esquerda, relativamente desalojados do corpo petista, que defendem a reforma política. Esses setores, como MTST e PSOL (sobretudo as correntes APS, MES e parlamentares), partem da ideia de que a reforma política está abstrata (pois há várias propostas diferentes) e tiram como conclusão que é possível disputá-la, imprimindo-lhe um conteúdo de esquerda. Pensamos que isso é muito pouco provável, pois 1) a reforma surge de um problema objetivo, portanto tem já um conteúdo claro, embora pouco manifesto e 2) esses setores, por maiores que sejam, não têm grande inserção na classe trabalhadora organizada sindicalmente, a ponta de lança numa disputa política nacional. É claro que MTST e PSOL esperam crescer bastante na próxima crise, mas ao que tudo indica ela tende a ser marcada por uma ação espontânea da classe trabalhadora. Isso facilitaria a condução da crise dentro dos limites burgueses-petistas, e facilitaria a realização de uma constituinte política que pioraria muito a atual constituição burguesa.

Justamente por essa constatação final pensamos que defender a reforma política seria um grande erro para a esquerda no atual momento, um erro que pode se voltar seriamente contra a própria esquerda e o conjunto da classe trabalhadora. Longe de achar que há na reforma qualquer possibilidade de disputa, a esquerda deveria se contrapor diretamente à reforma política e defender a manutenção das (restritas) liberdade democráticas atuais. Isso significaria, na prática — caso a questão evolua e ganhe centralidade política —, a conformação de uma Frente contra a Reforma Política, entre todos os grupos que tenham esse posicionamento, com a função de vir à público e trabalhar entre o proletariado as consequências reais da reforma política. A crise, entretanto, não pode ser evitada; estourará, mais cedo ou mais tarde, devido à profundidade de suas contradições. O que resta como atividade fundamental para a esquerda, no âmbito superestrutural, é a articulação dessa frente visando a fortalecer o elemento subjetivo do proletariado, ou seja, de sua vanguarda, de seus grupos políticos não iludidos com o governo petista e suas “possibilidades” reformistas. Isso, nos parece, é uma importante forma de melhorar as correlações de forças da classe trabalhadora com o capital na crescente crise, preparando os combates que virão.