Nos últimos meses, a crise política aberta no país tem arranhado mais e mais a imagem do Estado e dos políticos, que aparecem aos olhos da população cada dia mais próximos do que realmente são.
A recente delação de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, é, nesse sentido, reveladora. Seu conteúdo tem o potencial de tornar-se uma bomba no colo daqueles que nos últimos anos geriram e daqueles que hoje gerem o Estado brasileiro. Mas, mais do que isso, tem o potencial de fragilizar ainda mais a esgarçada dominação burguesa no país, porque expõe de forma nítida a própria natureza do Estado numa sociedade de classes.
Machado, ao declarar que as propinas para campanhas eleitorais vêm desde 1946, reconhece involuntariamente que aquilo que se costuma chamar de “corrupção” é, na verdade, a lógica institucionalizada por meio da qual o Estado (burguês) funciona desde sempre (ou desde que existe). Além de comprometer todos os caciques dos principais partidos responsáveis hoje pela dominação burguesa, do PMDB ao PCdoB, nos brinda de quebra com a admissão de que a forma espúria como funciona o Estado brasileiro não é extraordinária, mas regular, corriqueira.
Ora, se o desvio de recursos do Estado para manutenção do poder e enriquecimento privado está institucionalmente estruturado ao menos desde 1946, o que haveria no Estado brasileiro antes disso? Não é preciso ir muito longe para lembrar que a isso antecedeu-se a dominação ditatorial da era Vargas, marcada sobretudo pelo início de uma grande reestruturação do Estado que serviu à sua submissão aos interesses do grande capital.
Vargas procurou articular, dentro do Estado, os principais setores do capital nacional, desde oligarcas agrários até a nascente burguesia industrial. Mas, para além disso, passou ao longo de seus governos a visar um desenvolvimento industrial baseado numa forte aproximação com o capital estrangeiro. Nesse processo, o Estado brasileiro foi profundamente modificado e utilizado crescentemente como uma poderosa alavanca da acumulação capitalista.
A estrutura do Estado como a conhecemos hoje no país nasceu ali. A ideia de um amplo corpo burocrático para a sua gestão ganhou força. O ápice disto deu-se já na Quarta República, quando Vargas governou novamente o país e foram criados o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, atualmente BNDES) e a Petrobras, em 1952 e 1953, respectivamente. Assim, o Estado passou a ter uma força inédita até então no país e tornou-se uma ferramenta do grande capital.
No fundo, Machado admite que o Estado brasileiro, desde que existe enquanto uma máquina ao serviço do grande capital, tem nos roubos, desvios e favorecimentos privados sua forma regular de funcionamento. Antes disso, na Primeira República, o poder estatal alternou-se entre os militares e os oligarcas dos Estados economicamente mais fortes: estava, naquele momento, ainda a serviço de capitais menores, sobretudo dos grandes proprietários agrários e, como se sabe, não eram mais idílicas as suas formas de funcionamento.
Em resumo, fica claro como o Estado brasileiro nunca foi outra coisa que não um comitê em torno do qual eram e são geridos os interesses, mais ou menos conflitantes ou congruentes, dos distintos setores da burguesia industrial nacional, dos oligarcas agrários e, em nível mais profundo a partir da era Vargas, do capital internacional. O exemplo histórico brasileiro reafirma esta lei geral postulada na célebre definição de Marx e Engels n’O Manifesto do Partido Comunista sobre o Estado – que, como apontou Trotsky (90 anos do Manifesto Comunista), constitui a única “teoria científica sobre o Estado”.
É possível, na verdade, universalizar o raciocínio de Marx e Engels e sustentar que, em toda sociedade marcada pela dominação de classes, o Estado cumpre a função de concertar, coordenar os interesses entre os diferentes setores da classe dominante. Isso é válido mesmo que para isso esta classe precise contar com funcionários e serviçais, em geral recrutados em uma classe intermediária ou em setores subalternos da classe dominante. Isso acontece apenas porque a classe dominante constitui uma ínfima minoria da sociedade e, por esse motivo, precisa recrutar funcionários em outras classes. Como aponta Lenin (O Estado e a Revolução), “o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes (…) [e] aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem ser objetivamente conciliados”.
É claro que dentro deste desenho geral podem haver diferentes arranjos, mas isto em nada altera o fundamento do Estado enquanto ferramenta de articulação e dominação de classe. Neste sentido, há ainda um aspecto fundamental no papel do Estado, que se desdobra, decorre da concertação entre os interesses comuns da classe dominante: o papel de controle e garantia da dominação sobre a classe dominada. Neste ponto, voltamos ao apontamento de Engels sobre o Estado, de que esta instituição é, acima de tudo, composta de destacamentos de homens armados (destacamentos porque separam-se da própria massa da população, que arma-se em grandes processos revolucionários nos quais são alterados os alicerces do Estado) postos acima e contra os civis, e que detém o controle das prisões.
Como aponta Lenin, toda a teoria reformista de que o Estado seria um espaço possível da conciliação de classes e, portanto, da participação popular, parte de uma falsificação da realidade (e do marxismo), que se torna evidente diante da crise política a que o Estado brasileiro chegou. Numa sociedade de classes, o Estado sempre foi, e sempre será, um instrumento de dominação de uma classe sobre outra e, portanto, a dominação de classes só pode cessar se esta ferramenta for destruída e substituída por outa, que sirva à dominação de uma nova classe. Nos dias atuais, a tarefa colocada diante da classe trabalhadora é justamente essa: dos escombros do Estado burguês erguer, a partir de seus próprios mecanismos de poder, o poder operário, uma ferramenta que submeta e desintegre a dominação da burguesia e do capital e que aponte o caminho para uma sociedade sem classes e, portanto, sem Estado.
Defender a possibilidade da “conquista de posições” pela classe trabalhadora dentro do Estado burguês é, na verdade, ajudar a submetê-la à dominação do capital e inviabilizar a construção do poder operário. Por isso, não passa de uma traição aos seus interesses de classe.
Nesse sentido, a crise política brasileira expressa apenas uma crise geral da própria burguesia em manter sua dominação enquanto classe, justamente porque, à medida que o dinheiro (leia-se, mais valia) que perpassa o Estado diminui ou escasseia diante da crise econômica, ela encontra dificuldades de continuar remunerando seus antigos serviçais e estes põem-se em pé de guerra entre si pelo controle dos recursos estatais, que são uma importante catapulta para a acumulação privada. Isso acaba por desnudar aos olhos da população trabalhadora o funcionamento regular, permanente, do Estado, que em geral é ocultado por uma estrutura aparentemente legítima, mais ou menos democrática.
Ora, as propinas abastecem as campanhas eleitorais desde que estas são necessárias, isto é, desde que às oligarquias e à burguesia não era possível mais apenas articular entre si de forma mais restrita e econômica o controle do Estado e a democracia tornou-se uma necessidade para legitimar a dominação de classe. Isso só evidencia como, a despeito das leis que procuram dar ares de universalidade ao Estado burguês, este só pode funcionar como ferramenta do controle de classes e do enriquecimento privado. A corrupção, portanto, não é produto de desvios morais, mas está inscrita no próprio cerne da moral burguesa.
Não à toa, cabe lembrar, Marx demonstra no capítulo XXIV do livro I d’O Capital como a própria gênese da sociedade burguesa exige que o Estado seja usado como ferramenta para tornar privadas as terras antes comuns, para concentrar a propriedade agrária que antes cabia ao clã ou que estava repartida entre diversos vassalos nas mãos de poucos capitalistas.
Ora, diante da colossal crise que assola o Estado burguês no Brasil, diante do fato das diferentes frações desta classe hoje digladiarem-se publicamente pelo controle do aparato estatal, diante do desvelamento do papel histórico do Estado, que caminho resta aos trabalhadores, àqueles que apenas assistem esta disputa enquanto sustentam com seu suor os parasitas que a protagonizam?
Como já apontavam Marx, Lenin e Trotsky, não cabe à classe trabalhadora ser mera apoiadora deste ou daquele setor da burguesia em luta pelo poder. É claro, é preciso saber taticamente aproveitar as divisões no seio da classe inimiga, mas apenas e na exata medida em que isto sirva à construção de um outro poder, que parta justamente dos organismos de democracia operária, isto é, das comissões de fábrica, organismos sindicais e de greve e se desenvolva até formar conselhos operários.
Estes organismos, capazes de erguer o poder da classe trabalhadora, são a ferramenta fundamental para o combate aos organismos de poder da classe dominante, do capital e, portanto, o embrião do Estado operário, aquele que é o único que poderá substituir a falida e decadente moral burguesa, do roubo, do açoite e da corrupção, pela dominação da classe realmente produtiva da nossa sociedade e, portanto, pela moral do desenvolvimento das forças produtivas baseado não na exploração, mas na cooperação.
Aos dilemas morais que encerra o Estado burguês em seu período decadente, não há saída que não a sua destruição e substituição pelos organismos do poder dos trabalhadores, este sim capaz de fazer cessar a corrupção e caminhar para a abolição da sociedade baseada na exploração de classes.
Diante da decadência econômica, política e moral do capital, apenas o poder operário pode apontar um caminho de futuro para a sociedade brasileira e para a humanidade.