Alguém que tivesse vindo de outro planeta ou ficado congelado no tempo talvez acreditaria que estivesse em jogo nesta eleição a luta do comunismo contra o capitalismo. Bolsonaro fez falas contra “comunistas, socialistas e petistas” e, por outro lado, os adeptos de Haddad figuraram-se como uma espécie de juventude militante e libertária ultra-radical.
Nada mais falso de todos os lados. Comunismo infelizmente não existe nem em gérmen em nosso país, ao menos no plano partidário. E os jovens que se veem como radicais o são, em geral, apenas na aparência, estando muito longe de qualquer prática propriamente de esquerda e comunista.
Bolsonaro fala do MST, do MTST, da “militância radical”, da doutrinação ideológica etc. Na verdade, o MST nunca fez tão pouca ocupação de terra no Brasil como nos anos do PT. Mesmo sob FHC, do PSDB, houve mais ocupação e mais reforma agrária do que nos anos petistas. O número de ocupações tendeu a zero. O MTST, por sua vez, dirige grandes ocupações urbanas mas, no geral, ainda pequenas em número, do ponto de vista de importância social. Além disso, seja o programa do MST ou do MTST, seu viés é apenas de busca da pequena-propriedade, financiada pelo Estado capitalista (para interesse de bancos e grandes indústrias de diversos ramos). Um proudhonismo barato, muito longe do marxismo, e subscrito à lógica da mercadoria e da reprodução do capital.
Não há doutrinação pedagógica ideológica nas escolas. O máximo a que os professores críticos chegam, grosso modo, é à noção de mudança por meio da educação, numa versão decadente e deturpada do já muito limitado Paulo Freire. Tudo longe da concepção marxista de que quem fará a revolução serão as massas (ignorantes e analfabetas, perto da nossa elitista “esquerda”), e que a verdadeira educação é a que se dá na luta de classes, nas ocupações de fábricas, nas greves, na luta contra a exploração e o assédio cotidianos do capital (na luta pela manutenção dos salários e empregos).
Bolsonaro combateu moinhos de vento apenas para manter aquecida sua nova militância, que lhe deu base eleitoral para a vitória, mesmo na ausência de um partido com respaldo parlamentar e tempo de TV. Mas Bolsonaro não poderia ter feito isso se não tivesse a seu favor aqueles que a direita chama de – e nos perdoem o termo – “idiotas úteis”. O termo é grosseiro, evidentemente, mas faz referência a algo do passado e infelizmente ajusta-se como uma luva para simbolizar os que apoiam o inapoiável sem receber nada em troca; era usado para designar os que apoiavam a URSS no Ocidente, sem serem propriamente “comunistas” (militantes dos partidos comunistas), e que, ainda assim, combatiam os trotskistas e as verdadeiras alternativas históricas ao stalinismo; fazia assim referência aos que apoiavam o “comunismo” soviético de forma idealista, com posições que os dirigentes de Moscou, na verdade, desprezavam. Algo similar ocorre com os que apoiam de forma idealista o PT, que por sua vez faz sempre conscientemente o contrário do que essas pessoas defendem. No caso, falamos dos que deram seu sangue por Haddad, pateticamente acreditando estar em jogo o futuro da civilização, e que também serviram, ao mesmo tempo, para Bolsonaro aquecer sua militância e se catapultar.
Bolsonaro combate moinhos de vento, justamente os construídos por aqueles que, do outro lado, acreditam ser radicais mas não chegam perto da raiz dos problemas. E estes combatem as frases vazias de Bolsonaro, que também não correspondem à realidade. Mas, para além do delírio das frases vazias e morais, nenhum dos dois lados apresentou discussão econômica minimamente relevante para tirar o Brasil do buraco em que se encontra. Note-se que ambos candidatos esconderam deliberadamente o que fariam propriamente de política econômica — Bolsonaro porque Paulo Guedes é continuidade de Levy e Meirelles, Haddad porque ele próprio é continuidade de Levy e Meirelles. Guedes, Levy, Meirelles, todos banqueiros, comprometidos exatamente com a mesma política econômica, com o sagrado “tripé econômico” e o lixo de parasitas rentistas/investidores que vivem sugando a classe operária brasileira.
E assim, num grande, grotesco e infeliz delírio, encaminhou-se para o final mais uma farsa do teatrão eleitoral da democracia burguesa, sempre bem elaborada para enganar “idiotas úteis” de todos os lados. Eis por que Marx chamava tal processo político sob a democracia burguesa de “idiotismo parlamentar”.
Bolsonaro apresentou logo após a vitória dois discursos. Um para seus militantes, numa “live” digital, e outro para a grande imprensa. Para os militantes, repetiu a cartilha delirante sobre PT e comunismo. Para a mídia, falou de medidas “liberalizantes” para a economia — que coincidem com o que Dilma e Temer vinham fazendo, e com o que Haddad proporia (este, na reta final da campanha, convidou Pérsio Arida para ser condutor da área econômica).
O fato de Bolsonaro fazer dois discursos não é nada novo neste país. Tancredo Neves afirmava que era exatamente assim que as coisas funcionavam em política: há sempre um discurso para a campanha e outro para governo. Lula nunca fez nada diferente: tinha um discurso até ser eleito, para aquecer a militância, e teve outro ao governar, mantendo a ordem capitalista e as políticas de FHC.
Mas os dois discursos seguem existindo lado a lado: em todo o momento em que o PT se sentia ameaçado, modulava o discurso, repatriava os idiotas úteis e lançava mão de bravatas. Bolsonaro fará a mesma coisa. Agora, no governo, será um novo Temer ou uma nova Dilma, talvez com poucas pitadas de psicopatia… Mas toda vez que se sentir ameaçado, falará que é o comunismo que tenta derrubá-lo. É a exata inversão dos petistas, que toda vez em que a porca torcia o rabo acusavam os riscos inexistentes de golpe e fascismo. Acuado, talvez Bolsonaro invente algumas maluquices. Exteriorizar a contradição é o mote. Nos EUA, inventam guerras. Mas, aqui, nada será produzido se não for pelas já existentes contradições, construídas nas últimas décadas, aceleradas nos anos de petismo. Nada do que vier será um raio em céu azul, mas continuidade deste processo grave em que vivemos, cujos responsáveis se espalham entre PSDB, PMDB e PT.
Reafirmamos as nossas análises: há uma tendência de autoritarismo (bonapartismo) crescente no Brasil. Ela se confirma e se encaminha independentemente de Lula(Haddad) ou Bolsonaro. Mas ainda não vivemos sob o bonapartismo. Achar que havia risco do bonapartismo só com Bolsonaro e não com Lula(Haddad) é inocência, é acreditar no dilúvio. A tendência de autoritarismo tem a ver com o fim de um ciclo histórico de dominação da burguesia, especificamente com o enfraquecimento dos mecanismos de controle da classe operária (a saber: falência histórica do PT e de seus braços de retenção dos proletários, demarcadamente após 2013). A luta de classes esquenta e isso empurra a mudança do regime. A superestrutura ideológica/repressora tem de necessariamente recrudescer para acalmar o lento ascenso que o operariado realiza em fábricas — apesar da ausência de direção política, e a despeito dos que acham que a classe operária desapareceu.
Bolsonaro não é “ultra-liberal”. Este adjetivo só serve para aqueles que queriam capitular ao PT, taxando-o como, pelo menos (ufa!), “liberal”. Bolsonaro não é “ultra-autoritário”. Este adjetivo só serve para aqueles que preferiam apenas um “autoritário” petista. Os militares estavam com Bolsonaro como estariam, no final das contas, com Haddad. E provavelmente se desmoralizarão mais rapidamente com Bolsonaro do que se desmoralizariam com Haddad. Bolsonaro é apenas mais um fantoche da ordem capitalista, aliás, muito mal preparado para a função que visa a exercer. E já dá sinais de fraqueza: mal venceu e já implora a Temer para que este aprove parte da reforma da previdência, pois sabe que seu equilíbrio para aprová-la será tênue.
De um ponto de vista geral, a crise da dominação burguesa se aprofunda com a vitória de Bolsonaro. Não apenas pela sua falta de “preparo”, não apenas pela maior pulverização dos partidos no Congresso, não apenas pelo mesmo fenômeno entre os governadores, mas sobretudo porque vão à falência as históricas direções traidoras do proletariado, porque vão à falência as máfias sindicais, porque vão à falência os partidos que vivem de mamata do fundo partidário — mesmo os que se dizem de esquerda. A crise da dominação burguesa também avançaria com o PT, mas este, no governo, ao menos reforçaria seus mecanismos de controle do operariado fabril. O país caminha lentamente para o ingovernável.
É numa situação assim — e costurada pela enorme crise econômica brasileira, pelo desemprego assustador, pela possibilidade de estouro de uma crise econômica mundial de maiores proporções — que uma nova direção poderá ser construída. Aqueles que não se entregaram facilmente – como aqueles que nesta polarizada e polêmica eleição votaram nulo –, aqueles que não capitularam ao PT com firulas teóricas e desculpas esfarrapadas, mais facilmente se unirão amanhã na criação de uma nova organização política, mais combativa do que as atuais, que hoje em grande medida já representam o passado.