Aproveitamos o ensejo das eleições primárias na Argentina (PASO, a serem realizadas no próximo dia 11), para publicar um texto dos companheiros da organização política argentina Razón y Revolución. Concordamos com o texto em suas linhas gerais, que, longe de esclarecer apenas sobre a situação argentina, permite muitas analogias com a atuação da “esquerda” no Brasil. Lá já houve a experiência com o suposto “neoliberalismo”, e, tanto lá quanto aqui, ainda não se demarcou mudança qualitativa – no máximo, quantitaviva – com relação aos governos “progressistas” (Kirchner lá, PT aqui). Tanto la como aqui, a oposição é mera etiqueta desses “progressistas”, pois nada de real fazem para combater as medidas capitalistas do governo capitalista de plantão. Estes, se sofrem oposição, é por parte das contradições do capitalismo, das dificuldades de realizar mais ataques à classe trabalhadora, e não da suposta “esquerda”. Também o que é dito a parte importante da FIT (sobretudo PTS) também serve para a realidade brasileira. Se há o original (Peronismo ou PT) por que a população vai optar pela cópia (FIT-PTS ou PSOL)? As notas (explicativas ao leitor brasileiro) estão ao final do texto.
Por Ricardo Maldonado (RyR)
Vivemos uma espera gelada no inferno com apenas uma interrogação: quem gera menos repúdio? A adesão e a confiança não parecem estar presentes nas eleições deste ano. Se o governo [Macri] perder, será por seus próprios erros; se a oposição [Alberto Fernández e Cristina Kirchner] vencer, será porque os votos lhe caíram do céu sem que tenha feito nada por isso.
Fala-se das eleições há seis meses, mas elas não empolgam ninguém pois o desencanto é gigantesco. Trata-se de uma resposta passiva à situação. Na falta de iniciativa convincente, a estrutura morta do calendário estabelece datas “decisivas”. Houve momentos em que esse calendário foi alterado pelas ruas, como em 2001 [1]. Em outras ocasiões, as lutas foram conduzidas tendo o calendário em vista, como em 1973 [2]. Não estamos nem numa nem noutra situação.
Os que achavam que o aprofundamento da deterioração vista desde 2011 pararia com uma mudança de governo, derrotando o peronismo nas últimas três eleições, viram o governo de “Cambiemos” [3] aprofundar as condições estabelecidas pelo governo de FPV [4]. O imposto sobre o salário ou a inflação – que, de oculta e alta, transformou-se em evidente e galopante – mostra que, para uma cada das diferenças esperadas em relação à “década ganha” [5] surgiu algo insuportavelmente parecido. Se antes os trens colidiam, agora as escolas desabam, mas, em todo o caso, os trabalhadores continuam morrendo. Se antes havia roubos e subornos, agora também há. Se antes havia operações nos serviços, agora há serviços em operações. A “Mudança” se transforma em semelhança, e, a partir daí, em rechaço. Macri perdeu grande parte de seu capital político e pouco avançou nas reformas que propôs, condição para que o capitalismo argentino tenha alguma chance de funcionamento. A confiança dos setores determinantes de sua classe está mostrando seu limite: o lucro.
Os que acreditavam que Macri no governo exporia, preto no branco, as virtudes do peronismo em comparação com o que chamam de “neoliberalismo”, esperaram três anos por algo que justificasse o nome de “oposição”. Hoje exageram o entusiasmo por conta da esperança de um possível triunfo eleitoral sem mérito próprio algum. Quando Dujovne [6] disse que nenhum governo aplicou um ajuste como o atual sem cair, estava agradecendo (ao peronismo em geral e à Cristina Kirchner em particular) podê-lo fazer. Um governo que ganhou as eleições por uma margem de 1% dos votos, sem controlar sindicatos, nem a maioria das casas legislativas, os governos estaduais e nem sequer plenamente a Justiça, conseguiu governar por já se vão quase quatro anos, com mais tarifaços e arrochos salariais do que o suportável, mas menos do que o inviável capitalismo argentino necessita. Frente a esse brutal ajuste, o peronismo responde com um silêncio ensurdecedor nas ruas. “Oposição” é uma etiqueta, não uma atitude. A principal e única oposição que Macri teve nesses três anos foram as próprias leis do funcionamento do capitalismo, do temor das consequências de aplicar o ajuste de maneira mais direta (como essas leis exigem) e não dos que se autodenominam opositores, sem haver feito nada para sê-lo.
O “largo caminho do meio” tampouco gera ilusão, simplesmente porque se propõe ser a opção por fora de uma rachadura que não é uma rachadura, mas sim um elenco com problemas de cartaz. Lavagna [7] e seu rejunte são a ponte que vai de Cristina a Macri; não se chama Mauricio nem Cristina, mas se parece demais com ambos. O abúlico e envelhecido dirigente expressa uma vontade de sandálias de tamanco, de pátio de casa, um eleitorado que não cogita sair para as ruas.
Ninguém conduz melhor uma espera infrutífera do que a Igreja. Vinte séculos de promessas atestam sua capacidade. Com o pecado original de um lado (somos culpados de algo que não fizemos) e o paraíso de outro (podemos ser recompensados, mas só em outra vida), não sobra muito ao presente: merecemos o que acontece e há uma outra vida melhor, mas não vai ser agora, nem esta. Velha instituição especializada em desmontar qualquer vislumbre de entusiasmo, ameaça o movimento feminista por dentro ao propor somar-se à unidade dos lenços [8].
Os bolsonaros argentinos até agora parecem não ter decolado, nem parece que o farão. Nem Casero, Olmedo ou Rodríguez Saá [9], os personagens marginais da política burguesa ou surgidos do meio das celebridades, conseguiram. Entretanto, em nosso país, o peronismo fagocita a favor do establishment toda iniciativa de ruptura, com uma eficiente máquina de cooptação aperfeiçoada em três quartos de século. Verdadeiro cúmulo do absurdo, começou a circular a ideia de que está se passando um golpe de mercado contra Macri. Agitar a iminência de um golpe é uma das grandes bandeiras em defesa do capitalismo. Supõe que com Macri acontecem coisas evitáveis. Negam que esse país, com seu sistema atual, não tem futuro algum. Ninguém pode explicar porque as forças pró-mercado da economia planejam um golpe de mercado no mais sólido defensor do mercado. Esse argumento é de grande desinteresse. Pode-se lutar contra um sistema, é mais difícil lutar contra uma maldade demoníaca, mas mais ainda contra a estupidez.
É nessas condições que a esquerda contrapõe à sua imensa dificuldade de organizar um ato de luta dos trabalhadores – internacionalista, para o 1º de maio – a sua rapidez na organização das listas [eleitorais], adiantando-se aos partidos burgueses, optando por disputar politicamente apenas em seu terreno. E pretende fazê-lo por um caminho afirmado diariamente, mesmo que tenha antecedentes muito antigos. A saber: o de considerar o peronismo, ou parte dentro dele, algo de diferente e melhor, mais próximo. A esquerda considera-o uma versão incompleta ou inconsequente dela própria. A prova disso são as condolências enviadas pelo provável candidato à presidência da FIT, Del Caño [10], à Cristina, por ocasião do falecimento de sua mãe. O pai de Macri morreu, morreu de la Sota [11], morrem na Argentina cerca de 9000 pessoas por dia, todas vidas humanas, mas o PTS presta condolências especialmente à Cristina! Essa condolência complementa a reivindicação “Contra o ajuste de Macri, o FMI e os governadores”. O nome de Cristina não aparece aí porque a ela Nico destina mensagens carinhosas.
As repercussões do voto em branco de 2015 só podem ser compreendidas nesse marco. Se muitos peronistas acusam a esquerda e não Massa [12] (em que eles votaram massivamente em 2009) de responsabilidade pela derrota de Scioli [13] – para além de seu desconhecimento da aritmética mais elementar – e se se compreende que a esquerda argentina é uma versão do peronismo, é porque a esquerda se apresenta dessa maneira. O resultado de se afirmar no terreno inimigo foi que, em 2015, os votos da FIT, brancos e nulos somaram um milhão e seiscentos mil votos no primeiro turno, com 812 mil votos em Del Caño. No segundo, essa massa de votantes se reduziu a 637 mil votos em brancos. Nem sequer os próprios votantes da FIT chegaram (e não se sabe como poderiam fazê-lo) no essencial da política classista: que não se vota nunca em burgueses. É um jogo de espelhos: se o peronismo exige o voto da esquerda, é porque existe uma esquerda que afirma há 50 anos que é como o peronismo, mas melhorado.
Evitam contradizer as expectativas do eleitorado em alguns setores burgueses, porque estão de acordo com essa “diferenciação”. A que se faz entre grandes capitais e “os outros”, os estrangeiros e “os outros”, os monopolistas e “os outros”, os financeiros e “os outros”. Cada adjetivação é uma vacilação, cada análise estabelece uma diferença que contém em si uma versão amável do capital.
Se a esquerda considera que os programas [o dela e o do peronismo] não são opostos, e que tem pontos em comum, qual é a diferença? A luta, a honestidade, a inteligência e a consequência. O mesmo programa com dirigentes melhores. Por isso, encara com naturalidade um peso eleitoral perto da margem de erro. Porque sabe que toda a sociedade percebe que, se se propõe um peronismo melhorado (mais consequente), mas ínfimo, é preferível o peronismo tal e qual, que é sujo, vacilante, bagunçado, é das multidões. O que a esquerda diz que o peronismo não pode dizer? Vigência dos direitos humanos, defesa a todo custo do regime democrático, críticas ao FMI e ao sistema financeiro, aumento de salários, regulacionismo na prostituição, defesa do emprego através da defesa das PyMEs [14], soberania nacional, fratura da unidade de classe trabalhadora com base nas “identidades”, aliança com burgueses sensíveis. Quando o peronismo insiste sobre o caráter puro da esquerda, está nos alertando sobre o problema: pureza e impureza são variantes mais ou menos contaminadas do mesmo.
Ao contrário, se Razon y Revolución existe é para afirmar que a independência de classe e o socialismo são um abismo que nos separa dos patrões peronistas, dos escravistas como Samid [15] e das beatas como Cristina. E não uma ponte que nos une porque somos quase o mesmo. A luta não é o mesmo que a construção política; na primeira sempre propomos ir juntos, na segunda, que tomem distância. Mas o programa político que se sustenta é que define os objetivos das lutas comuns, não a quantidade ou o sentido comum.
Não se mata o vírus da dengue de maneira direta. Elimina-se o vetor que o transmite. O mosquito não causa doença em si mesmo, mas não há doença sem ele. O saneamento avança ao definir e combater a transmissão, não os vírus em si mesmos. Por isso, para eliminar a doença de Chagas ataca-se os déficits habitacionais que facilitam a existência de barbeiros, que portam o causador da doença. O peronismo é o vetor do capitalismo argentino, o seu barbeiro, o mosquito que o aloja garantindo sua existência e sua implantação. Como todo vetor, está sempre presente, insidiosamente. O pouco entusiasmo que o canto de “vamos voltar” gera é devido ao fato de que o peronismo nunca foi embora, esteve como fiador do capital também nesses 4 anos e é a fonte do desengano e da perplexidade.
E o que faz a esquerda, sobretudo a FIT? Contribui para o desinteresse – não o gera, obviamente, mas também não o combate. Porque a FIT não tem muito, mas tem algo, e parece que ter “algo” lhe causa problema. Flerta com isso. E foca sua atividade em disputar as migalhas que caem da mesa da burguesia. Esse algo começa a pesar como uma âncora. Uma alternativa revolucionária só pode se construir dizendo tudo isso e tirando sua conclusão: o problema não vem de nenhum outro lugar a não ser do sistema que precisamos abolir. A solução é sua superação: o socialismo. O caminho é a construção independente e oposta às opções, a todas as opções burguesas.
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1. Ano de grande convulsão social na Argentina; em dezembro daquele ano, houve uma série de greves, confrontos de ruas com 27 mortos e mais de 100 feridos, com cinco presidentes ocupando o cargo no intervalo de onze dias.
2. Ano do retorno de Perón de seu exílio da Espanha e da eleição de Héctor Cámpora, do Partido Justicialista que, ao renunciar, abriu caminho para a terceira eleição de Perón para presidente.
3. Coligação política de centro-direita criada em 2015, que levou Macri ao poder.
4. Frente para la Victoria: Coligação política argentina e uma ala do Partido Justicialista, fundada em 2003 para lançar a candidatura de Nestor Kirchner.
5. Maneira pela qual os kirchneristas chamam seu próprio período na presidência da Argentina, em comparação com a “década perdida” dos governos de Carlos Menem nos anos 90.
6. Nicolás Dujovne, atual ministro da Economia da Argentina.
7. Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia da Argentina de 2002 a 2005, candidato a presidente nas eleições de 2019.
8. Referência ao movimento de luta pelo direito ao aborto, demarcado pelo símbolo dos lenços nas passeatas.
9. Alfredo Casero, humorista, ator e músico; Alfredo Omero, político e empresário; Adolfo Rodríguez Saá, ex-presidente da Argentina, quando da crise de 2001.
10. Nicolas del Caño, dirigente do PTS (Partido de los Trabajadores Socialistas), candidato a presidente nas eleições de 2019 pela FIT (Frente de Izquierda y de los Trabajadores).
11. José Manual de la Sota, política argentino, ex-governador da província de Córdoba.
12. Sérgio Massa, advogado e político argentino, terceiro colocado nas eleições à presidência de 2015.
13. Vice-presidente da Argentina entre 2003 e 2007, governador da província de Buenos Aires entre 2007 e 2015 e candidato derrotado à presidência em 2015.
14. Abreviação para “pequenas e médias empresas”.
15. José Alberto Samid, empresário do ramo frigorífico e político argentino.