Transição Socialista

Após derrubar Evo, que fazer?

Para a compreensão do texto abaixo, recomendamos a leitura dos diversos relatos produzidos diretamente da Bolívia por nosso camarada Pablo Paniagua (ver aqui).  Recomendamos também, a visualização dos diversos vídeos sobre a situação boliviana, publicados em nossa página de facebook (ver galeria aqui), onde acompanhamos o dia a dia dos acontecimentos.

O governo capitalista de Morales era repudiado pelas massas

Há quem pense que o fato de um descendente indígena chegar ao poder burguês, à condução do Estado da burguesia, seja um avanço, um “progresso” (caracterizam esse governo com a vaga noção de “progressista”). Baseados numa suposta emancipação cultural, identitária, ignoram que a emancipação econômica é condição sine qua non de qualquer emancipação. 

Há quem acredite que pintar um Estado burguês de cores indígenas suspenderia alguma lei econômica do capitalismo – como a lei do valor e a lei geral da acumulação capitalista. Pelo contrário, a economia boliviana seguiu sendo uma economia de mercado, regulada pelo mercado capitalista mundial; os preços das mercadorias vendidas internamente pelas diversas empresas privadas e públicas seguiram definidos pela lei do valor (trabalho abstrato, troca de mercadorias); e a lei geral da acumulação capitalista regeu, dominou e controlou tudo na economia, determinando que a pobreza será cada vez maior e mais concentrada no polo da esmagadora maioria da população, e a riqueza, inversamente, será cada vez mais concentrada num pequeno e diminuto polo da minoria da população. 

Não há qualquer ação estatal capitalista que possa se contrapor a tais leis gerais, que regem o sistema capitalista em âmbito mundial e circunscrevem a frágil economia capitalista boliviana.

Não espanta portanto que a maioria da população tenha se revoltado contra o governo. Evo não foi eleito para trazer progresso à sua população. Evo foi eleito para paralisar uma revolta popular, para contornar uma grave crise política de dominação da burguesia, fruto do levante em outubro de 2003 no país. Evo foi eleito para enganar e paralisar as massas proletárias e camponesas, e usou seus símbolos e mistificações para esse propósito.

Quem não entender que a revolta que derrubou Evo do poder é parte do mesmo processo que quase derrubou Lenin Moreno do Equador e Piñera no Chile não está entendendo o que se passa no continente nem na economia capitalista mundial. Na verdade, a ingovernabilidade burguesa nesses países frágeis (bem como na Venezuela) é resposta instintiva do proletariado, que já percebe o estouro de uma nova crise econômica mundial. 

Como ensinou Marx, a classe trabalhadora entra em ação não quando já está no meio de uma crise econômica, mas pouco antes, quando o ciclo econômico estancou em seu ápice, e começa a ficar claro que haverá uma virada rumo a uma crise. A classe trabalhadora percebe que as coisas mudarão e ficarão piores. Os analistas burgueses falam muito da prosperidade da Bolívia e do baixo nível de desemprego (formal) no país, mas esquecem-se, por exemplo, de que os protestos de junho de 2013 no Brasil coincidiram com o momento da menor taxa de desemprego neste país no último período histórico. Eles também não falavam que o Chile era um país modelo em prosperidade? 

A conjuntura política boliviana – como a de qualquer país – não pode nem deve ser explicada apenas pela sua estrutura interna, nem mesmo apenas pela sua forma de inserção no mercado mundial, mas acima de tudo pelo relógio do ciclo econômico capitalista mundial. É ele que está levando países tão diferentes quanto Equador, Chile, Bolívia, Venezuela, Haiti, Hong Kong, Palestina, Iraque, Irã, França, Espanha, à ingovernabilidade política. O sistema está estourando a partir dos elos mais frágeis de cada cadeia imperialista de cada continente. 

A falácia do “Golpe de Estado”

Apesar disso, incrivelmente, parte da “esquerda” se coloca contra as massas, em defesa de governos que, para além dos símbolos que produzem e das mentiras que falam de si mesmos, nada têm de esquerda, de socialistas ou progressistas.

Foi Evo Morales quem convocou a OEA para o seu país, para fazer a auditoria da eleição. Será que um sujeito perspicaz como Evo teria sido inepto e chamado por engano uma agência imperialista para fazer uma auditoria contrária a seu governo? Há quem acredite em histórias tão tolas. A verdade, entretanto, é que o imperialismo americano, sobretudo temeroso frente à ingovernabilidade no continente (com os exemplos do Equador e do Chile batendo à porta) deu inicialmente aval a Evo. Este só convocou a OEA porque sabia de antemão que este órgão ia legitimar sua eleição. Eis por que Luis Almagro deu suas várias declarações em apoio a Evo assim que colocou os pés na Bolívia. 

O que aconteceu foi que, após a chegada de Almagro, um fato político irritou ainda mais os bolivianos. Em Vila Vila, bandos armados pelo MAS atacaram violentamente uma caravana de estudantes e mineiros das regiões de Sucre e Potosí, que iam a La Paz protestar. Esse fato, ocorrido no sábado, 10 de novembro, foi a gota d’água para a derrubada do governo. Vídeos cobrindo o massacre correram o país como rastilho de pólvora, incitando uma revolta inimaginável (veja alguns em nossa página de facebook). Após isso, o diminuto apoio que Morales tinha em trabalhadores e camponeses se dissipou (levando os apoiadores de Morales, inclusive, a uma posição neutra). O “Fora Morales” se tornou a reivindicação central. As centrais sindicais operárias e de camponeses foram forçadas pelas suas bases a se afastar do presidente, e no próprio sábado à noite deram declarações pela renúncia. A situação ficou completamente insustentável, e Morales foi obrigado a chamar por novas eleições no domingo pela manhã. Não adiantava mais, a população não queria mais só novas eleições, ela queria que o presidente saísse imediatamente. 

Caso Morales seguisse no poder, a ingovernabilidade da burguesia boliviana se ampliaria muito, e rapidamente. As próprias Forças Armadas foram obrigadas a sugerir a renúncia. Há incautos analistas políticos que consideram que, ao menos devido a isso, a esse pequeno gesto de “recomendação”, poder-se-ia caracterizar a derrubada como uma golpe de Estado militar. Nada mais simplório e miserável intelectualmente. Isso é contentar-se pobremente com uma foto quando se pode ter acesso a um filme. Assim, com apenas uma foto, pode-se fazer qualquer recorte e pode-se comparar a foto a qualquer outra conjuntura e situação. Pode-se, por exemplo, comparar a sugestão de tal renúncia a golpes militares latino-americanos dos anos 1960. Isso é um procedimento de charlatães políticos, e não de analistas sérios.

As Forças Armadas sugeriram a queda Morales pois do contrário talvez não segurariam a revolta social que se ergueria contra o presidente (revolta que, após dividir a polícia, poderia dividir as próprias Forças Armadas). A burguesia poderia perder seu controle sobre sua máquina de repressão. Quanto tempo até motins no exército, com soldados elegendo seus próprios representantes (como começaram a fazer os policiais, em seus motins)?

Aliás, o que se passou na Bolívia é similar ao que se passa no Chile de Piñera, o qual recuou em uma série de medidas frente à revolta popular. A dimensão da crise de dominação da burguesia em nosso continente parece ser tão grande – à altura da crise capitalista que se aproxima – que mesmo as máquinas de guerra da burguesia, seus exércitos, parecem falir e não dar conta do que se avizinha.

O MAS de Morales e seus apoiadores são os que verdadeiramente atuaram a todo momento para fazer os militares assumirem, sobretudo na pessoa do general Kaliman (aquele que fez toda a sua carreira sob Evo e era o queridinho do presidente). Assim poderiam ter sua narrativa de golpe perfeita. Todos os membros do MAS na linha sucessória constitucional renunciaram, esperando que isso geraria tal crise de poder que não sobraria opção senão a assunção por parte do general. Todavia, não contavam com a astúcia da direitosa Jeanine Áñez, oposicionista e vice-presidente do Senado, que chamou constitucionalmente o poder para si. Tão logo fez isso, a farsa do MAS caiu por terra; este partido começou a dar declarações de que a carta de renúncia de Evo e Linera não fora aceita pelo Congresso. Salvatierra, a presidente do Senado, que também tinha renunciado, tentou voltar ao Senado e falar que a sua renúncia tinha sido só de brincadeirinha. A própria Salvatierra tentou entrar no Senado, foi proibida tranquilamente por uma fileira de policiais, e deu um jeito de rasgar suas vestes, para fingir que havia sido agredida juntamente com seus militantes. Nunca uma farsa burguesa pareceu tão ridícula aos olhos internacionais.

Falindo a tentativa de jogar o poder aos militares pela via constitucional, sobrava apenas a via das ruas. O MAS usou sua militância, bem como bandos comprados (com setores infelizmente empobrecidos, miseráveis, lumpens e semi-lumpens) para criar caos e terror em La Paz, El Alto e em regiões controladas pelo narcotráfico no Chapare. Alguns desses bandos defendiam abertamente a tomada do poder pelo general Kaliman (como em El Alto). Assim eles conseguiram, ao menos, trazer a polícia novamente para as ruas, bem como as Forças Armadas. Fortaleceu-se a narrativa mentirosa do “golpe”. Mas, curiosamente, via-se em La Paz e El Alto a participação de populares ao lado das forças policiais, visando a conter os bandos masistas (ainda assim, é claro, em pequeno número, dado que os apoiadores do MAS tinham dinamites e armas de fogo, aterrorizando qualquer um não armado ou não preparado para o confronto). Além disso, diversas assembleias de bairro, espontâneas, ocorreram em La Paz e El Alto, para definir posições contrárias à participação nas atividades do MAS. Denunciou-se amplamente que, sobretudo em El Alto, autoridades locais, vinculadas ao MAS, forçavam a população a participar das manifestações (com ameaças de multas, de saques e fogo a casas).

Apesar de toda a escaramuça, a linha sucessória do poder correu conforme manda a legalidade democrático-burguesa, e o novo poder foi chancelado pelo parlamento. Nunca antes na história se viu um “golpe” como esse, em que a transferência do poder foi mediada pelo poder legislativo, onde os parlamentares “golpeados” não foram cassados, onde os apoiadores políticos do derrubado puderam convocar marchas e se reunir (sendo reprimidos apenas nas tentativas de espalhar caos, com dinamites e armas de fogo). Nesse “golpe”, curiosamente, os “golpeados” sentaram-se para negociar com o novo poder desde o primeiro dia. A massa empobrecida foi usada como bucha de canhão no grande teatro, para que o MAS obtivesse melhores condições de negociação, visando a uma melhor participação nas próximas eleições. 

Um golpe de Estado é definido como mudança de regime político visando ao aumento da violência estatal (ou seja, da classe dominante contra a dominada). As mudanças de regime que visam ao aumento da violência fazem-no pelo fortalecimento do Poder Executivo. Entretanto, neste “golpe” sui generis que se passa na Bolívia, e que só existe na cabeça da suposta “esquerda”, um governo mais fraco que o anterior assumiu o poder, e nele se manifestou uma fraqueza do poder executivo, chancelado pelo poder legislativo. Não houve (ao menos por enquanto) mudança de regime político na Bolívia.

O que fazer na nova etapa da luta de classes na Bolívia?

Um governo frágil foi estabelecido (dado que o poder burguês ficou fraglizado), com respaldo na ampla maioria da população, pois esta desejava a saída do presidente e a realização de novas eleições. Dado que o novo governo chamou essa tarefa para si, hoje a maioria da população trabalhadora – expressa inclusive em assembleias de bairro – pede a pacificação do país para uma nova eleição. 

Não havia nem houve condições reais de estabelecimento de um duplo poder consistente sobretudo porque os Comitês Cívicos, que poderiam ser gérmen de um duplo poder, ficaram nas mãos de setores estranhos ao proletariado. As exceções foram os Comitês Cívicos de Sucre e Potosí, que deram vazão a posições proletárias e vincularam-se às CODs (Centrais Operárias Departamentais, vinculadas à COB). Ainda assim, mesmo em tais comitês as posições propriamente proletárias não se expressaram de forma clara, com uma estratégia e um caminho próprio, pois não há organização proletária revolucionária na Bolívia (as mais à esquerda misturam uma estratégia revolucionária com uma linha anti-imperialista, nacionalista e estatista). 

Devido a tudo isso, o ânimo político geral do proletariado não ultrapassou a defesa de reivindicações democrático-burguesas (mesmo que isso tenha se expresso de forma radical, a ponto de derrubar o governo burguês e criar uma crise política grave no seio da burguesia).

Às organizações revolucionárias do proletariado boliviano, a tarefa fundamental do momento é aproveitar ao máximo as liberdades democrático-burguesas conquistadas no processo; lutar para lançar verdadeiros líderes proletários e camponeses nas próximas eleições burguesas. Estes devem apresentar amplamente a linha “Evo foi tarde. Mas Camacho e Mesa também não são a solução”. A esquerda revolucionária tem que dialogar com as ilusões políticas da ampla maioria na democracia burguesa. Esse processo de diálogo pode demorar meses ou anos, até que tais ilusões sejam idealmente superadas. 

Não se pode ter medo de ficar em minoria. A esquerda revolucionária tem que esclarecer a maioria da população revoltada que o novo governo que entrar – seja qual for – manterá e aprofundará a mesma política nefasta de Evo, odiada pela maioria. E que somente um governo proletário, estruturado de baixo para cima, controlado verdadeiramente pela própria população, socializando e planificando a economia, poderá apontar uma solução real para as mazelas capitalistas do país. 

Pode-se demorar para ter resultados, mas certamente os melhores elementos serão aproximados no próximo período e se caminhará para a superação da crise da direção do proletariado.