Transição Socialista

Balanço da eleição presidencial argentina

A eleição presidencial – bem como de alguns governadores de Província, parte da Câmara dos Deputados e do Senado, e da Prefeitura da Cidade de Buenos Aires – realizada na Argentina no dia 27/10 teve um resultado em parte já esperado. Venceu Alberto Fernández, com 48,1% dos votos, ficando seu adversário Maurício Macri com 40,1% (na Argentina, quando um candidato alcança 45% dos votos ou 40% mais dez por cento de diferença do segundo colocado, a vitória já é no primeiro turno). O inesperado foi a recomposição dos votos de Macri, que obtivera 32,0% nas PASO. Apesar de toda a sua catastrófica gestão, Macri recebeu – sobretudo na reta final – um grande número de “votos úteis”, por parte de eleitores de outros candidatos (Lavagna, Juan José Gómez Centurión e José Luis Espert), contrários ao retorno do peronismo.

Vale apontar que, embora Cambiemos (a aliança eleitoral de Macri) tenha perdido a eleição para governador na província de Buenos Aires – onde o ex-Ministro da Economia de Cristina, Axel Kicillof, derrotou Maria Eugenia Vidal, candidata de Macri –, bem como tenha perdido na província de Catamarca, ganhou todavia a prefeitura da Cidade Autônoma de Buenos Aires. O atual prefeito, Horacio Rodríguez Larreta, foi reeleito com 55,90% dos votos, contra 35,07% do kirchnerista Matías Lammens.

Também a Câmara dos Deputados mostrou um resultado que vale ser analisado. Os peronistas estarão no controle de 120 dos 257 assentos (tendo ganhado 64 dos 130 que estavam em disputa), sendo necessários 129 para conseguir a maioria, algo que parece factível de ser alcançado mediante alianças. No Senado, formado por 72 assentos, a vitória foi mais contundente, com 37 dos assentos ficando nas mãos dos peronistas (tendo ganhado 13 dos 24 assentos em disputa) – além da Casa passar a ser presidida por Cristina, como logo explicaremos.

Entretanto, o bom desempenho dos peronistas não significa que Cambiemos de Macri saiu enfraquecido do processo: conseguiu, inclusive, nove acentos adicionais em relação às eleições de 2015, com 119 assentos, permanecendo com a mesma presença no Senado. Macri, além disso, melhorou seu desempenho em relação às eleições de 2015 em províncias como Córdoba, Entre Rios, Mendoza, Santa Fé e San Luis. A derrota, assim, não foi tão acachapante quanto era prevista pelos institutos de pesquisa.

Já o desempenho da “esquerda”, que teve como candidato Nícolas del Caño, do PTS, foi decepcionante: nas PASO (primárias, em agosto) del Caño tivera 2,86% dos votos, mas agora obteve apenas 2,16% – uma redução de 0,70%. Para onde teriam ido esses votos, cerca de 20%, perdidos em apenas dois meses? Não é difícil de imaginar e o próprio PTS parece reconhecê-lo, colocando as dificuldades passadas na conta da “polarização” pela qual passa a Argentina. Uma parte significativa do eleitorado da FIT terminou por votar em Alberto Fernández – como, aliás, fizera nas eleições de 2015, quando votou no peronista Daniel Scioli contra Macri.

Como já expusemos em nosso balanço das PASO, acreditamos que o que explica não só essa migração de votos entre as PASO e as eleições de outubro, mas a debacle geral da suposta “esquerda”, é a sua incapacidade de se distinguir programaticamente do peronismo e, nesse sentido, de se oferecer como alternativa consequente à classe trabalhadora. Como sempre falamos, por que, numa eleição polarizada, alguém votaria na cópia se há o original? O peronismo nunca se pretendeu nada além de gerenciar o Estado burguês argentino, coisa na qual tem experiência que remonta a mais de meio século. A “esquerda”, ao invés de oferecer uma perspectiva revolucionária, através de um programa socialista, desconversa, fala fino, adapta-se ao programa gestor do Estado burguês, buscando ganhar votos justamente na diluição. Assim ela pode ser levada a sério enquanto gestora burguesa, e (menos ainda) como algo novo, revolucionário. Naturalmente, ela fracassou porque merecia fracassar.

Os peronistas não brincam em serviço no que diz respeito a chegar ao poder. Basta ver a estratégia de Cristina nestas eleições: sabendo provocar imenso rechaço em alguns setores da população, saiu do proscênio do palco para dar protagonismo a uma figura relativamente desconhecida, Alberto Fernández. Assim, Cristina conseguiu não só voltar ao poder, mas um cargo de vice-presidente que, na Argentina, está muito longe de prêmio de consolo ou mero assento à espera da vacância do titular (leia-se impeachment). Nisso, Cristina foi mais inteligente que Lula – ela aprendeu com o país vizinho –, pois Lula inicialmente se lançou em 2018 como cabeça de chapa (e depois foi a vice, e depois vice da vice). Isso fez com que se ampliasse o ódio popular contra si, contra sua chapa, e se catapultasse Bolsonaro.

Agora Alberto Fernández terá como concorrente não apenas a crise capitalista de seu país, mas também sua própria vice, sempre pronta para puxar-lhe o tapete. Devido a reformas administrativas realizadas em 1994, o Senado Federal argentino é comandado pelo Vice-Presidente da República, que tem voto de Minerva, que é o que decide votações que terminam em empate. Para alguém na situação de Cristina, não é um poder a ser desprezado. Afinal, em março deste ano, a Suprema Corte Argentina confirmou uma ordem de prisão emitida contra a própria Cristina, em dezembro de 2017, a respeito de um suposto acordo dos Kirchner com o Irã para acobertar os autores do atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em julho de 1994, que matou 84 pessoas. O promotor responsável pelo caso, Alberto Nisman, que denunciou Cristina, foi assassinado. Acontece que, para ser presa, Cristina precisaria perder seu foro privilegiado como Senadora e isso só com a votação favorável de 2/3 dos senadores, o que não aconteceu. Além do caso da Amia, Cristina, bem como muitos de seus assessores, é julgada por corrupção e desvio de verba pública. Tornada vice-presidente, ela não só mantém o foro privilegiado como essa posição estratégica no Senado (de resto, de maioria peronista).

Por que os peronistas voltaram ao poder?

Como os peronistas conseguiram voltar ao Executivo, bem como ganhar posições significativas no Legislativo, depois de sua derrota em 2015? Por que esse pesadelo se repete?

A vitória se explica por dois motivos: primeiro – mais importante – pela ausência de partido de esquerda na Argentina; segundo, pelas contradições e incapacidades do próprio governo Macri.

Os peronistas souberam trabalhar – de forma oportunista, claro – as contradições de Macri. Eleito prometendo reativar a economia, Macri deixa a Casa Rosada com uma taxa de inflação de 54% ao ano, desemprego em torno de 10% e a pobreza atingindo 35,4% dos argentinos. O duro ajuste que aplicou sobre a classe trabalhadora foi o que permitiu a ascensão de Alberto Fernández.

O trabalho de tais contradições por parte dos peronistas é oportunista porque o novo gestor do Estado burguês argentino continuará os ataques realizados pelo derrotado. Eis por que Fernández já disse que é um “peronista progressista liberal”, e por que se reuniu, pouco antes de ser eleito, com representantes da UIA (União Industrial Argentina), da CGT (Confederação Geral do Trabalho, principal central sindicato da Argentina), vários governadores, para costurar um “Pacto Social”.

O termo “pacto social” não é estranho à classe trabalhadora argentina, nem é uma novidade vindo dos peronistas. No governo de 1973 do General Perón foi realizado um “Pacto Social” entre trabalhadores e empresários, cujo arranjo era o seguinte: a burguesia se comprometia com um controle de preços e um aumento geral de salários, com a contrapartida, da parte dos trabalhadores, da suspensão da negociação coletiva por um prazo de dois anos, não só impedindo a recomposição salarial por um período muito grande, como atacando a livre organização dos trabalhadores. Imagine-se o que significará, em termos de piora das condições de vida, a repetição de uma medida como essa nos dias de hoje, com a inflação como está! Por trás do “pacto” – nome que dá a entender que as duas classes, burguesia e proletariado, perdem, num acordo ou trégua – está escondido um nefasto pacote capitalista, camuflado.

O “controle de preços” uma medida completamente estúpida (no Brasil, feita pelo governo de Sarney), que visa a jogar o peso da crise nas costas dos trabalhadores (e em dobro) na hora certa. Trata-se da velha utopia de que os mercados podem ser regulados, de que se poderia efetivamente intervir no processo de formação de preços. Nada mais alheio ao pensamento de Marx, que considera o mercado absolutamente irracional e absolutamente incontrolável. Na verdade, o único preço de mercadoria que a classe trabalhadora efetivamente pode controlar é a sua Força de Trabalho e nada mais. Inverter essa realidade é entregar as energias e resistências da classe trabalhadora ao capital. O peronismo faz isso fingindo que haverá um “aumento geral dos salários”, mas, na realidade, qualquer aumento será corroído muito rapidamente no momento mesmo de descongelamento dos preços (e, diga-se de passagem, uma das coisas mais lastimáveis é o fato de o “controle de preços” ser defendido pela suposta “esquerda independente”, argentina e brasileira, mesmo a dita “trotskista”!).

Alberto Fernández conta com o fato de o peronismo ter um controle muito maior sobre os sindicatos e os movimentos sociais – em muitos sentidos parecido com o controle que o PT exerce aqui no Brasil – do que o que Macri tinha para poder aprovar novos ataques. Bem a propósito, esse controle se mostrou muito funcional para os peronistas nos seus quatro anos de “oposição” a Macri: embora fizessem muita bravata, seguraram as movimentações de rua para que não fugissem do controle, para que Macri ficasse desgastado com a aprovação de reformas impopulares, como a da Previdência (aprovada no fim de dezembro de 2017), permitindo, assim, seu retorno triunfal nas eleições deste ano. Agora Fernández governará pisando o terreno que Macri preparou para ele.

Foi essa situação, facilitada pela inexistência de partido de esquerda na Argentina, que possibilitou ao peronismo se aproveitar da falência do governo inepto de Macri. O peronismo é o que há de mais nefasto não apenas porque consegue impor as mesmas medidas capitalistas que os supostos “liberais”, mas porque o faz ao mesmo tempo em que controla os organismos de massa da classe trabalhadora (sindicatos) e bloqueia a criação de uma direção revolucionária. Veja-se o cretinismo parlamentar-burguês, vergonhoso, em que se enfiou a FIT-U (PTS, PO e MAS, sobretudo), para buscar ser palatável e disputar votos com a base kirchneristas. Via Estado burguês, o peronismo compra montes de “professores” de “esquerda”, montes de “formadores de opinião”, montes de sindicalistas, montes de parlamentares, arrivistas e aventureiros preocupados com ascensão individual, e não com política revolucionária.

Alberto Fernández, Bolsonaro e os ventos novos na América Latina

Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência… o PT segue, no Brasil, rigorosamente o mesmo script dos peronistas, com as mesmas expectativas quanto às eleições presidenciais de 2020. Não é à toa que, no dia da eleição – que, por coincidência, também é o do aniversário de Lula –, Alberto aproveitou para tirar uma foto fazendo um “L” de Lula Livre: a vitória dos oportunistas argentinos aumenta a esperança dos parasitas petistas por aqui. Inversamente, Bolsonaro se pôs a lamentar a derrota do seu candidato de predileção e falou até da possibilidade de afastar a Argentina do falido Mercosul. Trata-se de mais um diversionismo de Bolsonaro – ou alguém se esquece de que ele elogiou Israel e arranjou briga com os países Árabes, mas justamente está agora na Arábia para fazer negócios? Ou alguém se esquece de que ele ameaçou a China “comunista” e agora passou por lá dizendo ser um “belo capitalismo”? O falido Mercosul também será mantido e Bolsonaro e Fernández sabem que têm muito mais em comum do que supõe a vã filosofia. Eis por que Alberto Fernández fez o mesmo teatrinho; chegou a falar em rever o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, mas foi baixando o tom, já que é do máximo interesse da burguesia agrária argentina a abertura do mercado europeu para o escoamento de seus produtos. Em pouco tempo veremos casos de amor entre o chefe do Palácio da Alvorada e o da Casa Rosada (se o primeiro não cair antes).

É verdade que alguns produtores rurais argentinos, durante a campanha, externaram preocupações com a possível vitória dos peronistas (de resto, contemporizadas após a vitória), já que as lembranças de 2008 continuam vivas. Naquele ano, Cristina era presidente e elevou as retenciones, os impostos de exportação de commodities agrícolas, provocando um confronto sério com o setor agrícola do país; o aumento de impostos eventualmente foi derrubado e provocou a renúncia do então Ministro da Economia e do então chefe de gabinete de Cristina, chamado… Alberto Fernández! Desde então e até pouco tempo antes de sua transformação em cabeça de chapa, ele foi um crítico duro de políticas de Cristina, mas mostrou-se um candidato mais palatável, capaz de reunir diversas facções do peronismo em torno de si, e, afinal das contas, um presidente viável, pelo menos para ganhar as eleições. A despeito do estilo de confronto de Bolsonaro, o próprio estilo mais pragmático de Alberto e, sobretudo, a realidade da interdependência econômica indica que as relações comerciais e a situação entre os dois países se estabilizarão no médio prazo. A ver.

O azar das burguesias argentina e brasileira é que seus governantes podem até passar a se entender, mas há um novo elemento em jogo que pode desestabilizar a dominação de ambas: a revolta social que explodiu como rastilho de pólvora na América Latina e pode muito bem chegar aos dois países. Equador, Bolívia e Chile passaram ou passam por movimentações de massa que têm emparedado seus governos e os feito recuar de seus ataques aos trabalhadores. E certamente podem servir de inspiração para que a classe trabalhadora argentina se revolte. Motivos evidentemente não faltam. Tanto Equador quanto Bolívia e Chile poderiam adentrar uma situação pré-revolucionária (se houvesse partido revolucionário, é claro). A “vantagem” de Alberto em relação a Macri, como já falamos, é seu controle sobre um aparato sindical e de movimento social muito mais poderoso, mas as forças da História são mais fortes do que os poderes materiais das burocracias. Pouco depois das PASO, após aquela mesma reunião com a UIA e a CGT de que já falamos, Alberto pediu para que os argentinos evitassem sair às ruas e evitar situações que pudessem levar à violência… Sua eleição não poderia ser prejudicada por “contratempos” desse tipo. Por quanto tempo mais será possível controlar essa revolta? As ruas darão a resposta – esperamos que em breve.

Falência da esquerda e risco de bonapartismo

Mas se as burguesias brasileira e argentina têm azar frente ao descontentamento social crescente e à ingovernabilidade (elemento objetivo), estão em vantagem enorme no quesito partido (elemento subjetivo partido), pois não há partido de esquerda nesses dois países. As eleições registraram a profunda crise de direção da dita “esquerda” não-kirchnerista. Esta comprovou mais uma vez, em seu programa e agitação eleitoral, nem ser de esquerda, mas centrista (pequeno-burguesa). É caríssimo o preço que se paga e se pagará pelo afastamento do programa revolucionário, sobretudo da parte dos supostos “trotskistas”, que há décadas se afastaram do programa socialista do presente, o Programa de Transição, e adaptaram-se a concepções social-democratas (“direitos democráticos” pequeno-burgueses e culturalistas), estatistas, sindicalistas (programa mínimo) ou stalinistas (anti-imperialismo abstrato, FMI etc.).

O resultado eleitoral, desse ponto de vista, não poderia ser mais catastrófico para o conjunto da classe trabalhadora argentina, e para a resolução das contradições do presente capitalista. Assim, o retorno do kirchnerismo ao poder, mesmo que mediado pelo “palatável” Fernández, significa a completa falência histórica da “esquerda” partidária não kirchnerista, ou seja, significa que uma nova esquerda só pode ser construída contra e sobre os charlatães que usam em vão os nomes de Marx, Lenin e Trotsky.

A eleição de Fernández (mera máscara de Cristina ou mediação para o retorno desta) significa que a burguesia latino-americana se prepara com suas armas mais eficazes – o bonapartismo – para conter o ascenso das massas trabalhadoras no continente. O mesmo ela pretende fazer no Brasil com Lula, sob os escombros da falida “oposição de esquerda” ao PT (com destaque ao lulista PSOL). A eleição de Alberto Fernández anuncia: Cristina e o redivivo Lula são os bombeiros de um continente em chamas.