As PASO foram no dia 11 de agosto e o resultado não surpreendeu quanto ao vencedor – todas as pesquisas apontavam vantagem dos Fernández em relação a Macri, em uma margem de 2 a 4% –, mas sim quanto à diferença: a chapa Fernández-Fernández teve uma vitória acachapante sobre a de Macri em todos os distritos, salvo os de Córdoba e na Cidade Autônoma de Buenos Aires (não confundir com a província de Buenos Aires, na qual ele também perdeu), com diferença de cerca de 15% dos votos. Se as eleições fossem hoje, o destino de Macri já estaria selado: na Argentina, quando um competidor alcança 45% dos votos, ou 40% mais uma diferença de 10 pontos do segundo colocado, a vitória já é em primeiro turno. Na província de Buenos Aires, além de “Cambiemos” de Macri perder para presidente, perdeu também para governador: Maria Eugenia Vidal, atual governadora, perdeu por um percentual ainda maior (cerca de 17%!) para Alex Kicilloff, ex-ministro da economia de Cristina Fernández Kirchner de 2013 a 2015. Em outra vitória do kirchnerismo, Alicia Kirchner, irmã de Néstor, foi reeleita para governadora da província de Santa Cruz.
Voltando aos resultados presidenciais, a candidatura “centrista” de Lavagna ficou com 8% dos votos e, em quarto lugar, ficou Nicolas del Caño pela FIT-U (Frente de Izquierda y de los Trabajadores – Unidad) com 2,86% dos votos; também pela “esquerda”, Manuela Castañeira, do Novo MAS, ficou com 0,71%, não atingindo o porcentual de votos necessários para participar das eleições propriamente ditas (1,5%) – as PASO foram criadas, entre outras coisas, justamente para diminuir a quantidade de candidaturas no páreo. Voltaremos a falar da esquerda mais adiante. No mais, é notável a quantidade de votos em branco e nulos: somados, dão 4,78% do total, maior do que a soma dos votos da “esquerda” (vale lembrar que a participação nas PASO é obrigatória, sob pena de multa, tendo alcançado nesse ano índice de participação de mais de 75%)1.
Os mercados reagiram mal ao resultado: o dólar disparou 23%, forçando o BC argentino a aumentar a taxa de juros para 74%, e o peso caiu vertiginosamente, chegando a cair 30%. Toda vez que os Fernández subiam nas pesquisas era assim, mas dessa vez foi um terremoto, dado a magnitude da vitória. O pânico parece injustificado: o economista Matías Kulfas, próximo de Alberto Fernández, tentou botar panos quentes, afirmando ao La Nación que não há perspectiva de voltar a controlar o acesso ao câmbio e que há intenção de cumprir com os pagamentos da dívida externa. Quanto ao empréstimo de US$ 56 bilhões que o FMI recentemente concedeu a Macri, o cenário mais provável em um eventual governo peronista não é de um calote, mas sim de uma renegociação de suas condições. Uma coisa é bravatear no palanque, outra na Casa Rosada.
Seja como for, o resultado teve reverberações aqui, tanto econômicas – o Ibovespa recuou 2% – quanto políticas. Bolsonaro, que havia endossado publicamente a candidatura de Macri, disse, da sua maneira característica, que a vitória dos Fernández significaria a transformação da Argentina em uma nova Venezuela, samba de uma nota só que ele já havia tocado algumas boas vezes. Setores da ala psiquiátrica do governo cantaram a bola de que o Brasil deveria se retirar do Mercosul, em caso da vitória dos Fernández; já os setores mais sóbrios lembraram que, dado que a Argentina é o terceiro destino de exportação dos produtos brasileiros, uma atitude precipitada dessas poderia ser catastrófica para os mercados de ambos os países, já combalidos. O acordo de livre-comércio do Mercosul com a UE, seja como for, está salvaguardado: graças a um acordo firmado em julho por membros do Mercosul, as novas regras tarifárias com a Europa poderão valer para cada país assim que ele aprovar o texto em seu respectivo Congresso (depois dos europeus se acertarem, é claro); antes disso, para as novas tarifas valerem, o texto teria que ser aprovado nas casas legislativas do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Declarações de Alberto Fernández na campanha de que o acordo com a UE precisaria ser revisto, entre outros motivos porque provocaria a desindustrialização da Argentina, acenderam o sinal amarelo e levaram à costura dessa salvaguarda, embora a maior parte dos analistas coloque tais declarações na conta de bravatas eleitorais. Vale o parêntese de que, se é certo que várias indústrias na Argentina sucumbirão, de fato, à concorrência com seus pares europeus depois do acordo, a maneira pela qual o peronismo “se opõe” ao acordo com a UE, fazendo a defesa da “indústria nacional” (quer dizer, da burguesia nacional, e não dos empregos dos trabalhadores argentinos), é muito parecida com a qual setores da esquerda brasileira e argentina o fazem. Voltaremos a falar dessas afinidades eletivas ao tratar do desempenho da “esquerda” nessas PASO.
Da parte dos petistas, Lula, que foi visitado na prisão por Alberto Fernández, twittou (e o PT soltou nota em seu site) uma parabenização aos vencedores. O PT certamente está feliz com a situação, pois sonha com um script parecido com o que se passa na Argentina: assim como o kirchnerismo e sua forte burocracia sindical, ele segura a movimentação da classe trabalhadora e deixa que os demais governantes burgueses de plantão (Macri lá, Temer e Bolsonaro aqui) façam o serviço sujo de aplicar reformas impopulares, para depois retornar em glória triunfal, denunciando o ajuste alheio que eles não paralisaram uma fábrica para deter. O PT sonha com um cenário parecido, em que o repúdio a Bolsonaro lhe dê melhores condições para voltar ao Planalto em 2022.
O PTS, a principal força política da chamada esquerda, curiosamente, enxerga o massacre de Macri como um “voto de castigo”, devido à deterioração das condições econômicas. Os desalentadores indicadores econômicos do governo de Macri – para ficar com apenas alguns dos muitos, a taxa de desemprego é de 10,1%2, pior índice desde 2006, 35% da população é considerada como estando “em situação de vulnerabilidade”3 e, mesmo entre os empregados, 24,5% está abaixo da linha da pobreza4 –, de fato, são a melhor explicação para a derrota de Macri, mais do que um apreço em particular pelos Fernández. Entre parênteses, cabe dizer que o raciocínio do “voto de castigo”, para o PST (e MRT, no Brasil), não se aplica à classe trabalhadora brasileira, que rechaçou o PT e seu legado de 13 milhões de desempregados com a negação indeterminada que é Bolsonaro. O “voto de castigo” só se aplica quando é para o que chamam de “direita”, nunca para o que chamam de “esquerda” – pois esta, afinal, está tão próxima deles, que teriam de reconhecer que são eles também os castigados.
O resto do balanço eleitoral do PTS5 é autocongratulatório, como de costume, exaltando a votação da FIT-U como a expressão de uma “uma forte mensagem contra os poderosos, empresários e seus partidos”. Que bela mensagem: em se tratando de eleição presidencial, os números da FIT-U diminuíram comparados com os das PASO de 2015! Pode-se argumentar que a perda, estatisticamente falando, não é tão significativa, e que se consolidou uma média de votação, como aliás o próprio PTS faz. Ainda assim, como os camaradas do RyR já disseram em outra ocasião6, não crescer em condições de crise econômica aguda como a colocada na Argentina já é em si uma expressão de derrota.
Uma crise dessa magnitude não deveria ser um momento de estabilização da esquerda que se pretende revolucionária, mas sim do seu crescimento. E, pior ainda, não deveria significar a ressurreição justamente do peronismo, verdadeira máquina de controle da classe trabalhadora argentina que, no poder, poderá fazer tal controle de maneira ainda mais violenta. Se de fato o governo de Macri ajustou como nunca antes na história daquele país, o que se passou para a esquerda não ser capaz de crescer, mas Kirchner sim? Por que o “voto de castigo” não foi para a esquerda, e sim para os peronistas, e isso em uma escala tão massiva? É razoável imaginar que a rejeição a um estado de coisas atual vá procurar sua “oposição” onde pode, na falta de uma alternativa revolucionária real. A questão que fica por ser explicada é por que essa alternativa revolucionária não existe.
É lícito avançar em algumas hipóteses. Aliás, já antes das PASO, em texto dos camaradas de RyR que traduzimos7, o problema está sintetizado em suas linhas gerais. Falando da maneira pela qual a FIT-U procura se diferenciar do peronismo, diz: “Se a esquerda considera que os programas não são opostos, e que tem pontos em comum, qual é a diferença? A luta, a honestidade, a inteligência e a consequência. O mesmo programa com dirigentes melhores. Por isso, encara com naturalidade um peso eleitoral perto da margem de erro. Porque sabe que toda a sociedade percebe que, se se propõe um peronismo melhorado (mais consequente), mas ínfimo, é preferível o peronismo tal e qual, que é sujo, vacilante, bagunçado, é das multidões. O que a esquerda diz que o peronismo não pode dizer? Vigência dos direitos humanos, defesa a todo custo do regime democrático, críticas ao FMI e ao sistema financeiro, aumento de salários, regulacionismo na prostituição, defesa do emprego através da defesa das PyMEs, soberania nacional, fratura da unidade de classe trabalhadora com base nas “identidades”, aliança com burgueses sensíveis. ” (grifo nosso).
A questão essencial nos parece ser a questão do programa. E quando falamos da esquerda argentina, estamos falando de agrupamentos que, em sua quase totalidade, se reivindicam “trotskistas”, mas que negam – pelo esquecimento ou por sua revisão – o programa da IV Internacional que Trotsky lutou para construir, o Programa de Transição (PdeT)8. São “trotskistas” por um mero historicismo (aliás, às vezes humanista e moralista), mas nunca por compreender que no PdeT de Trotsky vige o método marxista em sua forma mais elevada (análoga, aliás, ao desenvolvimento dialético de O Capital de Marx, tomado enquanto programa revolucionário, e não como mera obra de entendimento do mundo).
Cremos que o problema da esquerda argentina (e não só), nesse sentido, não é que ela fale pouco sobre socialismo, pois falar de socialismo nos dias de festa qualquer reformista ou centrista tem condições de fazer. O desafio não é falar em socialismo, mas fazer o socialismo em cada ação cotidiana. O problema da “esquerda” é que ela não consegue oferecer perspectivas socialistas efetivas nos problemas imediatos da classe trabalhadora argentina (e mundial), a inflação e o desemprego, perspectiva que o PdT oferece, através da defesa das escalas móveis de salário e das escalas móveis das horas de trabalho: que seja assegurado o mínimo de salário através do seu reajuste mensal conforme o aumento do preço dos itens de primeira necessidade e que não haja demissões: se houver necessidade de diminuir a produção, que sejam diminuídas as horas de trabalho sem redução de salário, com esse mínimo assegurado. As escalas aparecem como muito pouco e conservadoras – conversar o nível de vida, colando-se à consciência do trabalhador mais atrasado –, mas, combinadas (nunca isoladamente), elas são irrealizáveis sob o capitalismo. As escalas móveis, combinadas, são, como ensinou Trotsky, a descrição do funcionamento da economia socialista. Note-se: quem ensinou isso foi ninguém menos do que um dos responsáveis por estruturar o planejamento da economia pesada soviética.
É comum que se critique o Programa de Transição como sendo “economicista”, associando-o àqueles economicistas que Lênin combatia em 1902, em O que fazer?, ou “espontaneísta”, como se as escalas fossem ser espontaneamente adotadas pelos trabalhadores. Na primeira crítica, parece que se perde de vista justamente o que o PdeT tem de mais rico, que é o de fazer uma síntese entre as reivindicações econômicas e as políticas. Elas aparecem como só econômicas, mas são em essência políticas. O político se manifesta em meio ao econômico. A defesa intransigente das escalas, combinadas, leva necessariamente a classe trabalhadora à conclusão política de que seus interesses são inconciliáveis com os dos patrões, levando, assim, ao desenvolvimento de formas organizativas superiores que possam dar expressão a essa contradição até a tomada do poder político. As escalas móveis – diferentemente das reivindicações sindicais usuais – favorecem a abertura do poder paralelo do proletariado.
No caso da segunda crítica, parece haver uma confusão entre o que é uma necessidade imediata e o que é espontâneo. O Programa de Transição, para ser desencadeado, pressupõe a presença do partido revolucionário nos principais setores produtivos da nação. O partido revolucionário não assume que a classe trabalhadora vá espontaneamente acessar as escalas móveis: ele faz uma agitação consciente em sua defesa, sabendo que elas respondem às necessidades imediatas dos trabalhadores; e que se os trabalhadores se digam socialistas ou não, pouco importa, pois querem defender seu pedaço de pão. A consciência socialista surge do próprio processo de luta em defesa das condições de vida, dirigido pelo partido, e não por uma pregação socialista externa à luta estrutural. O Programa de Transição aponta para o socialismo colocando como uma contradição irreconciliável no presente a satisfação plena das necessidades econômicas imediatas dos trabalhadores com os interesses da burguesia. Sua força reside em conseguir acessar mesmo as camadas de trabalhadores que não são “politizados”, que são “conservadores”, que não serão levados à luta apenas com a propaganda sobre o socialismo.
O problema com a esquerda argentina não consiste no “trotskismo”, mas justamente no contrário – no afastamento do trotskismo, na adaptação ao stalinismo e à social-democracia, com suas lógicas de reivindicações mínimas, que se encerram em si mesmas. Outra forma em que se manifesta esse afastamento do trotskismo – não só no método, portanto –, consiste na deturpação consciente da concepção de Trotsky sobre a revolução permanente. Mesmo se a Argentina tivesse questões democrático-burguesas a resolver – o que não é o caso –, tais questões só poderiam ser garantidas como subproduto da conquista socialista. Ou seja, somente seriam garantidas ou realizadas após a conquista do poder pelo proletariado (dirigindo setores oprimidos-atrasados). Mais uma vez: mesmo se a Argentina fosse um país atrasado, as reivindicações democrático-burguesas deveriam ser secundárias em relação às socialistas-transitórias (escalas móveis). Mas, na realidade, os supostos “trotskistas” sobrevalorizam as “tarefas democráticas” – equiparando-as em grau de importância às tarefas socialistas – exatamente para, no segundo seguinte, abandonar as socialistas em nome das democráticas. Trata-se da mais pura adaptação – na Argentina e no Brasil – à lógica burguesa de gestão do Estado.
As tarefas dos revolucionários argentinos estão dadas pelas necessidades mais imediatas de sua classe trabalhadora: combater a inflação de 40% ao ano, evitar que se fechem 5000 fábricas em menos de quatro meses, com perda de 217 mil empregos, como se passou no começo desse ano9. Nunca foi tão urgente a aplicação concreta, real, cotidiana, de um programa transitório ao socialismo. Garantir que ninguém vá para rua e mantenha seu pedaço de pão. Pode parecer pouco, mas, se defendido na forma correta, dará frutos mais alvissareiros do que os resultados eleitorais conquistados fazendo-se coro à burguesia e seu programa keynesiano.
Muito além de ser paródia do kirchnerismo, muito além do cretinismo parlamentar, o desafio da vanguarda revolucionária argentina está em se vincular à classe trabalhadora e resistir intransigentemente (transitoriamente) por suas condições de vida.
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1. Para dados sobre os resultados das PASO de 2019 e das PASO e eleições de 2015 consultar, respectivamente: https://www.clarin.com/politica/paso-2019-resultados-pais_0_yUnJ0UKA4.html e https://www.clarin.com/elecciones-2015-resultados/.
2. Clarín, 19/06/2019, https://www.clarin.com/economia/economia/desempleo-subio-10-millones-desocupados_0_0lhtuy_fZ.html.
3. AbrilAbril, 15/07/2019, https://www.abrilabril.pt/internacional/pobreza-na-argentina-aumenta-e-ronda-os-35.
4. Clarín, 05/08/2019, https://www.clarin.com/economia/crecio-pobreza-empleo-afecta-millones-personas_0_5V2c7oblJ.html.
5. La Izquierda Diario, 12/08/2019, https://www.laizquierdadiario.com/El-Frente-de-Izquierda-Unidad-saco-mas-de-700-000-votos-y-peleara-por-nuevas-bancas-en-octubre.
6. A propósito das eleições regionais do primeiro semestre: Razón y Revolución, “El espanto. Un balance del desempeño de la izquierda en las primeras elecciones provinciales del 2019”, 12/06/2019, https://razonyrevolucion.org/el-espanto-un-balance-del-desempeno-de-la-izquierda-en-las-primeras-elecciones-provinciales-del-2019/.
7. “Aonde vai a esquerda argentina?”, disponível em https://transicao.org/conjuntura/aonde-vai-a-esquerda-argentina/.
8. Desenvolvemos a questão em uma série de artigos: “Ascensão e queda do Programa de Transição”, disponível em: https://transicao.org/historico/ascensao-e-queda-do-programa-de-transicao-parte-1/.
9. O Globo, 12/08/2019, disponível em: https://www.ricardoantunes.com.br/noticias/4026/recessao-e-asfixia-das-classes-media-e-media-baixa-explicam-em-grande-medida-derrota-de-macri.