Este é o segundo relato que publicamos diretamente da Bolívia. O primeiro pode ser lido aqui.
Por Pablo Paniagua, direto de Santa Cruz de la Sierra
30/10/2019
Estamos a quase dez dias de paralisação nacional indefinida na Bolívia. A população continua defendendo seu voto frente ao processo eleitoral fraudulento que deu a vitória a Evo Morales no primeiro turno. A tensão e os enfrentamentos cresceram no país assim que o presidente Morales convocou movimento sociais e simpatizantes de áreas rurais para tomar e cercar cidades que mantêm em resistência pacífica contra seu quarto mandato.
A estratégia adotada por seu governo é a de desconhecer o pedido popular de transparência nas eleições (por meio de um segundo turno), reduzindo-o a um jogo da “oposição política” (Comitês Cívicos, instituições públicas departamentais, partidos de oposição, setores sociais gremiais, de transporte, saúde, universitários, entre outros) cuja liderança fragilmente unifica o clamor social e adiciona a defesa da “não violência”. Assim mesmo, Morales optou por incitar o confronto entre bolivianos, para acabar com as medidas da paralisação.
A jornada de protestos de 28/10 foi uma das mais violentas registradas até agora. Grupos organizados, mobilizados e apoiados financeiramente pelo MAS atacaram manifestantes com facões, pedras e paus em diferentes departamentos. Por seu parte, os manifestantes também responderam à altura. Em alguns casos a polícia interveio para apaziguar.
A esses ataques violentos somaram-se enfrentamentos espontâneos contra os manifestantes, encabeçados por comerciantes e transportadores urbanos, que preferem renunciar ao exercício político de paralisação para retomar suas fontes de trabalho e garantir o sustento de suas famílias. A atual resistência popular representa um grande sacrifício, considerando que entre 70% e 80% dos bolivianos trabalham informalmente (segundo estudos).
Também nesta segunda-feira, 28, grupos de camponeses organizados, afins ao partido do governo, bloquearam as principais rotas de comunicação de cinco departamentos paralisados (Santa Cruz, Cochabamba, Sucre, Potosí e Oruro), cumprindo o chamado presidencial de cerco urbano. Meios de comunicação e imagens que circulam nas redes sociais mostram bloqueios feitos com pedras e grandes quantidades de terra, movimentadas por maquinaria pesada (inacessível aos camponeses), e defendidas por reduzidos grupos de pessoas.
O “apoio” a Evo Morales
Frente à autocensura dos meios (ou sua cumplicidade), é nas ruas que se mede o atual apoio de Evo Morales. A informação mais rica circula por redes sociais e grupos de whatsapp, filtrada por jornalistas independentes e populares.
Até agora, “movimentos sociais” – que historicamente conseguiram derrubar governos nefastos e estão mobilizados a favor do governo – não conseguem dar resposta a todo um país em convulsão. Seu apoio incondicional ao governo vigente não surpreende, dado que sua estrutura e afiliados são dependentes de benefícios que recebem em troca (doação de recursos para sindicatos e dirigentes, doação de terras promovida com a reforma agrária de Morales em seu primeiro mandato, retomada com força neste processo pré-eleitoral).
Não obstante, há uma fragmentação dos movimentos sociais que apoiam Evo, expressa na baixa concentração de militantes nas mobilizações a seu favor, em protestos e nos bloqueios, dos quais participam setores mineiros e camponeses (FSTUTCB, Bartolinas, COB, Ponchos Rojos) nos últimos dias. Estes, longe de intimidar os bolivianos, só alimentam sua indignação. Vale notar também que importantes organizações de trabalhadores, tradicionalmente afins ao MAS, como a FEDECOMIN (Federação de Mineiros de Potosí), e a ADEPCOCA (Associação Departamental de Produtores de Coca), afastaram-se do presidente e declaram seu apoio às manifestações.
No dia 28, circularam nas redes vídeos e imagens da marcha da COB – Central dos Trabalhadores Bolivianos – na cidade de La Paz, na qual se registrou a participação de Raúl Lineras, irmão do vice-presidente, e onde se verificou a entrega de capacetes para que pessoas alheias à categoria se fizessem passar por mineiros. Os irmãos Linera estão muito bem vinculados à burguesia boliviana, com suas atividades altamente lucrativas de participações em gigantescos empreendimentos. Talvez daí é que tirem seus valores para financiar “manifestantes” pró-governo. Da mesma forma, circularam vídeos da “Grande Concentração pelo Triunfo da Democracia”, atividade que celebrou a “vitória” de Morales na cidade de El Alto, e em tais vídeos comprovou-se que dirigentes distribuíam dinheiro aos militantes ali presentes.
Outra referência para se compreender o desgaste do apoio a Morales é a situação de funcionários públicos, sobretudo na capital do governo, La Paz. Segundo conversas que mantivemos com alguns funcionários do setor de Economia e Finanças de Estado, o governo tem se imposto aos funcionários de instituições públicas, obrigando-os constantemente a fazer doações em dinheiro e a participar de atividades políticas pró-Morales Morales (desde o início da campanha eleitoral). Tais funcionários têm sido obrigados a ir nas atuais concentrações a favor de Morales e arcar com recursos próprios os gastos de alimentação de sindicalistas que se concentram em La Paz. Afirmam-nos também que estão cansados de sentir medo e que desde o último fim de semana participam discretamente de manifestações contra a fraude eleitoral (após o horário do expediente de trabalho, claro).
Ainda segundo tais companheiros, lhes alenta ver que a “resistência cidadã”, assim como o voto nestas eleições, não obedece à predileção por tal ou qual coloração política, mas sim ao cansaço geral e coletivo com a situação. A Bolívia, traçada pela tendência de crise econômica da América Latina, marcada pela precarização e aumento da exploração do trabalho, pelo crescimento da economia informal, pelo superfaturamento em obras públicas, pela falência dos fundos públicos, pela corrupção nos órgãos eleitoral e judicial, por elevados gastos públicos, pela exploração irracional de recursos naturais, pelos danos ao meio ambiente, em suma, pelas políticas econômicas capitalistas que beneficiam grandes empresas locais e multinacionais – virou uma bomba relógio.
Além disso, os companheiros também celebram relativamente a postura da polícia boliviana, que desde os primeiros protestos frente à interrupção da contagem de votos pelo TSE se dividiu, com setores colocando-se ao lado dos manifestantes. Vale destacar que setores policiais começaram a se distanciar do governo exatamente porque operam de maneira precária, ou seja, devido à falta de recursos para salários.
No dia 28, em La Paz, celebrou-se um novo “Cabildo” [aglomeração política para discussão e protesto], no qual a presidenta da organização das esposas dos policiais, Guadalulpe Cardenas, expressou a mensagem de setores policiais a favor da população e contra a repressão às manifestações (mais informações, aqui). Definitivamente, o visível baixo apoio a Evo e seu governo confirma o apontado por diversos estudos de intenção de voto, segundo os quais ele não obteria mais de 40%, tendo uma estreita margem sobre seu principal adversário, Carlos Mesa (nada, portanto, perto dos 10% de diferença).
Um programa revolucionário para os trabalhadores bolivianos
Evo e a OEA (Organização dos Estados Americanos) preparam agora uma “auditoria” do processo eleitoral anterior. Morales só aceita essa possibilidade porque sabe que a OEA legitimará o processo eleitoral que passou. Mesa, por sua vez, se diz contra a auditoria (e em nome de nova eleição), mas parece às vezes fazer jogo duplo, contando talvez que a pressão popular possa levar a um segundo turno.
A maioria da população não pode aceitar essa falsa auditoria, que visa apenas a dar o poder a Morales, e menos ainda precisaria desse “apoio externo” (OEA), pois sabe muito bem que a eleição foi fraudada.
Além disso, a maioria da população não pode aceitar qualquer via de conciliação entre o governo e a oposição. Os setores da burguesia tendem a uma conciliação, para contornar a situação de instabilidade crescente (onde a revolta popular caminha cada vez mais para a radicalização contra o governo como um todo, começando pela derrubada de Evo). Qualquer conciliação vai rifar a revolta popular, quebrar as forças de resistência, e permitir o fortalecimento de um governo autoritário.
A única saída real é para o futuro: pela construção de organismos de luta dos trabalhadores, independentes das frações burguesas decadentes que buscam agora um acordo (ou seja, radicalizando as formas superficiais de participação popular hoje existentes, criando representações políticas legítimas da maioria da população). Além disso, é necessário que a população trabalhadora dê resposta aos bandos pagos por Morales para espalhar terror nas ruas contra manifestantes. É preciso parar isso agora, senão amanhã será duas vezes mais difícil. Aos bandos masistas que usam pedras, dinamites e facões, a população deve opor grupos de autodefesa (ou seja, de proteção), treinados na própria luta para fazer a seguranças das manifestações e expulsar os paramilitares de Evo. Os dirigentes desses grupos de autodefesa devem ser eleitos de forma democrática, em assembleias, e devem agir dirigidos por organismos democráticos do povo trabalhador (como Assembleias Populares, em radicalização de órgãos superficiais de participação popular existentes, como por exemplo os “Cabildos”).
Os discursos pacifistas, sobre “não violência”, por parte dos Comitês Cívicos, devem ser repudiados, pois significam somente formas para se conter a revolta popular e se chegar a um acordo com Evo. Tais discursos só facilitarão, em última instância, a dominação de Evo e seu grupo.
Assim, o povo trabalhador deve se organizar para:
1. Seguir a luta contra a fraude eleitoral, não aceitando o resultado atual e não aceitando um possível acordo entre Evo e Mesa (apoiados na OEA);
2. Retirar Evo do governo o quanto antes, pois se mostrou um autoritário perigoso demais, alimentando grupos proto-fascistas;
3. Se autodefender (se proteger), nas ruas, dos ataques dos bandos pagos pelo MAS, expulsando-os.
Isso é o mínimo, em torno do qual deve se expressar o poder do povo trabalhador organizado. Essa organização popular deve ser democrática, ou seja, pela base, e deve ocorrer por bairros; deve permitir a participação de toda a população trabalhadora e deve votar responsáveis pelas tarefas (por exemplo, para organizar interessados em articular a autodefesa; para organizar interessados em produzir materiais como panfletos e faixas, etc.; para eleger responsáveis por falar com categorias de trabalhadores, em nome de suporte materiais e políticos). Os responsáveis devem ser substituídos se não cumprem com suas tarefas.
Ainda que a maioria da população possa lutar neste momento conjuntamente com setores de oposição burguesa (Mesa e Comitês Cívicos) contra Evo, ela deve ser ao máximo independente de todos esses setores burgueses, fazendo expressar a vontade da maioria trabalhadora e camponesa do país por meio de suas assembleias populares.
A mais profunda crise hoje na Bolívia não é a crise social e política da burguesia reunida em torno de Evo (aliás, há muitos anos anunciada), mas sim a crise de direção revolucionária da maioria da população trabalhadora das maiores cidades. Esta está nas ruas contra o presidente, mas corretamente não confia no corrupto Carlos Mesa nem confia plenamente nos “Comitês Cívicos”. Falta uma verdadeira organização popular, democrática, pela base, para apresentar um caminho de luta honesto à maioria.
A única coisa certa é que a imagem de Morales é cada vez mais a de um autoritário, e que contra ela cresce o descontentamento popular. Não há meio termo real. A disputa consiste em saber quem mandará: Evo ou o povo trabalhador. Qualquer meio termo quebrará as forças de resistência populares e as entregará a uma regime político burguês cada vez mais autoritário, centrado em Evo.