Frente à instabilidade social que se espalha pelo mundo, com passeatas e protestos – farejando o estouro de mais uma crise econômica –, a burguesia se desespera, sem saída fácil para a sua crise de hegemonia política. A América Latina – como se viu no Equador e no Chile – caminha para a ingovernabilidade absoluta (que pode abrir situações pré-revolucionária). No Brasil, particularmente, a burguesia já desenha um caminho: o bonapartismo. A união entre Bolsonaro e os lulistas terminará com a soltura do chefe petista para salvar a nação capitalista.
A burguesia se assusta em todo o mundo
Numa semana, dois toques de recolher decretados em dois países da América Latina – Equador e Chile. Toque de recolher é medida marcial (criada para momentos de guerra entre países). De que se trata quando dois Estados burgueses decretam, apoiados em porta-vozes militares, toque de recolher devido a protestos? De que a burguesia prepara a guerra contra seu próprio povo. É o gérmen da guerra civil, luta de classes pura.
Pense também nas enormes passeatas de estudantes na Colômbia na mesma semana (influenciadas pelo Equador); pense nas multitudinárias manifestações no Haiti; pense no um milhão de pessoas protestando em Barcelona (onde, muito mais do que uma luta por independência da Catalunha, dá-se um protesto contra o Estado burguês espanhol como um todo); pense no descontentamento popular em Hong Kong; pense nos gilets jaunes franceses se solidarizando com os espanhóis; pense na população venezuelana contra a ditadura capitalista de Maduro. A burguesia se assusta mundialmente.
Hipótese: as massas já sentem o clima de virada do ciclo econômico. Como já explicamos, é exatamente quando o ciclo econômico aponta para um virada – para o estouro da crise – que as massas saem às ruas. Elas percebem que, mesmo já tendo tão pouco, perderão mais e mais no futuro imediato. Em situação assim, qualquer 20 centavos – como no Chile – aparece como a gota d’água. A crise que se avizinha, que somente aguarda a economia dos EUA paralisar por completo, tende a ser a maior em 70 anos. E, por isso, a burguesia se defronta com situações políticas não esperadas nas últimas décadas.
Faliu a tese da “onda conservadora”
Faliu completamente a tese dos que diziam que vivemos uma “onda conservadora” na América Latina. Estavam apoiados em análises rasas e superficiais, baseadas em fenômenos políticos momentâneos, como a eleição de Maurício Macri na Argentina, a queda de Dilma e a eleição de Bolsonaro no Brasil. Essa “esquerda” não compreendeu as placas tectônicas que se movimentavam. Não compreendeu ou não quis compreender (pois em geral assumiu, na prática, os discursos e as perspectivas dos burgueses petistas, kirchneristas etc.).
Se essa crise de dominação burguesa se manifestou por meio de fenômenos irracionais (como, por exemplo, a eleição de Bolsonaro, no Brasil) é simplesmente porque não existe partido de esquerda nesses países; é simplesmente porque a chamada “direita” soube ser mais inteligente do que a “esquerda” da ordem capitalista e ganhar capital político.
É claro que o ascenso da classe trabalhadora em âmbito global terá respostas nefastas por parte do capital. Uma delas é o próprio toque de recolher apontado acima. Há um resposta burguesa ao descontentamento popular, mas, reforçamos, isso não quer dizer que haja uma “onda conservadora”. Tal resposta é, aliás, comum a todos os governos burgueses, independentemente de usarem máscara de “esquerda” ou de “direita”. Ou alguém se esquece de que após junho de 2013 a Dilma-PT usou a Lei de Segurança Nacional e criou a “Lei Antiterrorismo” contra manifestantes? A mera resposta do gestor capitalista de plantão não basta para caracterizar uma conjuntura.
Brasil: Bolsonaro e o parlamentarismo light
Bolsonaro nem tem mais partido; tem agora – após a divisão com o grupo do PSL de Luciano Bivar – pouco mais de 20 parlamentares totalmente fieis a si na Câmara dos Deputados. Bolsonaro é minoria até em seu partido e corre o risco de ser expulso do mesmo (tendo de se abrigar em algum esdrúxulo nanico). Nunca na história recente do país se viu algo assim. Nunca na “nova república” se viu um presidente no primeiro ano de mandato com pouco mais de 20 parlamentares, com uma articulação política tão frágil.
E mais: foi propalada nesta semana a possível fusão entre o grupo do PSL de Bivar e o DEM de Rodrigo Maia e ACM Neto, o que formaria o mais forte partido da câmara. É o centrão fisiológico revigorado. Com Maia dando soberanamente as cartas na Câmara (e considerando que Bolsonaro não tem qualquer apoio sólido no Senado), conformar-se-ia a tendência, já analisada por nós, de “parlamentarismo light”.
Ditadura? Quantidade e qualidade
Parlamentarismo é sinal de poder executivo fraco. E não há qualquer registro na história do capitalismo de uma ditadura capitalista sem poder executivo forte. Bolsonaro e sua ausência de partido, sua ausência de articulação, sua ausência de ministros etc. são só mais uma comprovação de que o poder executivo da burguesia segue em crise, ruindo. O poder executivo, cuja falência foi preparada nos anos de corrupção generalizada do PT, foi agora tomado pelo baixo clero, pela escória política nacional, e a burguesia assiste, atônita, em cadeia nacional, a vigaristas chamando o líder de seu Estado de “vagabundo”. É a impotência de uma classe dominante.
Assim, o que se passa no Brasil? É já um autoritarismo? Na verdade, não há qualquer mudança qualitativa em relação aos últimos governos da falida democracia burguesa brasileira, desde a crise da Dilma após 2013. É claro que há um aprofundamento da repressão estatal por parte da burguesia, temerosa ante as massas, em condição de crescente miséria e exploração, mas esse aprofundamento caracteriza um processo quantitativo, que se acumula nas últimas várias gestões burguesas. Não houve salto de qualidade, não houve mudança de regime, e, propriamente, do ponto de vista da capacidade de resolução das suas próprias contradições, a burguesia está mais e mais impotente.
Só acredita que há autoritarismo quem acredita em palavras vazias, quem acredita no que o presidente fala, nos diversionismos que ele cria para desviar o foco de suas crises. Mas, infelizmente, dado que a maioria da nossa “esquerda” vive fora da realidade – e ergueu moinhos de vento para si –, ela acredita que o mundo está desaparecendo por completo quando vê suas imagens delirantes desaparecer. Na realidade, somente o mundo dela desaparece, e não o da vida cotidiana, de miséria e exploração crescentes da maioria da população.
Bolsolulismo na veia
Bolsonaro agora se cala sobre a condenação em segunda instância porque sabe que tem que salvar Lula para ele mesmo ser salvo. O fim da condenação em segunda instância será julgado nesta semana, no STF. Especula-se somente se será por 7 a 4 ou por 6 a 5. Os cabeças do STF – Toffoli e Gilmar Mendes, sobretudo – só não sabem ainda como derrubar a condenação em segunda instância sem ter que soltar também as centenas de milhares de presos por tráfico de drogas, assassinatos, estupros etc. Os cabeças do STF só estão buscando alguma ferramenta jurídica que permita um apartheid social na hora de soltar os condenados em segunda instância – eles querem soltar os políticos poderosos e os branquelos ricaços das maiores empreiteiras nacionais (acusados pela Lava-Jato de desviar R$ 18 bilhões), mas querem manter presos os pobres que agiram violentamente por serem produto da miséria social.
Aqui temos mais uma prova de que o anti-punitivismo pequeno-burguês e abstrato, propalado pelos petistas para soltar Lula, serve nesta conjuntura apenas para a burguesia ampliar a sua repressão a quem interessa a ela reprimir (bem como se comprova que a sorte de Lula não coincide com a do “povo pobre”). Os anti-punitivistas são cúmplices do que dizem combater.
A condenação em segunda instância deve cair, agradando toda a corja política burguesa corrupta nacional. Bolsonaro antes falava contra, mas agora mudou; virou amigo de infância de Toffoli (e seu escudeiro Gilmar Mendes); indicou o petista Augusto Aras para a PGR (indicado por Jaques Wagner, para acabar com a Lava-Jato entre os procuradores); comprometeu-se a indicar André Mendonça – petista de carteirinha – à nova vaga do STF. Bolsolulismo puro.
Não bastasse ter colocado o emedebista Fernando Bezerra Coelho (antigo líder sob a Dilma) como líder do governo no Senado, Bolsonaro agora colocou Eduardo Gomes, do MDB do Tocantins, como líder do governo no Congresso (no lugar de Joyce Hasselmann, que se vinculou ao grupo de Bivar no PSL, para poder concorrer à prefeitura de São Paulo). Eduardo Gomes é apadrinhado no MDB por Renan Calheiros, mas antes disso foi parlamentar pelo PT, PSB e outros da falsa esquerda brasileira.
O bolsolulismo é hoje a única forma de a burguesia tentar superar a sua crise de hegemonia no Brasil. Só não vê quem não quer, ou seja, os fanáticos que cultuam o mito Bolsonaro (“bolsomínios”) e os fanáticos que cultuam o mito Lula (“Lula Livre!”) – duas faces da mesma moeda!
Bolsonaro prepara retorno de governo autoritário de Lula
Apesar de usarmos o termo “bolsolulismo” – para desmascarar os petistas –, ele é a rigor falso. O bolsonarismo é um epifenômeno. Bolsonaro é cria do PT e, a rigor, como já demonstramos, o que tem de ser explicado historicamente é a queda do PT, e não a ascensão de Bolsonaro em si. O que tem de ser explicado é o lulismo. A queda do PT foi fruto de um processo de descontentamento das massas frente à crescente exploração capitalista no Brasil. Dado que nenhuma organização política de esquerda ocupou o espaço da queda do PT – porque não existe partido de esquerda no Brasil –, o descontentamento assumiu duas formas anômalas: 1) uma estruturação pequeno-burguesa encalacrada no corpo do Estado burguês, a Lava-Jato, com suas aspirações estranhas à grande burguesia; e 2) a ascensão de completos oportunistas e vigaristas que têm seus quinze minutos de fama, como Bolsonaro e a escória do PSL.
Agora, quando Bolsonaro vai à falência justamente por se assemelhar demais ao PT, as massas, cansadas e desmoralizadas, impotentes por terem sido enganadas pelas falsas saídas que surgiram em meio à crise, tendem a sucumbir frente à articulação da grande burguesia para retomar sua hegemonia política. Dado o papel fundamental do PT no regime democrático-burguês atual (pois só ele pôde conter as massas trabalhadoras para fazer a transição da ditadura militar à democracia burguesa), o PT é o partido queridinho dos quadros burgueses para ser o fiel da balança da estabilidade. A burguesia não consegue pensar nem criar hoje um modelo de estabilidade no Brasil sem considerar o PT. Ela tenta, mas todas as novas lideranças são insustentáveis – desde João Dória ao ridículo Luciano Huck. A burguesia sabe que assim não conterá o possível estouro social e não contornará sua crise de dominação. O lulismo – por mais que parte da burguesia possa não gostar de Lula – ressurge como a principal saída para a dominação burguesa.
“Antes um fim com terror do que um terror sem fim”, explicava Marx no 18 de Brumário. Não havendo saída para um futuro histórico, a burguesia prefere repetir tragicamente o passado. Mas um novo lulismo tende a ser muito diferente do anterior. Antes, Lula esteve à frente de um perfeito governo burguês, circunscrito aos (nefastos) limites democrático-burgueses. Agora, o retorno de Lula tende a abrir, no médio prazo, outra forma de governo, no qual as oposições internas ao Estado, de setores menores e pequeno-burgueses, terão de ser limadas. A vingança de Lula contra todos os que lhe caçaram dentro do Estado será maligna. De um governo burguês, com traços bonapartistas, devemos caminhar para um governo capitalista propriamente (verdadeiramente) bonapartista (ou seja, autoritário).
Na realidade, em linhas gerais, uma perspectiva assim também pode ser traçada para o conjunto da América Latina, dada a ascensão das massas, a ausência de partidos de esquerda, e o uso de líderes “populistas” (autoritários) para conter as massas. Maduro é só um pequeno exemplo do que se desenha. Com seu peso econômico e social, países como o Brasil e a Argentina – na qual os kirchneristas tendem a voltar ao poder – despontam como a “vanguarda da retaguarda”, ou seja, apontem o caminho do retrocesso autoritário, bonapartista, para o continente.
Isso tudo, é claro, não é um destino necessário. Não devemos ser fatalistas. Ele se desenha, a menos que alguma força social e política consciente se contraponha em todo o continente. Daí a necessidade de uma organização internacional de verdade, que supere as organizações centristas e vacilantes do continente. No Brasil, seria esperar demais da “esquerda” atualmente existente que ela acorde de seu sonho secular. Não há saída senão, evidentemente, a construção de uma nova organização revolucionária da classe trabalhadora no Brasil. Ela deverá surgir amanhã, a partir da aproximação dos melhores elementos, revolucionários, advindos de algumas poucas organizações do campo da esquerda brasileira.