Quem nos acompanha sabe que analisamos a confluência notória de interesses entre PT e Bolsonaro desde o segundo mês do novo governo (ou seja, desde fevereiro de 2019, quando os petistas e o filho de Bolsonaro, Flávio, se uniram na tentativa de reeleger, sem sucesso, Renan Calheiros para a presidência do Senado). Antes de disso, é claro, tal confluência era velada, na forma de um amor-ódio silencioso (o PT desejava Bolsonaro como candidato no segundo turno e vice-versa). Em março/abril de 2019 foi construído o acordão de Bolsonaro com o petista Toffoli, presidente do Supremo, tendo em vista segurar o governo (então muito abalado pelas notícias de corrupção envolvendo toda a sua família, no caso Queiróz). Como parte desse acordo, Bolsonaro indicou o petista Augusto Aras para liderar a Procuradoria Geral da República, visando sobretudo à destruição da Lava-Jato, bem como indicou André Mendonça para o cargo de Advogado Geral da União. Como parte do acordo, também se pretendia indicar algum desses – Aras ou Mendonça – à nova vaga do STF, afastando a possibilidade de entrada de Sérgio Moro nesse órgão (Mendonça, aliás, acabou substituindo Moro no Ministério da Justiça, após longa fritura do último).
Tudo isso configurou o que nós da TS chamamos, em agosto de 2019, de “bolsolulismo”. Criamos a expressão muito antes de órgãos da mídia. Hoje ela é corrente entre analistas burgueses minimamente esclarecidos. Bolsonaro não só está com o centrão que ontem era do PT – o centrão dos escândalos do mensalão e do petrolão, liderado por Roberto Jefferson, Waldemar da Costa Netto e Arthur Lira; o centrão cujo apoio a Bolsonaro foi dado com a condição de tirar Moro do governo –; Bolsonaro não só está com o centrão como agora é “assessorado” pelo antigo amor de Lula e Dilma, o queridinho Michel Temer – aquele que só se afastou do PT porque a revolta de junho de 2013 cravou uma bala de prata no coração de Dilma. Agora Bolsonaro copia o Bolsa Família, renomeado de Renda Brasil. Há poucos dias, foi ao Piauí, inaugurar obras, onde se apresentou como “pai dos pobres”, copiando Lula – ao passo que a multidão que o recebia gritava “fim da Lava-Jato! Fim da Lava-Jato!”
O mais novo capítulo do bolsolulismo consiste em tornar novamente Lula candidato. Eis por que, em sessão da Segunda Turma do STF, apenas dois ministros – Gilmar Mendes (aquele que era a favor da Lava-Jato até ela prender o primeiro tucano) e Lewandowski (ex “advogado” do PT no ABC) – decidiram, contra o voto solitário do Ministro Fachin (pois Carmem Lúcia e Celso de Mello tomaram chá de sumiço), que Sérgio Moro agiu de forma suspeita ao incluir a delação de Antônio Palocci num processo contra Lula pouco antes da eleição de 2018. Ora, como é possível que se condene a influência de um fato real num processo eleitoral? Os petistas e consortes preferem que as pessoas votem nos candidatos a cargos públicos sem saber dos crimes e acusações que pesam contra eles? Não se está agora mesmo condenando a PF por ter escondido o caso de Queiróz pouco antes das eleições?
Esse foi o primeiro passo sério (jurídico, no STF) para tornar Moro um juiz suspeito. O objetivo disso é derrubar todas as suas condenações. O principal condenado por Moro, Lula, seria o maior beneficiado (mas, claro, com ele dezenas de outros burgueses corruptos e corruptores). Lula, assim, seria considerado novamente elegível, o que é fundamental para o PT, pois esse partido praticamente não tem mais candidatos eleitorais relevantes (veja-se o caso da cidade de São Paulo)… Todos os seus “quadros” foram condenados ou respondem a processos por corrupção. A última pesquisa eleitoral, a do Poder360, além disso, registrou que Haddad tomaria novamente uma surra de Bolsonaro num segundo turno de pleito presidencial. O único candidato do PT capaz de minimamente se contrapor a Bolsonaro, em 2022, é Lula.
A segunda tramoia do bolsolulismo consiste em aprovar uma “quarentena” para que juízes e procuradores não possam se candidatar por oito anos após saírem do magistério. A proposta, muito provavelmente costurada com o próprio Presidente da República (no diapasão do acordo bolsolulista), foi apresentada na semana passada pelo petista Dias Toffoli, presidente do STF. Para além de qualquer sentido democrático, ela tem o objetivo político concreto de impedir que Sério Moro seja candidato presidencial em 2022.
Isso tudo porque, mesmo dizendo que não é candidato (e a mais de 2 anos da próxima eleição presidencial), Moro já aparece como o único capaz de derrotar Bolsonaro (segundo a pesquisa Poder360). Cremos que ele seria também capaz de vencer Lula, caso fossem a um segundo turno. Por isso, toda a situação caminha para que Lula e Bolsonaro deem novamente as mãos para tirar Moro de seus caminhos. Lula quer Bolsonaro e Bolsonaro quer Lula.
A Moro, devido à quantidade de inimigos que colecionou (agora também os bolsonaristas), pouco caminho resta senão o eleitoral. É como num jogo de matar ou morrer. Se a tentativa da quarentena para magistrados não funcionar para afastá-lo – discute-se muito sua legitimidade, dado que a lei não pode retroagir –, outra tramoia teria de ser buscada pelos bolsolulistas. A única condição é que torne Moro inelegível. Portanto, no limite, este poderia até ser julgado culpado por alguma das condenações que proferiu (tornando-se, assim, inelegível).
Realiza-se dessa forma, aos poucos – e com muitas dificuldades –, o programa defendido por Romero Jucá, naquela famosa e nada republicana conversa grampeada com Sérgio Machado, onde falava-se de “estancar a sangria”, tirar a Dilma pra ver se a Lava-Jato arrefecia, e assim conseguir “salvar Lula e salvar todo mundo”. O mal – para eles – é que tiveram de engolir inclusive a eleição de um sujeito tão insignificante que nem mesmo constava em seus gigantescos esquemas de corrupção (navegando apenas entre os peixes pequenos, com seu lambari Fabrício Queiroz).
A Lava-Jato – é sempre bom lembrar – nada tem de propriamente revolucionária; é totalmente incapaz de mudar o país de verdade. Ela é produto de uma radicalização de setores da chamada “classe média” (trabalhadores mais bem remunerados), influenciada pela revolta espontânea do conjunto da população trabalhadora brasileira em junho de 2013. As pessoas em geral não se lembram, mas em junho de 2013, além da exigência de derrubada do aumento no valor dos transportes (um protesto proletário contra a carestia de vida), manifestantes iam às ruas para combater a “PEC 37”, proposta de emenda constitucional que diminuiria o poder de investigação do Ministério Público. Tal reivindicação era algo marginal nas jornadas de junho, mas estava lá, embolada nos protestos, vista em plaquinhas, faixas ou cartazes. Não à toa, em 25 de junho de 2013, ainda em meio à onda da revolta, e com a galeria da Câmara dos Deputados tomada por procuradores do MP, a PEC 37 foi finalmente derrubada. Graças ao fato de que os poderes de investigação do MP não foram diminuídos, somado à pressão geral produzida por junho de 2013, as investigações da Lava Jato se desenvolveram a partir de 2014. Em suma: a radicalização da pequena-burguesia está geneticamente vinculada à última grande revolta proletária no país.
Junho de 2013 quebrou a ordenação política burguesa, paralisando a cúpula dos poderes. E, no mesmo processo, a revolta encontrou ressonância nos setores inferiores do Estado, nos baixos escalões do Ministério Público. Na ausência de um partido de esquerda de verdade (pois todos capitularam ao PT, em maior ou menor grau), a revolta de 2013, no sentido mais amplo, social, de massas, refluiu, arrefeceu. Entretanto, ela se manteve estruturada onde havia coorporação no baixo escalão do Estado, sobretudo na base do Ministério Público, dando base à criação do “partido” da Lava-Jato, da pequena-burguesia raivosa (com razão) contra a corrupção estatal.
A crise política e a paralisia da cúpula partidária burguesa frente aos protestos, somada à existência de um corpo estranho revoltoso, constituído e encalacrado na base do Estado, explica a montanha russa da política brasileira dos últimos anos.
Entretanto, como era de se esperar, toda revolta pequeno-burguesa, sem ter apoio externo em alguma movimentação genuinamente proletária, chega em seus limites, é traída e paralisa. É o que acontece agora, com Bolsonaro, que dissemina o desânimo político ao se revelar a mesma coisa que o PT, resultando num estelionato eleitoral bem maior que o de Dilma em 2015.
A tragédia brasileira é que, novamente, a nossa “esquerda” não tira qualquer lição séria e real de todo esse processo. Ela prefere erguer espantalhos para ela própria se assustar; ela prefere viver achando que Bolsonaro está prestes a dar um golpe de Estado fascista, para justificar assim seu apoio ao “mal menor” petista (a última besteira em que ela caiu foi a estória – bravata plantada pelo próprio governo – de que Bolsonaro cogitou fechar o STF em maio deste ano… Mas foi dissuadido na última hora pelo Gen. Heleno!).
Acreditando em suas próprias narrativas lunáticas (ou naquelas do presidente), a nossa “esquerda”, como o PSOL, opta por ser sócia menor do lulismo… Ou melhor: prefere ser a sócia minoritária do bolsolulismo. Na prática, ela serve a dois senhores: Lula e Bolsonaro.
Contra eles, e contra essa falsa esquerda, é necessária uma nova organização revolucionária neste país!