O governo Dilma atingiu a mais profunda paralisia da vontade; soltou uma nota sobre os atos deste 13/03 que pode ser considerada um nada; falou o óbvio, de forma tão pouco convincente, que é como se nada tivesse falado. Este governo simplesmente não esboça mais reação. De que servem tantos repartimentos, tantas pastas, ministérios, cabeças e quadros petistas, dos mais experientes, se não conseguem escrever uma simples nota? É como se o espírito da vida tivesse abandonado o gigantesco corpo burocrático e material e o largado no meio do caminho para ser uma peça de museu. As contradições são tão profundas (e antes de tudo de classe, embora deformadas) que o governo ruiu. É a mais séria crise política brasileira em décadas. Aliás, econômica também. Se Dilma cai, restará pedra sobre pedra? Temer, Aécio ou Alckmin, amplamente repudiados e inclusive hostilizados nos atos, segurarão a casa burguesa contra a revolta popular que virá? Se o PT cai, o PMDB tende a ser arrastado junto. Que será de um governo frágil desses partidos em um ano? Teremos no Brasil uma reprodução do “que se vayan todos” argentino?
Que fará o governo agora, além de passar vergonha nas ruas no dia 18/03? Seria melhor que nem saíssem às ruas.
O fato de que nenhum setor de esquerda conseguiu disputar atos como os de março de 2015 e março de 2016, com um bloco próprio e independente, com setores de trabalhadores, é a prova de que a esquerda também está em total paralisia; não consegue mais entrar em contato com a população brasileira e terá de recomeçar praticamente do zero. A esquerda está tão fechada em seus gabinetes, em seu mundo intelectual, em suas pautas de reformas no modo de vida da pequeno-burguesia, que perdeu o lastro com a massa trabalhadora. Ela faliu junto com o PT pois esteve sempre em maior ou menor grau ligada a ele (e ainda é ligada programaticamente). Os piores exemplos são as defesas veladas de Lula e do PT usando o fantasma da direita e do “golpe”. Mal sabe essa esquerda que a direita brasileira e os golpistas temem as massas nas ruas mil vezes mais do que a esquerda. As massas podem mudar de ânimo e sair do controle. Mas há também, na esquerda, aqueles que não saem de cima do muro e ficam no “nem… nem”. Essa política analítica e discursiva não aponta caminho efetivo e não serve para nada, a não ser para convencer e segurar militantes nas organizações. Não há devir de ação, não há síntese nem agitação possível, é só análise e discurso para convertidos. As massas e a classe trabalhadora, sobretudo, querem um apontamento claro de como agir, querem algo concreto a fazer, um caminho que apareça visível como um raio num céu azul.
A verdade está com a classe operária. Basta ter o mínimo contato com ela, ir nas portas das fábricas metalúrgicas da grande São Paulo, para constatar que a maioria dos operários, a sua vanguarda, o setor mais explorado, quer a prisão de Lula e a queda de Dilma. Esse é o sentimento hegemômico. A esquerda deveria saber criar uma identidade com esse sentimento para, dentro dele, iniciar uma discussão mais profunda sobre os próximos passos, as saídas proletárias para a conjuntura e a crise. Se identificar para ser ouvido é a primeira lição. Mas não: a esquerda tem medo, antes de tudo de ver desaparecer seu mundo de pequenos privilégios; medo de mexer profundamente demais e iniciar uma reviravolta. “Melhor deixar tudo como está”, pensa. Mas as contradições e o mundo — “malditos sejam!” — seguem atazanando-a. A esquerda tem a perder, os operários não.
A esquerda revolucionária, que existe em pequeno número e relativamente dispersa por todo o país, espalhada em diferentes grupos, está muito atrasada, praticamente sem chances na atual conjuntura. A dimensão do movimento lhe ultrapassa avassaladoramente. Mas ela pode começar a tirar o atraso se tomar nota de lições básicas de leninismo e pressionar pela sua unidade. Numa conjuntura explosiva, uma minoria com uma linha correta pode deixar de ser uma minoria. A unidade da esquerda socialista e combativa no próximo período, em torno de uma linha correta, é a questão chave da situação histórica.
Lembremos algumas lições de Lenin sobre uma conjuntura que aponta para uma revolução e como a esquerda revolucionária deve se posicionar nela.
Condições da revolução
Diz Lenin:
“Para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam transformações; é necessário que os exploradores não possam continuar vivendo e governando como vivem e governam. Só quando os ‘de baixo’ não querem e os ‘de cima’ não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar. Em outras palavras, esta verdade exprime-se do seguinte modo: a revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete explorados e exploradores)”.
(Esquerdismo, doença infantil do comunismo, cap. IX, grifos de Lenin)
Uma crise nacional geral existe hoje, evidentemente, no Brasil. A situação revolucionária, ensina Lenin, precisa ainda de outros elementos:
“1) que todas as forças de classe que nos são adversas estejam suficientemente perdidas na confusão, suficientemente lutando entre si, suficientemente debilitadas por uma luta superior às suas forças; 2) que todos os elementos vacilantes, instáveis, inconsistentes, intermediários, isto é, a pequena burguesia, a democracia pequeno-burguesa, que se diferencia da burguesia, estejam suficientemente desmascarados diante do povo, suficientemente cobertos de opróbrio por sua falência prática; 3) que nas massas proletárias comece a aparecer e a expandir-se com poderoso impulso o afã de apoiar as ações revolucionárias mais resolutas, mais valentes e abnegadas contra a burguesia. É então que está madura a revolução (…)”.
(Esquerdismo, doença infantil do comunismo, cap. X)
Há no Brasil claramente o elemento 1. Em certo sentido há o 2, embora não totalmente. E ainda não há o 3. Os pontos 2 e 3 são os que necessitam da ação consciente da vanguarda do proletariado, antes de tudo de seu partido. Esse partido todavia não existe.
Quanto ao ponto 2: os elementos pequeno-burgueses (sobretudo os que convocam os atos) não são desmascarados porque a esquerda não se comunica com a população que segue tais elementos. Não há uma identidade total das massas com esses elementos (sobretudo os mais de direita), pelo contrário, há uma contradição, que só não é explorada e explicitada porque a esquerda não a trabalha. Quanto ao ponto 3: nas massas proletárias não há ainda um impulso para a ação revolucionária pois a esquerda revolucionária não está inserida nos locais chave da produção capitalista, portanto é incapaz de insuflar ações radicais de resistência, como greves e ocupações, que façam se manifestar a força da classe trabalhadora.
Portanto, o maior impedimento para transformação da situação atual em uma situação revolucionária (ou ao menos em pré-revolucionária) é a ausência da organização revolucionária da classe trabalhadora, não apenas nas ruas, mas também (e sobretudo) nos locais de trabalho mais importantes.
Ainda assim, por menor que sejam os grupos de esquerda revolucionária, podem usar a seguinte tática para ganhar espaço e crescer:
Ensina Lenin:
“Fazer a guerra para derrotar a burguesia internacional, uma guerra cem vezes mais difícil, prolongada e complexa que a mais encarniçada das guerras comuns entre Estados, e renunciar de antemão a qualquer manobra, a explorar os antagonismos de interesses (mesmo que sejam apenas temporários) que dividem nossos inimigos, renunciar a acordos e compromissos com possíveis aliados (ainda que provisórios, inconsistentes, vacilantes, condicionais), não é por acaso qualquer coisa de extremamente ridículo?”
E ensina ainda:
“Só se pode vencer um inimigo mais forte retesando e utilizando todas as forças e aproveitando obrigatoriamente com o maior cuidado, minúcia, prudência e habilidade, a menor ‘brecha’ entre os inimigos, toda contradição de interesses entre a burguesia dos diferentes países, entre os diferentes grupos ou categorias da burguesia dentro de cada país; também é necessário aproveitar as menores possibilidades de conseguir um aliado de massas, mesmo que temporário, vacilante, instável, pouco seguro, condicional. Quem não compreende isto, não compreende nenhuma palavra de marxismo nem de socialismo científico contemporâneo, em geral.”
(ambas citações de Esquerdismo, doença infantil… cap. VIII. Os grifos são de Lenin)
É preciso saber “sujar as mãos”, ensinou Lenin; fazer acordos com setores burgueses para aproveitar-se das brechas da burguesia e, assim, mantê-la paralisada e favorecer a ação do proletariado. Numa conjuntura como a atual, no Brasil, é evidente que a esquerda revolucionária deveria saber aplicar essa tática de Lenin; fazer acordos e compromissos com setores pequeno-burgueses ou democrático-burgueses, por mais vacilantes que sejam, e ir derrotando um inimigo burguês de cada vez. Ora, querer enfrentar todos os inimigos burgueses ao mesmo tempo é uma estupidez que não resiste ao primeiro confronto. Cabe enfrentar primeiro e antes de tudo o mais forte, e hoje, no Brasil, o setor mais alinhado com o grande capital, que dirige a maior máquina repressora estatal e que melhor controla a classe trabalhadora é o PT e seus aliados no bloco do poder (por mais fragilizados que pareçam agora). A esquerda socialista revolucionária deve saber entrar em certos acordos com setores pequeno-burgueses e democrático-burgueses e convocar conjuntamente a classe trabalhadora para atos contra o governo (demarcando nesses atos seus espaços e suas pautas), visando a aprofundar a crise do governo central. Os setores burgueses contrários ao PT são vacilantes e instáveis — veja-se o repúdio ao Alckmin e ao Aécio neste 13/03 —, mas minimamente mantêm-se em pé graças à ausência da esquerda. A esquerda é que deveria aproveitar-se da vacilação da burguesia, e aprofundar a paralisia de todas as suas frações.
Para todo acordo ou frente há condições, ensina Lenin no cap. IX do referido livro. São elas:
1) que tudo seja feito desde o início em público e de forma transparente, sempre esclarecendo às massas trabalhadoras o objetivo final do acordo ou frente;
2) que seja mantida toda liberdade de crítica;
3) que o aliado seja desmascarado cotidianamente entre as massas, já sendo preparada, portanto, sua queda futura.
É urgente, é mais que urgente, que a esquerda socialista, ou ao menos algumas de suas frações, se una para seriamente efetivar uma política leninista. Não é hora de purismo, de ficar em cima do muro; menos ainda de delirar com saídas institucionais burguesas para a atual crise (como defender uma Assembleia Constituinte, ou novas eleições burguesas); é hora de aprofundar a crise e paralisia da burguesia e incentivar a massa operária a ações que tendam à abertura da dualidade de poderes. As condições são adversas, mas há oportunidade histórica. Fábricas são ocupadas em Campinas, Hortolândia, ABC, e esse processo ainda incipiente pode se aprofundar na atual crise. Não cabe inventar panacéias do futuro, mas paralisar a burguesia e abrir a brecha que favoreça a ação independente da classe trabalhadora, visando ao poder dos trabalhadores. Sobre a base dessa ação a esquerda revolucionária encontrará condições ideais para se reconstruir.