O V Congresso do Partido dos Trabalhadores reuniu-se em Salvador, Bahia, entre os dias 11 e 13/06. Nos balanços políticos que já circulam a seu respeito comenta-se que ele de nada serviu; que pariu um rato, etc. Havia certa expectativa de que o PT votasse a (perspectiva de) ruptura com o PMDB; rejeitasse a política econômica de J. Levy; aprovasse o fim das doações privadas para campanhas eleitorais, etc. Essa expectativa provinha da inocência. Nada disso aconteceu (pois significaria aumentar a fragilidade da presidente) e o tesoureiro do PT, Vaccari, preso pela Op. Lava-Jato, foi aplaudido em pé como herói. A verdade é que o congresso foi absolutamente bem sucedido na finalidade para o qual foi realmente marcado: aprovou a proposta pela formação de uma coalizão ampla, uma frente de “esquerda” que dê base ao Lula-2018. Esse é o núcleo da chamada “Carta de Salvador”, aprovada. É sobre essa proposta de “Frente Ampla” que falaremos aqui.
A “Carta de Salvador”, documento base do congresso, argumenta que se passará uma “mudança estratégica” na linha do PT. A estratégia anterior, escrevem, teria se esgotado. Ela fora forjada, supostamente, para outra realidade, “nos anos posteriores ao colapso da União Soviética”, quando a nova hegemonia imperialista do “capital financeiro” teria justificado alianças do partido com “setores mais vinculados à indústria nacional e ao mercado interno”. Essa estratégia, segundo eles, dera base à aliança com o “centro” (sobretudo PMDB, mas também PSB e outros), em nome do desenvolvimento do país, contra os “neoliberais”, expressos no PSDB e DEM (PFL), subservientes ao imperialismo. Com base nessa aliança “produtivista” (classe trabalhadora + capital produtivo), a dobradinha do operário Lula com o mega-industrial José Alencar teve sucesso em derrotar as “forças do rentismo”. Essa estratégia, argumentam, havia sido vitoriosa por longo período, e em parte graças ao cenário econômico mundial favorável, mas agora, com o “receio da intensificação do protagonismo popular” e com a mudança nos ventos da economia mundial, tudo estaria mudando; os “grupos centristas” estariam se reposicionando à direita, o que tornaria “remotos” os “processos de mudança em favor do povo, sem mobilização”.
Os cabeças do PT fazem ainda, na carta, uma grave autocrítica: “58. O partido e o governo acabaram (…) adaptados a um regime marcado pelo predomínio do poder econômico, pela limitação da participação popular e pelo monopólio da informação (…)”. “59. Deixado intacto, esse sistema político-eleitoral contaminou práticas partidárias, deformou relações internas e trouxe de contrabando métodos e hábitos da política tradicional: a supremacia dos mandatos sobre as instâncias partidárias, o esvaziamento da vida interna fora de períodos eleitorais, o relativo distanciamento dos movimentos sociais, sinais de burocratização, a centralização como método de direção”. Mas, segundo os dirigentes petistas, esses problemas foram analisados pelo partido já no III Congresso (de 2007, pós-mensalão) e, desde lá, muitas medidas têm sido, supostamente, tomadas. Estas, entretanto, dizem, são insuficientes: “63. Reconhecemos que as alterações na situação internacional e local nos obrigam a uma mudança de maior envergadura”.
O que seria essa mudança de maior envergadura? Justamente a “frente ampla”, “democrática e popular”, que começa a ser arquitetada para dar base ao Lula-2018. O nome é tomado da “Frente Ampla” de Mujica no Uruguai (mas, às vezes, a Concertación chilena de Bachelet é tomada como exemplo, outras vezes o Podemos espanhol de Iglesias). Essa “frente ampla” se diz “democrática e popular” porque consiste justamente nesses dois pontos: 1) a rearticulação de setores burgueses “em prol da democracia”, e 2) na ampliação de uma base comprada, popular, a ser usada como tropa de choque por Lula caso a conjuntura o peça.
O ponto 1 — articulação de setores burgueses — anda a todo vapor. Dessa articulação participam os cabeças da “ala esquerda” do PT, como Tarso Genro e Valter Pomar, mas também os mais próximos a Lula e seu Instituto. Ainda assim, a direção dessa articulação burguesa está sob as rédeas de Roberto Amaral (líder histórico do PSB e ex-ministro de Lula), que articulou figuras tão curiosas como Bresser-Pereira e Cláudio Lembo. Bresser-Pereira (fundador do PSDB, ministro de Sarney e de FHC) e Cláudio Lembo (ex-DEM, quando foi Governador de São Paulo substituindo Alckmin, e atualmente no PSD de Kassab) foram convertidos em “companheiros” e agora combatem a “direita golpista” que protestou contra Dilma. As declarações de ambos a esse respeito — sobretudo as de Lembo — são hilárias, mas servem para algo: comprovam que não há risco verdadeiro de “direita golpista”, e, disfarçado sob esse discurso, existe sobretudo o temor burguês de um possível levante de massa da classe trabalhadora, já prenunciado pelas movimentações da pequeno-burguesia. Os setores burgueses conscientes percebem o risco para a democracia burguesa contido na falência histórica do PT, afinal, como segurar as massas sem o PT e sua estrutura burocrática social? As reuniões dessa frente burguesa ocorrem no Clube dos Engenheiros do RJ e no Sindicatos do Engenheiros de SP, reunindo às vezes mais de 100 pessoas. A ideia era aguardar o aval do Congresso do PT para avançar decisivamente no lançamento da “Frente”. A data planejada para o lançamento é o próximo dia 29/06.
Quanto ao ponto 2 — a ampliação da base de “esquerda” e popular comprada pela máquina estatal —, é bastante curioso que a Carta de Salvador referende uma retórica mais esquerdista já ensaiada por Lula em seu último discurso de TV. O programa dessa frente ampla seria a realização das “reformas estruturais”. Por “reformas estruturais” o texto entende as reformas tributária (taxação das grandes fortunas), agrária, urbana, educacional, sanitária e de transportes. A elas somariam-se a “democratização do Estado, o fim dos autos de resistência, a desmilitarização das polícias estaduais, a descriminalização das drogas, a criminalização da homofobia, a igualdade de gêneros e o reconhecimento pleno da união homo-afetiva, entre outros direitos civis”. O PT está desengavetando seu programa “histórico” de esquerda. Seria mesmo para fazer grandes modificações no país? Antes de tudo, pragmaticamente, têm eles em vista apenas articular setores mais amplos para mobilização popular, para criar “um poderoso movimento de massas que (…) seja capaz de impor uma situação de cerco ao Estado oligárquico”.
Por mais importantes que possam ser essas reformas ditas “estruturais”, mesmo as mais profundas, elas serão sempre muito localizadas, justamente porque não colocam em cheque efetivamente a estrutura do capital. Trata-se, na verdade, de reformas superestruturais, a maioria no âmbito da circulação do capital, apesar do nome geralmente atribuído — “estruturais”. O capital pode conviver com tais reformas temporariamente. Apesar delas, o ciclo da barbárie capitalista avançará, devastando aos poucos as mínimas liberdades democráticas instituídas. A verdade é que não é possível tomar o Estado burguês e fazer, por meio dele, reformas efetivas, duráveis, de longo prazo (menos ainda na atual conjuntura de crise internacional do capital). Marx, já ao final do século XIX, após as lições da Comuna de Paris, falava da insignificância de propostas como a “taxação das grandes fortunas”, justamente porque o problema da revolução socialista não é fortalecer o Estado atual e aplicar medidas “sociais” de reformas, mas criar um poder operário, paralelo ao Estado oficial, para derrubar este na hora certa. O Estado não está em disputa, a despeito da lógica gramsciana de Tarso Genro e sua defesa da “hegemonia”.
O lado “popular” da frente proposta é, portanto, apenas a tentativa de reabsorver setores de esquerda hoje um tanto arredios, mas que se mantêm com o programa e a alma petista. Se o PT avançar de forma decisiva no fortalecimento da militância em torno desse programa o propósito de existência independente de alguns agrupamentos de esquerda desaparecerá. Tenderão a ser reabsorvidos, esvaziados de conteúdo. Mas, ainda assim, cabe perguntar: se o PT for bem sucedido, isso significa que se criará um grande movimento popular, com ampla participação? Não acreditamos. Dificilmente essa articulação da esquerda em torno do PT ultrapassará as estruturas burocráticas. Não se capilarizará. O ódio popular, a descrença e a desconfiança em relação ao partido tendem a falar mais alto. O PT — seja em seu nome, seja com um nome fantasia de uma frente ampliada ou coalizão —, sem apoio nas forças reais de classe, precisará cada vez mais apoiar-se numa estrutura burocratizada e comprada. Os pilares de sua sustentação — burocracia estatal, burocracia sindical, burocracia estudantil, sem-terra, sem-teto, etc. — serão possivelmente as bases, mantidas por dependência material, sobre as quais poderá erguer-se um projeto autoritário e personalista de controle, o lulismo.
Um prenúncio disso pôde ser viso nas manifestações do mês de março deste ano. A pequeno-burguesia afluíra ao ato do dia 15/03 não porque, como disseram os petistas (e também Bresser-Pereira) “está incomodada com a ascensão dos pobres”, porque “os pobres agora viajam de avião”, etc. Argumentos idealistas como esses, em geral, não servem para nada. A pequeno-burguesia estava raivosa e protestara porque suas condições de vida foram rebaixadas no último período, bem como foram as condições dos setores mais amplos e organizados da classe trabalhadora. É por isso que em diversos locais de trabalho a classe trabalhadora viu com simpatia a manifestação de 15/03. Em São Paulo um importante setor da classe trabalhadora acorreu à manifestação, ainda que minoritário no ato. Mas o ato que lhe antecedeu, o ato petista do dia 13/03, chamado pela burocracia de forma preventiva ao dia 15, deu a dimensão ainda frágil da possível base lulista (cerca de 80 mil pessoas no ato de SP, mais alguns milhares espalhados pelo país). O que a “Carta de Salvador” propõe na verdade, é, na prática, o fortalecimento dessa base, ampliá-la, investir dinheiro nisso: “70. O Partido dos Trabalhadores não economizará esforços (…)”. A velocidade do fortalecimento dessa base ainda não está definida e depende da conjuntura, mas ao que tudo indica o processo será acelerado. Se isso se consolidar, concretizar-se-á efetivamente o lulismo (fenômeno autoritário, similar ao varguismo ou ao peronismo, para o qual as bases têm sido criadas, particularmente, desde 2005).
A cada vez que a esquerda vacila e não confronta de verdade o governo burguês do PT, amplia-se e fortalece-se essa possível base controlada para conflitos com as massas. A história, como sempre, cobra caro pelos erros de direção da esquerda revolucionária. Caberá à luta autônoma e independente da classe trabalhadora queimar essa repugnante “Carta de Salvador” quando chegar a hora.