Acolhido o pedido de impeachment por Eduardo Cunha, é grande a possibilidade de tornar-se uma bola de neve implacável contra Dilma Rousseff. O PT fez um cálculo político arriscado; percebeu que se seguisse nas mãos de Cunha seria obrigado a enfrentar o impeachment amanhã, da mesma forma, mas em condições ainda piores.
Pesaram para a definição da tática de enfrentamento assumida pelo PT as futuras delações de Nestor Cerveró e Delcídio do Amaral, ambos estreitamente vinculados à Dilma na época de sua gestão sobre a Petrobras. Esse período, sabe-se agora, foi marcado por sumptuosa corrupção.
Lula e seus homens de peso no entorno de Dilma — Wagner e Berzoini, sobretudo — decidiram que seria melhor enfrentar o impeachment já, enquanto ainda é possível manter a imagem senso-comum de que Dilma é uma pessoa ilibada, de que não pesa contra ela qualquer suspeita, etc. A manutenção dessa imagem é determinante para o não aquecimento das ruas, mas pode ser quebrada pelas delações a vir. Por isso o PT joga com a tática de acelerar o julgamento do impeachment e luta, agora, para que não haja recesso parlamentar.
Caso a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a ser formada nesta semana, julgue ainda neste recesso que o pedido de impeachment não procede, o argumento seria de peso para se ter maioria contra o impeachment na casa baixa. E se fosse derrubado na Câmara agora, seria possível retomá-lo depois? Possivelmente não. A página estaria virada. E mesmo outro pedido de impeachment, tendo outra base jurídica (como, por exemplo, a Refinaria de Pasadena ou o caixa-dois da campanha de Dilma e Temer em 2014) ficaria muito fragilizado; soaria como jogo político vazio.
O planalto, entretanto, parecia não contar com as muitas variáveis que poderiam surgir e inevitavelmente surgem em processos como este. No final da última semana o Ministro da Aviação Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS), protocolou sua saída do governo. O mal, para o PT, é que Padilha é o pemedebista mais próximo de Michel Temer, o vice-presidente. A saída de Padilha foi vista como um afastamento de Temer, o que desequilibraria ainda mais a base do governo.
Mas é mais do que isso: Padilha saiu do ministério para articular a base de seu partido para o impeachment em nome de Temer, bem como para avançar negociações com demais partidos para um futuro governo Temer. É por isso que as declarações de insignes petistas elogiando Michel Temer ao final desta semana soaram tão ridículas quanto vazias.
Temer, aliás, não tem nada a perder. Se o impeachment não vingar, não poderá ser demitido por Dilma de seu cargo de vice-presidente. A relação entre os dois continuará fria e falsa como sempre foi. E, se vingar, todo seu partido deleitar-se-á com as milhares de vagas e cargos que se abrirão. A única coisa que Temer não pode realmente deixar de fazer é o jogo sujo para o qual foi designado agora, o qual, é claro, fará com toda a discrição que lhe caracteriza.
Nestes últimos dias Temer reuniu-se com os líderes da oposição, do PSDB (Tasso Jereissati, Aloysio Nunes, José Serra e Geraldo Alckmin), do DEM (José Agripino Maia) e do PSB (Fernando Bezerra Coelho). Em pauta esteve sua proposta de “reunificação do país”, ou seja, na prática, a aliança do possível futuro governo Temer. A perspectiva que se apresenta, sobretudo no acordo com o PSDB, é a saída a la Itamar Franco: Temer assumiria um governo tampão até 2018, baseado nesses partidos da oposição, e na próxima eleição o PMDB apoiaria um candidato tucano.
Há dois empecilhos para essa movimentação de Temer: o outro pedido de impeachment, que corre no TSE e que envolve o próprio vice-presidente; e a ala governista de seu próprio partido.
O outro pedido de impeachment, que corre no TSE, volta-se não só contra Dilma, mas também contra Temer. Trata-se da impugnação de toda a chapa Dilma-Temer, acusada de caixa-dois. O PT conta com essa ameaça do TSE para paralisar a movimentação atual de Temer. Assim, curiosamente, o PT chegou na paradoxal situação de contar com a possibilidade de um impeachment contra si mesmo para barrar um impeachment contra si mesmo. É o fundo do poço.
A ala pró-governo no PMDB não é pequena. No momento, parece até ser maior que a de Temer, mas não se sabe a velocidade de sua dissolução caso o impeachment ande com os próprios pés. O primeiro nome que vem à mente quando se fala dela é o do Presidente do Senado, Renan Calheiros. Renan sabe que seu destino está vinculado ao do PT, pois foi salvo da lista do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, graças ao PT. Mesmo assim, está em silêncio desde o acolhimento do processo de impeachment.
Outra parte governista no PMDB é composta por figuras as mais fisiológicas e desprestigiadas, aventureiros de toda espécie, sob liderança do jovem carioca Leonardo Picciani, líder do partido na Câmara. É o baixo clero. Boa parte dessas figuras repulsivas era até ontem, curiosamente, a base de Eduardo Cunha na Câmara e o seguiam diante do mínimo gesto. É com esse tipo de gente que o governo pretende enfrentar Temer. Na sexta-feira (4) Dilma ofereceu a esses setores o Ministério da Aviação Civil, abandonado por Eliseu Padilha.
Neste momento, tudo depende da composição da Comissão Especial da Câmara que analisará o pedido acatado por Eduardo Cunha. Tudo depende de saber qual ala do PMDB será majoritária: os caciques de Temer ou o baixo clero de Picciani. Esse é o fiel da balança para o PT ter maioria na Comissão.
De qualquer forma, o PT continua na mão do que há de pior na política nacional. Tudo isso mostra que o PT foi incapaz, em todos esses anos, de desvincular-se dos setores mais retrógrados da burguesia nacional. E mais: em grande parte o PT foi o responsável pelo retorno à cena, nos últimos dez anos, de algumas das piores figuras (Sarney, Collor, Renan, Maluf, etc.). E tudo isso, obviamente, não visando a um projeto progressista de país, mas somente à manutenção da ordem burguesa e à maior submissão da classe trabalhadora e das riquezas nacionais ao grande capital.
É por isso que hoje, quando chega a hora da estrela, quando o PT está por um fio, a classe trabalhadora se nega a mexer um único dedo em sua defesa. A classe não vê este governo como seu, mas, muito pelo contrário, como um inimigo seu. A maioria da população brasileira vê este governo com ódio.
Afinal, como não ver com ódio um governo que traiu tudo o que prometia? Como não ver com ódio um governo que fez tudo (e mais) do que criticava no PSDB? Como não ver com ódio um governo que levou adiante em novo patamar a venda mesquinha e privada dos recursos do país, que flexibilizou direitos trabalhistas em duros ajustes fiscais desde 2003, que atacou as populações originárias, que destruiu a fauna e a flora em nome do agronegócio? Um governo que nem mesmo fez a sua tão prometida reforma agrária (a fez em menor escala que FHC!). Como levar a sério um governo que comete estelionato eleitoral e compromete suas finanças tendo em vista única e somente a reeleição? Como não ver com ódio um governo que altera a legislação para taxar de terroristas os movimentos sociais que lhe deram base histórica?
É por tudo isso, e muito mais, que boa parte da classe trabalhadora hoje gostaria de ver Dilma enforcada nas tripas de Cunha. “Que ambos se matem”, pensam, legitimamente.
Um governo frágil como este mantém a economia burguesa em grande medida paralisada. Do ponto de vista do próprio funcionamento econômico burguês isso é um desastre. E o desastre, é claro, é pago primeiramente pela classe trabalhadora. Na ausência de uma alternativa revolucionária da classe trabalhadora, um governo frágil como este apenas aprofunda a crise econômica, que ceifa empregos e rebaixa o nível de vida da maioria da população. A manutenção deste governo em crise política é o aprofundamento da crise econômica burguesa. E a crise política não terá fim enquanto se mantiver este governo. O custo econômico e social do impeachment de Dilma, por maior que seja, se tornou menor que o custo econômico e social da manutenção moribunda deste governo até o final de 2018.
A saída do PT do governo, como assinalamos, pode enfraquecer a gigantesca burocracia sindical petista, que entrega e persegue grevistas e lutadores que se atrevem a radicalizar as lutas nos principais redutos econômicos e industriais do país. Tendo em vista que não se trata de um golpe político, nem de uma transição a um regime ditatorial ou fascista, a saída do PT do governo pode acelerar o afloramento de lutas espontâneas da classe trabalhadora, um pouco como estas que já anuncia, desde 2013, a combativa juventude brasileira.
Para a classe trabalhadora, com impeachment ou sem impeachment, o problema central colocado é o do rebaixamento de seu nível de vida com o aprofundamento da crise econômica. A questão central, estratégica, é a organização da classe operária para a manutenção das suas condições de vida; é a luta defensiva-transitória por salário e emprego, visando à abertura de processos de dualidade de poderes (ocupações de fábrica, comitês de fábrica, conselhos de trabalhadores). Caso Dilma não caia já, a mobilização da classe trabalhadora que se aproxima terá o prazer de derrubá-la.