A conjuntura nacional e mundial produz hoje uma importante reorganização — ou recriação — da esquerda brasileira. O caso mais relevante, pela dimensão nos padrões atuais da esquerda, é o do PSTU.
A julgar pelos conflitos e acusações mútuas entre os que continuam nesse partido e os que saíram (e formaram o grupo MAIS), é natural questionar: como setores tão diferentes puderam conviver tanto tempo num mesmo partido? Ao que parece, no entanto, a diferença não era tão clara para eles mesmos há pouco mais de um ano. Ela foi produzida pela conjuntura.
O resultado é importante. Em geral, toda diferenciação é importante, na medida em que enriquece as discussões entre a esquerda socialista e favorece, amanhã, a síntese programática e organizativa necessária à libertação da classe trabalhadora. Um exemplo clássico é a diferenciação, de importância histórica, realizada por Lenin, entre bolcheviques e mencheviques em 1904.
A questão agora é saber até onde vai esse processo. A cisão iluminou ambos os lados e os fez encontrarem-se mais consigo mesmos. É visível que o setor que permanece no PSTU encaminha-se para uma posição mais radical, e o setor que se afastou, o MAIS, encaminha-se para uma posição reformista e eclética. A questão mais relevante é saber até onde vai o setor que continua no PSTU no caminho de reencontro com posições ortodoxas do trotskismo e do bolchevismo.
Pensamos que os companheiros do PSTU precisam fazer um sério balanço de sua história. Acima de tudo, precisam questionar-se: como algo assim (tão diferente) surgiu e desenvolveu-se dentro de si mesmos? Não se trata de um mero racha: é praticamente a metade do partido.
Do nosso ponto de vista, o que permitiu tal grupo criar-se e desenvolver-se foi o próprio programa do PSTU. Sua base é o afastamento desse partido em relação ao Programa de Transição de Trotsky. As Teses para atualização do Programa de Transição, teses de fundação da LIT, redigidas por Nahuel Moreno, são apenas um capítulo desse afastamento. O início do afastamento foi o chamado pablismo, mas dentro da tradição morenista, particularmente, data da primeira metade da década de 1960, quando Nahuel Moreno submeteu-se ao SWP (Partido Socialista dos Trabalhadores) de Joseph Hansen e George Novack, os primeiros a literalmente revisar o Programa de Trotsky.
É verdade que o Programa redigido por Trotsky não é sagrado, mas o mal é que, em geral, as tentativas de revisão desse texto têm levado os trotskistas a adaptarem-se à social-democracia (ou ao stalinismo). Escrevemos um artigo sobre o esquecimento do Programa de Transição pelos próprios trotskistas, e pode ser lido aqui. O trotskismo quebrou a lógica dialética do Programa de Transição, que foi elaborado exatamente para não dar espaço ao reformismo e conduzir necessariamente à abertura da dualidade de poder a partir dos locais de trabalho e sua generalização em escala nacional.
Dois grandes erros aconteceram: 1) as reivindicações transitórias elaboradas por Trotsky foram negligenciadas em nome de reivindicações democrático-burguesas ou das reivindicações usuais da burocracia sindical (ignorando-se o balanço que Trotsky fez da greve geral francesa de 1936); e 2) a dialética interna ao programa foi apagada e a cadência das reivindicações foi quebrada, o que permitiu essencializar de forma errada e isolada as reivindicações. Assim, uma reivindicação que deveria ser realizada pelo poder (paralelo) dos trabalhadores foi tomada como uma reivindicação a ser realizada pelo Estado burguês (a lógica social-democrata).
O caso dos programas eleitorais evidencia bem isso. A lógica geral que predomina é de que se for feita uma auditoria da dívida e seu pagamento for suspenso, pode-se gerir o Estado e atender às necessidades dos trabalhadores. Seria necessário apenas um governo socialista, se possível apoiado em bases populares para efetuar a pressão contra o poder econômico do capital. Seria necessário exigir “mais verbas” para educação, saúde, moradia, etc. Essa lógica, que alimenta uma confusão sobre o papel do Estado burguês, persiste no PSTU, como atestam as candidaturas a prefeito apresentadas neste momento em várias cidades. Por exemplo, no Rio de Janeiro diz-se:
“Precisamos apresentar um programa que possa resolver, efetivamente, os graves problemas sociais, a começar pela suspensão do pagamento das dívidas, pelo fim da Lei de Responsabilidade Fiscal, fim das privatizações e terceirizações dos serviços públicos, anulação dos contratos e fim das OS, mais verbas para saúde, educação e creches públicas … estatização dos transportes coletivos, redução e congelamento das tarifas, passe livre para estudantes e desempregados rumo à tarifa zero”. O mesmo pode ser lido no programa apresentado pelo partido para a prefeitura de Fortaleza neste ano: “O PSTU defenderá a melhoria e ampliação dos serviços públicos (saúde, educação, moradia etc). Por mais verbas para os serviços públicos e contra as privatizações.”
O “público” e a “estatização” defendidos, infelizmente, são na prática referentes ao Estado burguês atual. “Verbas”, todavia, nada mais são do que mais-valia que percorre o Estado. O que significa exigir que sejam ampliadas as verbas ou melhor geridas? O programa do PSTU parte do Estado e da esfera da circulação — “a começar pela suspensão do pagamento das dívidas”, diz o texto — e não do local de trabalho, da esfera da produção, das escalas móveis e da abertura do poder operário pelos Comitês de Fábrica. O ponto de vista é de cima, e não de baixo, porque adaptado à lógica social-democrata que gere, efetivamente, o Estado burguês sobre a população trabalhadora.
Para sermos honestos, é preciso notar que o PSTU tenta neutralizar essa lógica social-democrata com formulações que buscam um poder operário. No mesmo texto da candidatura do Rio de Janeiro diz-se: “estatização das empresas que demitirem sob controle dos trabalhadores” e “Petrobras 100% estatal sob controle dos trabalhadores”. Essa combinação — amálgama — entre um programa social-democrata e um programa marxista caracteriza o programa do PSTU há muito tempo. A corporificação teórica disso é o ecletismo que mescla Trotsky e Gramsci, próprio de vários intelectuais do partido, sobretudo dos que saíram para formar o MAIS.
Esse caráter dúplice ou dúbio expressa-se de forma sintética no slogan muitas vezes usado nesta eleição: “por um governo socialista apoiado em conselhos operários”. O correto, na verdade, é defender “um governo dos conselhos operários”. Um “governo socialista apoiado em conselhos operários” existiu, por exemplo, na Rússia de Kerenski em 1917, quando o governo provisório socialista-revolucionário e menchevique controlava os conselhos de operários e camponeses, ou mesmo no governo socialista de Salvador Allende, apoiado em grande medida nos cinturões operários. Eram governos de grupos socialistas gerindo o Estado burguês e apoiados em conselhos operários. Isso é o conceito de governo de Frente Popular, resultado direto e necessário do amalgama programático. Talvez por isso o PSTU não compreenda o conceito de Frente Popular, e caracterize os governos de Lula e Dilma, erroneamente, enquanto tal.
A verdade é que esse caráter dúplice ainda persiste no programa do PSTU. É uma contradição que precisa ser resolvida, pois do contrário seus problemas serão reproduzidos e ameaçarão o partido novamente. Acreditamos que há um esforço sério e honesto dentro do conjunto desse partido para a superação dessa contradição, todavia ela não será resolvida sem se alcançar a forma conceitual superior, dialética, do Programa de Transição de Trotsky. Se isso se der, se essa forma for alcançada, algo de relevância internacional para a classe trabalhadora ocorrerá no Brasil.