Na situação atual ainda é pouco provável que Dilma caia. Ela reuniu-se com o PMDB e demais partidos da base aliada antes de ir à Rússia (à cúpula dos BRICS). Acordo houve: todos assinaram um documento pela sua permanência, bem como pela de Temer. Pouco depois Dilma soltou a pérola na entrevista à Folha de São Paulo: “O PMDB é ótimo!”. Mas, claro, de pouca coisa servem os papeis assinados em momentos excepcionais como o atual. E nem tudo são rosas: há três novos ativadores da crise que podem mudar a conjuntura nas próximas semanas.
O primeiro e mais importante é o depoimento de Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC e apontado como chefe do cartel das empreiteiras, à Justiça Eleitoral. Pessoa responde como testemunha na ação de cassação do mandato da Dilma, protocolada por Aécio Neves e o PSDB em dezembro de 2014, pouco após a eleição. A acusação, como se sabe, é a de que o caixa da campanha de Dilma foi molhado por dinheiro ilegal, via ministros petistas Aloizio Mercadante e Edinho Silva. Dilma rebate a acusação acusando a oposição de golpismo (“lacerdismo”, à moda da antiga UDN) e argumentando que, se recebeu dinheiro de empreiteira, o mesmo provavelmente ocorreu com seu opositor Aécio Neves. A contra-acusação e argumentação, lógicas e prováveis, foram replicadas durante a semana pelo senador petista Humberto Costa, bem como pelos movimentos sociais dependentes do PT.
O segundo ativador é o parecer do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre as contas do governo referentes ao ano de 2014, que não batem. É o problema das “pedaladas fiscais”. O parecer é técnico, como bem disse Eduardo Cunha, mas seu uso pelo Congresso é político (seja para aliviar ou retaliar o governo). O parecer do TCU deve ser divulgado em agosto, mas ainda está sem data marcada. É provável que não venha à tona a tempo de jogar gasolina nas manifestações de oposição ao governo marcadas para 16 de agosto.
Essas manifestações são o terceiro ativador. São convocadas por grupos de direita e extrema-direita (Movimento Brasil Livre, Vem pra rua, Revoltados Online). A princípio, tendem a ser relativamente pequenas e a não dar em nada, devido à grande desmoralização pela qual passaram tais grupos após março (graças à sua impotência e falta de base social real). Mas, caso um dos dois primeiros ativadores (Ricardo Pessoa ou TCU) se manifeste decisivamente, os atos de agosto poderão se tornar bombásticos, como aqueles de março ou até maiores.
As chances dos dois primeiros ativadores fugirem do controle e incendiarem manifestações são relativamente limitadas, pois grande parte dos ministros de justiça foram indicados pelo PT. Por exemplo: quem preside o TSE (ao qual deporá Pessoa) é Toffoli, ministro ex-advogado oficial do PT. Veja-se ainda: em escala de voo em Portugal, antes de seguir à Rússia, Dilma reuniu-se secretamente com Levandowsky, ministro do STF próximo ao PT, e discutiu a Lava-Jato. Os ministros temem abrir uma crise muito profunda da institucionalidade burguesa.
Ainda assim, não se deve esquecer, tão grandes são as contradições que envolvem esta conjuntura que, é provável, alguns elementos tendem a fugir do controle político da burguesia e da sua mera vontade por estabilidade. É por isso que ela já trabalha com outros cenários possíveis caso a crise se abra. A burguesia, mesmo em crise de representação política, não é burra politicamente; já colocou as cartas na manga e começou articulações para deitá-las à mesa caso necessário, caso o impeachment torne-se um fato consumado.
O primeiro e menos provável cenário caso a crise se abra é uma completa nova eleição no país. Ela exige uma impugnação da chapa Dilma-Temer. Do ponto de vista lógico, essa impugnação seria factível com base no parecer do TCU, pois as irregularidades nas arcas do governo em 2014 dizem respeito necessariamente ao governo conjunto dos dois caciques partidários. Isso, porém, dificulta o cenário em que o PMDB possivelmente se aliaria ao PSDB numa impugnação. A chance do Congresso, portanto, endossar o possível parecer negativo do TCU e votar por uma impugnação da gestão conjunta é pequena, afinal, como o PSDB teria maioria sem o PMDB? Ainda assim, caso isso ocorra, o poder iria a Eduardo Cunha, que em até 90 dias teria de chamar nova eleição. Esse cenário de novas eleições interessa ao grupo de Aécio Neves no PSDB, pois este, mesmo concorrendo com Lula, teria (segundo dados recentes) grande chance de sair vitorioso. Mas se essa proposta a princípio não interessaria ao PMDB por afastar Temer do poder, ela também não interessa ao grupo paulista do PSDB, sobretudo a Alckmin e a Serra, que têm em vista serem candidatos em 2018.
O segundo e mais provável cenário caso a crise se abra é uma impugnação somente de Dilma Rousseuff (com base nas declarações de Ricardo Pessoa), mantendo-se Temer na cabeça do país. Temer, supostamente, não teria nada a ver com as doações ilegais da empreiteira UTC ao PT. Essa via interessaria não só ao PMDB, por dominar ainda mais o governo federal, mas também, como falamos, ao grupo paulista do PSDB (respaldado por FHC, que vê uma estabilidade institucional maior em torno de Temer). Essa posição poderia facilmente ter maioria no congresso. Trata-se de um aprofundamento da linha de “sangrar o governo”, expressa pelo tucano paulista Aloysio Nunes em março, mas é também a linha temerosa de quebra institucional que não deu certo em 2005, quando o PSDB não defendeu o impeachment de Lula após o mensalão e foi derrotado na eleição de 2006.
A chance de isso dar errado novamente é grande, mas desta vez o PSDB espera contar com a catapulta do pleito municipal de 2016. Ao que tudo indica o PT terá o pior resultado em prefeituras em mais de uma década, devido à associação da imagem do partido à corrupção. Os ratos estão fugindo do barco ao afundar. É o caso de Marta Suplicy, que filiou-se ao PSB e possivelmente contará com o apoio do PSDB para disputar a prefeitura de São Paulo, com grande chance de vitória sobre Haddad. Assim, apostando numa virada decisiva no pleito municipal de 2016, mesmo que para isso tenha de ceder em alianças, o PSDB intenta garantir máquina, palanque e estrutura para 2018.
Até 2018 Temer e o PMDB seriam os garantidores da estabilidade burguesa. Aliás, esse é o tradicional papel do PMDB em momentos pré-crise institucional. A saída, além de interessar ao PMDB e ao PSDB, possivelmente interessaria também a Lula, que poderia dissociar de vez sua imagem desse governo que o macula. Lula poderia afastar-se de Dilma e do PT e, até 2018, construir seu projeto pessoal (lulista) visando às eleições. Lula, inclusive, poderia reforçar a retórica de esquerda, baseado num arco mais amplo de forças políticas e dos movimentos sociais (o tal “Grupo Brasil”). Com um governo Temer, Lula teria as mãos livres para fazer críticas à presidência (afinal, Temer arcaria com o ônus do ajuste fiscal e da crise econômica). Caso o PT saia apenas da presidência, mas mantenha-se na máquina estatal e nos ministérios no governo de “salvação nacional” em torno de Temer, poderia usar parte dessa máquina que lhe restou para alimentar o projeto lulista.
Assim, caso a crise se abra, essa saída pelo PMDB, que interessaria tanto ao PSDB quando a Lula, tenderia a ser menos dolorosa para a burguesia do que a convocação de novas eleições. Mas se a saída pela via do PMDB é mais tranquila para a burguesia, isso não significa que o país ficará estável sem o PT no governo, pelos motivos que exporemos agora.
Os interesses da classe trabalhadora não estão representados no destino do PT, apesar da retórica de seus movimentos sociais. Para a nossa classe, bem como para a esquerda revolucionária, o problema todo deve ser pensado e analisado de outro ponto de vista. Tudo o que falamos até aqui diz respeito à “grande política”, à “política nacional”, ou seja, à política burguesa. A rigor, essa é uma falsa e unilateral política, pois leva em consideração apenas um lado do problema, o lado burguês. As brigas em jogo são entre setores da burguesia, classe que se une sempre que necessário para manter seu domínio. Abaixo dessa política há outra, mais verdadeira e valiosa. Por trás dessa vitrine ofuscante, que aparece na mídia, nos grandes jornais e canais de TV e nos engana, há a verdadeira política, da luta de classes. A burguesia sabe disso. Para ela, sobretudo para o grande capital, as suas frações podem brigar à morte, com a condição de que não atrapalhem o bom andamento da ordem oculta, ou seja, a tranquilidade para a extração de mais-valia. Essa é a única coisa que realmente importa, em última instância, para a sociedade capitalista.
A classe trabalhadora precisa pensar com a mesma lógica, a lógica da luta de classes, e não se iludir com os falsários que falam, tanto e tanto, há anos, em seu nome, alimentando ilusões no parlamento burguês ou em reformas dentro da ordem do capital. A classe trabalhadora precisa exercer a sua política verdadeira, que é a resistência à extração cotidiana de mais-valia pelo capital. Mas para essa resistência e para essa política verdadeira, sem dúvida, é um fator muito positivo a saída do PT do poder. O PT, queira-se ou não, é o principal partido, para a burguesia, nessa verdadeira política, pois é o partido mais bem qualificado e preparado para manter a classe trabalhadora controlada e impotente diante do roubo cotidiano que o capital faz de sua vida. Se a burguesia tiver de afastar o PT do poder, é porque a situação chegou em um grau insustentável para sua dominação. O PT é o fiel da balança para a manutenção da ordem burguesa atual e, caso caia, será acelerada a queda de um bloqueio histórico à luta da classe trabalhadora, um bloqueio que há décadas impediu e impede a criação de uma alternativa revolucionária. Basta lembrar que há 35 anos a maioria da esquerda dita revolucionária entrou no PT em busca de um suposto atalho de construção, e saiu desse partido igual ou mais fraca do que entrou. O PT, com seu programa reformista e parlamentar, bloqueou por décadas e ainda bloqueia a esquerda e a classe trabalhadora. O afastamento do PT da presidência (mesmo que signifique sua manutenção na estrutura do governo) significa quebrar em grande medida o financiamento de sua base sindical e burocrática comprada, que se alimenta do Estado e age para paralisar a classe trabalhadora. Diminuir as verbas para as burocracias compradas é uma forma de enfraquecê-las materialmente. Enfraquecê-las tende a favorecer seu atropelo pelas lutas da classe trabalhadora que certamente virão.
Assim, se a saída de Dilma do governo não é ainda algo estratégico (no sentido da sua derrubada pelo poder autônomo e organizado da classe trabalhadora), é sem dúvida algo tático muito importante. A saída do PT do governo, ao favorecer a luta autônoma da classe trabalhadora, é hoje uma tática para acelerar o reagrupamento da esquerda revolucionária em torno de um novo projeto, ou melhor, em torno do velho projeto marxista da dualidade de poder.