O governo federal é agora obrigado a reconhecer que o gigantesco descontentamento popular contra ele próprio, manifestado sobretudo no início de 2015, tinha um profundo lastro real. Nelson Barbosa, Ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, admitiu na última semana que a atual crise na economia brasileira só é comparável à que estourou aqui na grande depressão do Séc. XX (pós quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929). O Ministério da Fazenda reconsiderou para baixo sua projeção de queda na economia em 2016. A nova projeção deve aproximar-se de – 3%, e já há quem julgue tais dados como otimistas…
O ponto de virada da crise, vê-se agora, foi o segundo semestre de 2014 e começo de 2015 (ano que registrou queda superior a – 4% do PIB). A renda do trabalhador brasileiro vem sendo rapidamente dissolvida desde então (o desemprego neste ano passará de 13%, o dobro do registrado ao final 2014). Curiosamente, a revolta popular com o governo expressa ao final de 2014 e início de 2015 coincidiu exatamente com o momento de virada da crise na economia brasileira. Ali a crise entrou num novo patamar. O descontentamento da classe trabalhadora brasileira no período manifestou, muito antes das estatísticas dos sabichões burgueses em 2016, a profunda desagregação da economia nacional.
Tais dados enriquecem um balanço do ano de 2015 e esclarecem a contenda em torno da defesa ou não do governo Dilma. Estavam certos aqueles que defenderam que o descontentamento da classe trabalhadora devia ter vazão na forma mais direta e livre possível. Por mais irracional que pudesse parecer essa revolta — pois num âmbito aparentemente apenas político e superestrutural —, ela era legítima e precisava ser expressa sem meios-termos ou papas na língua. Ela assumiu nos primeiros meses de 2015 a forma do “Fora Dilma” (preparado pela queda brusca na aprovação do governo em junho de 2013), que era, na verdade, em última instância, naquele momento, um “fora crise capitalista”. Sob o aparentemente apenas político “Fora Dilma” escondia-se a verdade da classe trabalhadora, ou seja, sua relação objetiva de contradição com o capital.
Os acontecimentos políticos posteriores a março de 2015 diluíram o descontentamento, ou turvaram o caminho da conjuntura. Isso ocorreu porque a verdade iluminada pelo descontentamento da classe trabalhadora no início de 2015 não teve consequência. Essa verdade não foi pega e trabalhada (cultivada) pela vanguarda organizada da classe trabalhadora e, por isso, não foi mantida manifesta; ela refluiu e se escondeu, obscurecendo o caminho.
Apesar de a classe trabalhadora brasileira expressar sua disposição para lutar contra o governo — que materializava em sua imagem, insistimos, a crise econômica do capital —, a chamada esquerda vacilou e faltou ao encontro com a história. A esquerda ou defendeu o governo (como era de se esperar da base sindical do PT, mas pôde ser verificado também em setores supostamente independentes do governo, como MTST ou correntes do PSOL) ou ficou no centrismo, no meio termo. Esse centrismo expressou-se na política do “nem… nem” (nem a favor nem contra Dilma, por uma terceira via abstrata e inexistente) ou num obreirismo vazio que desprezava dogmaticamente o elemento político. Esse obreirismo, fugindo do problema colocado, não compreendia que o aparentemente apenas político “Fora Dilma” era também, e ao mesmo tempo, o econômico, a revolta espontânea da classe trabalhadora contra a crise do capital. Nem sempre a verdade se manifesta de forma pura e racional. Aliás, via de regra é assim.
Devido à ausência das organizações de esquerda no período crítico de 2015 (primeiro semestre) o descontentamento contra o governo foi fácil e tranquilamente tomado por grupos ridículos de direita, em geral muito frágeis e inconsistentes politicamente. A dimensão que eles ganharam hoje é culpa da esquerda. A classe trabalhadora percebeu que esses não eram os seus representantes, nem a Av. Paulista era seu palco natural (como o são, antes de tudo, os locais de trabalho), e retornou melindrada aos bastidores. A desmoralização e confusão se manifestaram nos elementos mais avançados da classe. Ficou na rua apenas a pequena-burguesia.
A manifestação da crise deve retornar com o dobro de força no próximo período, dado que o problema econômico está longe de ser resolvido e só se aprofundará, como apontam todos os dados internacionais. O “Fora Dilma” pode e deve retornar, mas agora mais claramente vinculado à luta contra as demissões e a inflação, possivelmente com greves e até ocupações de fábricas (como têm nos ensinados os metalúrgicos de Campinas e Hortolândia, em luta contra as demissões).
É evidente que os problemas nacionais recentes não eram nem são pura e simplesmente “culpa da Dilma” ou “culpa do PT”. Tal acusação é simplista e, hoje, cada vez mais, motivada por disputas político-partidárias vazias, de grupos que em última instância não apresentam projetos diferentes dos petistas para o país. Aécio Neves, em declaração pública na última semana, anunciou que o PSDB está em consenso com o PT nas questões econômicas fundamentais e até pretende um acordo para facilitar sua aprovação no congresso.
Os problemas atuais não são culpa da Dilma ou do PT porque a economia brasileira não é — ainda bem! — independente do resto do mundo. O Brasil é um país capitalista avançado. O capitalismo “brasileiro” é na verdade o capitalismo mundial, em crise. Mas é inegável também que existe o elemento consciente, o elemento subjetivo e nacional, a ação do governo petista que ampli ficou a crise. Não é possível pensar o impacto avassalador da crise mundial sobre o país sem refletir seriamente sobre os anos do governo Dilma e Lula e, sobretudo, sobre o projeto do PT para o país.
A culpa é do PT na medida em que ele bloqueou historicamente a construção de uma vanguarda revolucionária no Brasil nas últimas décadas. Após décadas, foi preciso que o PT chegasse ao poder para ser provada amplamente esta verdade: esse partido não tinha projeto algum. Foi preciso frustrar grande parcela da população para se escancarar que no lugar das suas promessas e discursos, o PT veio para manter e piorar o que já havia; aprofundou o velho entreguismo das riquezas nacionais ao grande capital; acelerou assustadoramente a desindustrialização brasileira; aumentou o caráter agrário nacional (destruindo rapidamente recursos naturais) e rearticulou grande parte da atrasada burguesia oligárquica do Norte e Nordeste, completamente corrompida e submissa ao grande capital.
Com o PT no poder, finalmente o Brasil viu-se a nu, como um país sem projeto, o país de um consumismo vazio (por um lado, e miséria do outro), do endividamento, do fetiche das mercadorias. E, agora, um país sem futuro, cujos dados todos nos lançam ao passado (à crise de 1929!). É esse profundo abismo que cada vez mais se abre debaixo dos pés de amplos setores e desperta o descontentamento popular.
Mesmo FHC foi mais coerente que Lula e seu partido. FHC, dentro dos quadros burgueses, não foi tão sem caráter e sem princípios como Lula e o PT, na medida em que tentou realizar um projeto burguês coerente com seus princípios limitados. Apesar do “esqueçam o que eu escrevi”, FHC terminou seu segundo mandato em conflito com a burguesia oligárquica do Norte e Nordeste, totalmente submissa (corrompida) ao grande capital. A suposta revolução burguesa nacional de FHC (na verdade, a busca por maior espaço para a burguesia do sudeste brasileiro dentro do mercado mundial) era quixotesca e necessariamente naufragaria, dado o caráter covarde dessa burguesia paulista brasileira, mas levou FHC a entrar em conflitos com diversos caciques da política nacional. Lula, sobretudo após o mensalão, para estabilidade política, trouxe de volta todos os sarneys, colors de mello, renans calheiros, etc., e junto com eles um grau acintoso de corrupção (o sítio em Atibaia, o triplex no Guarujá, etc., não são nem de longe a ponta do icebergue).
Essa divisão entre setores burgueses nacionais, sobretudo de uma burguesia do sudeste com pretensões nacionais, e de uma burguesia do Norte e Nordeste totalmente submissa à vontade do capital internacional, conforma a realidade brasileira há mais de um século. É ela quem explica as duas posições burguesas na atual crise, bem como a paralisação da burguesia em conjunto, enquanto classe, diante da classe trabalhadora.
O setor paulista da burguesia, recalcitrante, se convence cada vez mais de que é preciso alternar o ciclo de controle partidário no Brasil, há 13 anos nas mãos do PT; teme o retorno de Lula em 2018 e o maior aparelhamento do Estado. Para isso aposta numa manutenção, pelo maior período possível, da exposição de crises do PT. A burguesia do sudeste não quer replicar o erro de 2005, quando, após o mensalão, achou que Lula estava liquidado e não seria reeleito. Desta vez ela opta por colocar mais pressão e, dentro do possível, quebrar a máquina petista (quebrando seus parlamentares e, agora, em 2016, seu possível número de prefeitos eleitos). Por outro lado, o PT, aliado às piores figuras da burguesia oligárquica nacional, mantém-se com frágil estabilidade graças ao Senado, a casa mais reacionária brasileira, e graças ao aparelhamento do judiciário (STF e PGR).
Parte da burguesia quer desgastar o PT e comprometer a imagem de Lula, mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, teme desgastá-la demais e comprometer (inviabilizar) os serviços sujos que esse senhor ainda pode fazer para conter a classe trabalhadora brasileira. É por isso, sobretudo, que as duas alas da burguesia, apesar das diferenças, paralisam-se enquanto classe diante da classe trabalhadora brasileira.
O PT, apesar de parecer coadjuvante, foi em grande medida o protagonista deste longo ciclo democrático-burguês das últimas três décadas, na medida em que hegemonizou as esperanças de mudança (ou seja: conteve a classe trabalhadora dentro da ordem do capital, num grau aceitável de descontentamento). A sua falência histórica como partido tende a levar consigo todo este ciclo democrático-burguês. Basta ver, por exemplo, a perda da identidade dos partidos políticos nos últimos anos; a desmoralização e rejeição do congresso (inclusive expressas nas eleições) e, agora, o nível baixo e pessoal das polêmicas políticas entre os próprios setores burgueses. A desmoralização é gigantesca, de todos os quadros da burguesia, da situação ou oposição. O sistema político e partidário burguês está se dissolvido rapidamente, agravado pelo caráter explosivo da crise econômica.
A divisão da burguesia também se mostra aqui. Esta não sabe se acelera o fim do ciclo vinculado ao PT ou se o retarda. O que fica evidente, entretanto, é que ela não sabe o que pôr no lugar do PT e é bastante impotente diante do problema. Lula já se aproveita da relativa melhora na estabilidade de Dilma (e derrotas sofridas por Cunha) e volta à construção de sua imagem como salvador nacional, lançando o “Plano Nacional de Emergência” com o PT, Rui Falcão e Haddad, para inclusive se contrapor a Dilma, como suposta alternativa de esquerda. Mas, ao mesmo tempo, parte da burguesia não sabe se esse neo- Lula poderia configurar uma estabilidade para os próximos anos, após 2018.
Ao que parece, só os conflitos de classe que se avizinham poderão esclarecer as relações de forças e permitir à burguesia pensar uma nova forma de dominação. De sua parte, a classe trabalhadora expressa legitimamente um repúdio à sensação de parecer viver numa época morta, presa num ciclo do passado.
Tragicamente, todavia, quando tenta expressar essa revolta, a classe se depara com o fato da ausência de sua própria direção política, de suas organizações revolucionárias. O início da sua ação espontânea e radical contra a crise e o governo, ação que deve ser favorecida e, ao que tudo indica, passará ao largo da maioria das organizações de esquerda, tende a facilitar (e acelerar) o processo de criação e reorganização de uma vanguarda da classe, seja pelo fortalecimento de sua ala à esquerda, seja pela fusão de lutadores comprometidos com um projeto revolucionário. Ajudar a fechar este ciclo político é hoje tarefa central da vanguarda revolucionária.