Transição Socialista

Grécia: vitória do “não” e crise programática da esquerda

Foi sem dúvida importante a resposta da população grega ao referendo chamado pelo governo Syriza neste domingo, 5 de julho. O “não” expresso pela população significa “não aguentamos mais a destruição do nosso nível de vida e queremos mudança”.

A posição abstensionista do KKE (Partido Comunista Grego) foi, ao que tudo indica, desastrosa. Falamos do KKE graças à sua importante inserção na classe trabalhadora grega, sobretudo na classe operária. O KKE fugiu da contradição pela qual necessariamente passava a luta de classes. Ao que nos parece, era preciso apoiar criticamente o “não”, tentando dar a ele outro conteúdo, diferente do que queria expressar o governo Syriza.

O “não” votado nas urnas, de fato, é abstrato; pode significar tanto um grito de revolta popular quanto um sim à proposta do Syriza, de pagar os credores e realizar reformas que destroem o nível de vida da população, ainda que de forma relativamente mais branda e morosa. Assim, era preciso determinar o “não” por meio do apoio crítico e dar a ele um conteúdo diferente do que queria o Syriza. Isso se chama fazer frente única: bater junto com o Syriza contra a situação limite a que foi submetida a Grécia, mas sem apoiar o Syriza, delimitando de forma clara seu conteúdo em relação ao do governo. O KKE facilitou para o governo e permitiu reerguer a imagem (que já começava a se desgastar) do primeiro-ministro Alexis Tsipras.

Mas não apenas o KKE facilitou para Tsipras. Estão a facilitar também todos aqueles que ostentam com destaque as imagens de Tsipras como grande herói nacional, praticamente de forma acrítica, como fazem vergonhosamente setores autodenominados trotskistas da esquerda brasileira e mundial. Tsipras agora usará seu prestígio para enforcar a classe trabalhadora grega.

Tsipras, Kerensky grego, não é um herói e não está construindo um caminho de ruptura com o capital. Se depender de sua política, manter-se-á a classe trabalhadora prostrada e abrir-se-á aos poucos um caminho para a direita, o qual a aliança com o partido de extrema-direita ANEL apenas é um prenúncio. Não à toa os que sustentaram a posição de Tsipras contra a da Alemanha foram o FMI, Obama, ONU e economistas burgueses como Paul Krugman. Belos aliados! O “não” de Tsipras, equivalente à vontade de grandes setores do capital, está muito longe de ser uma alternativa para a classe trabalhadora, e os setores da esquerda que estão defendendo Tsipras e acriticamente defenderam o “não” estão assumindo como aliados tais setores do capital.

NÃO PAGAMENTO DA DÍVIDA E RUPTURA COM O EURO NÃO DEVEM SER CENTRO DO PROGRAMA

O KKE, assim como a esquerda dita trotskista grega e mundial, defendem que o programa revolucionário para a classe trabalhadora grega é o não pagamento da dívida e a ruptura com a Zona do Euro. Tais marxistas pensam sempre a partir da esfera da circulação do capital e tiram seu programa revolucionário dela. O não pagamento das dívidas e a ruptura com o Euro são resultado, consequências do processo de crescimento da dualidade de poder nacional, e não devem, de forma alguma, ser o início do programa revolucionário. Isso é o que nos ensinou a própria Revolução Russa de 1917. A proposta que deriva seu programa da circulação do capital não tem amparo teórico em Marx, Lenin ou Trotsky, mas na revisão do marxismo operada pela social-democracia reformista. A esfera da circulação é a esfera do Estado burguês. Tais marxistas, influenciados pela lógica social-democrata, defendem que é possível não pagar a dívida e investir os recursos do Estado em educação, saúde, moradia, etc. Propõem, na prática, gerenciar o Estado burguês melhor que os representantes da burguesia, como tradicionalmente propôs a social-democracia.

O KKE, há que se fazer a ressalva, fala que somente o controle dos meios de produção pode resolver efetivamente o problema. Entretanto, talvez graças à herança stalinista, não apresenta um programa efetivo para o controle dos meios de produção. Como realizá-lo na prática, já, a partir de agora? O Programa de Transição de Trotsky, negado pelo stalinismo, dá resposta a isso. Assim, o discurso esquerdista de controle dos meios de produção (esquerdista pois sem proposta concreta para tal) se completa com o discurso social-democrata. Essa é a lógica do centrismo, lá como aqui.

A verdade é que o mero não pagamento da dívida e a ruptura com a Zona do Euro sem a criação de uma dualidade de poder nacional da classe trabalhadora podem sim ser desastrosos para a economia grega e reduzir de forma mais acelerada ainda o nível de vida dos trabalhadores. A esquerda, é claro, não pode nunca trabalhar com a lógica do “quanto pior melhor”. A criação da dualidade de poder, que é a única capaz de tomar o poder derrubando o Estado burguês, é um pressuposto para se realizar o não pagamento e a saída da Zona do Euro. Sem ela, necessariamente, o retorno ao Dracma e o relativo isolamento numa economia capitalista mais fechada e nacional será um retrocesso econômico que a classe trabalhadora pagará com suas condições de vida. A esquerda está brincando com fogo ao propor tal programa sem antes saber como desencadear a dualidade de poder nacional ancorada na esfera da produção, nos locais de trabalho.

A tragédia grega assume seu mais alto grau por ser a tragédia da não abertura da dualidade de poder. O KKE, apesar de sua influência na classe operária grega, não desencadeou, nestes 5 anos de crise, nenhum processo ampliado e sério de dualidade poder a partir dos locais de trabalho que se articulasse visando a uma dualidade nacional. Os relatos de ocupação de fábricas e outros importantes setores produtivos na Grécia nos parecem muito limitados.

QUEM É O INIMIGO, E QUAL A ESTRATÉGIA DO CAPITAL?

A última coisa que o grande capital, e sobretudo o capital alemão, quer, é que a Grécia saia da Zona do Euro. A luta na Grécia não é nem deve ser apenas contra “os desmandos do capital financeiro”. Quando a esquerda usa tal elocução, mantém deliberadamente de forma abstrata a questão: qual é o inimigo da classe trabalhadora? O inimigo da classe trabalhadora não são apenas os bancos. Pode-se supor, ao tratar o problema como apenas financeiro, que o capital não-parasitário, o capital produtivo, é bom e pode ser um aliado na luta dos trabalhadores contra o “sistema bancário”. Novamente, essa é a concepção da esquerda que somente enxerga a esfera da circulação.

A estratégia do capital não é apenas a de sangrar os países para que os bancos fiquem mais ricos, graças ao pagamento das dívidas. Isso é uma parte pequena da estratégia do capital. A crise do capital mundial não é uma crise bancária, mas de extração de mais-valia, ou seja, derivada da queda tendencial da taxa de lucro. O capital está sangrando os países da periferia da Europa (Grécia, Irlanda, Portugal, mas também Itália) para diminuir o nível de vida da classe trabalhadora no conjunto da Europa e garantir, assim, uma taxa de mais-valia maior no coração da Europa, nos países que possuem maiores indústrias, uma maior e mais forte classe operária, sobretudo na Alemanha, França e Bélgica, onde a composição orgânica do capital é bastante alta.

É por isso que o grande capital não quer que tais países saiam da Zona do Euro. O Estado é um grande alavancador da Economia, seja para crescimento ou recessão. Diminuindo seus gastos produz-se, necessariamente, mais desemprego e inflação, impactando no valor da força de trabalho. O mesmo ocorre hoje no Brasil com o ajuste de Dilma e Levy. O interesse do grande capital na Europa é diminuir o nível de vida da classe trabalhadora nos países periféricos mas mantendo-os na Zona do Euro, pois assim essa diminuição do nível realiza uma melhor equalização negativa no nível de vida do conjunto da classe trabalhadora européia. O mercado comum e a zona única de moeda facilitam a equalização para baixo do nível de vida da classe trabalhadora europeia. A saída da Grécia da Zona do Euro, ainda que também diminua o nível de vida dos trabalhadores gregos (caso não se dê como saída revolucionária), dificulta a equalização geral da mão de obra europeia.

A saída é, ainda, a abertura da dualidade de poder na Grécia, que prepare desde já a tomada do poder, e a solidariedade da classe trabalhadora europeia e mundial. A tragédia grega ainda se encontra no ponto em que é necessário realizar o início do programa, a abertura da dualidade de poder a partir dos locais de trabalho, e não seu ponto final supostamente radical.