No último dia 25/10 ocorreram eleições na Argentina para a presidência, governadores estaduais (“províncias”), deputados e senadores. O resultado, como se sabe, foi uma séria derrota para as forças kirchneristas, representadas pelo candidato à presidência Daniel Scioli. Scioli foi vice-presidente da Argentina no governo de Néstor Kirchner e é o atual governador (reeleito em 2011) do estado de Buenos Aires. Até o dia da eleição esperava-se que Scioli tivesse boa vantagem sobre Maurício Macri, prefeito de Buenos Aires, podendo inclusive vencê-lo no primeiro turno. Entretanto, a pugna foi para o segundo turno, a ser realizado ao final de novembro, graças ao quase empate entre Scioli e Macri (o primeiro obteve cerca de 36%, o segundo 34% dos votos válidos). Em terceiro lugar ficou Sérgio Massa com 21%. Massa se colocava como uma “alternativa” ao kirchnerismo dentro do campo peronista.
O resultado é ainda mais grave para as forças governistas pois Anibal Fernández, chefe de gabinete de Cristina Kirchner, foi derrotado na província (estado) de Buenos Aires por Maria Eugenia Vidal, candidata de Macri. A província de Buenos Aires — governada por Scioli — é a mais importante da Argentina, concentrando 40% do eleitorado do país e grande parte da sua riqueza econômica. Ou seja: a derrota de Anibal Fernández já demarca uma mudança decisiva nos ventos do país vizinho. O mesmo fenômeno se deu em outros estados menores, como Córdoba e Salta.
Macri e seus candidatos surpreenderam e obtiveram bons resultados porque souberam captar o desejo de mudança de amplo setor popular. Após doze anos de kirchnerismo a população argentina cansou-se do teatro que, na verdade, encobria o aparelhamento do Estado para uso privado por uma custosa casta política e social, cuja função era e é controlar os próprios trabalhadores. O controle da classe trabalhadora, evidentemente, não visou à melhora do seu nível de vida, mas à sua disposição e submissão calada ao grande capital. Com a mudança na economia mundial e seu impacto sobre a América Latina, sobretudo a partir de 2012, cresceu entre a população argentina o descontentamento com o kirchnerismo, desaguando em manifestações e panelaços a partir de 2013.
Macri, candidato pela frente “Cambiemos” (“Mudemos”), logrou captar até a maioria dos votos da classe trabalhadora argentina, sobretudo das grandes cidades e dos redutos operários. Macri muitas vezes é tratado como “de direita”, em contraposição ao kirchnerista Scioli. Na verdade, ambos representam os dois braços do partido da ordem da Argentina, ou seja, ambos representam os interesses do grande capital. Lá, como aqui e em diversos outros países, aparentes oposições são parte fundamental do equilíbrio do sistema político burguês. A própria associação patronal do país, a União Industrial Argentina, o reconheceu ao afirmar que, para ela, “não há diferenças entre Scioli e Macri”.
A vitória de Macri em novembro, se se realizar, constituirá um fenômeno político interessante a ser analisado, pois se tratará da primeira derrota das forças de tendências bonapartistas num país economicamente relevante da América Latina. O macrismo, em que pese a capitalização momentânea de votos, do anseio popular e do desejo de mudança, não tem nem de longe a base social estruturada do kirchnerismo (apesar de acordos que já começam a ser feitos entre Macri e a burocracia sindical). Caso eleito, Macri terá necessariamente de implementar um árduo ajuste contra a classe trabalhadora argentina (como também o faria Scioli), mas sem uma base social que lhe facilite isso. Ou seja: maiores convulsões políticas e conflitos de classe se avizinham no país.
Por que Macri, e não a esquerda socialista, capitalizou na queda do kirchnerismo?
Na Argentina se passou um fenômeno importante para a esquerda socialista: a conformação de um polo unitário da esquerda para as eleições. Seu nome é Frente de Esquerda dos Trabalhadores — FIT, na sigla em espanhol —, constituída sobretudo pelo Partido Obrero (PO), pelo Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) e pela Izquierda Socialista (IS). Há outras importantes forças de esquerda socialista infelizmente fora da FIT, como o Nuevo Movimiento al Socialismo (Nuevo MAS) e o Movimiento Socialista de los Trabajadores (MST).
A FIT obteve cerca de 800 mil votos (3,3%) para seu candidato a presidente, Nicolas Del Caño (do PTS), e cerca de 950 mil votos para deputado, elegendo Néstor Pitrola (do PO). O resultado é pequeno se comparado ao dos partidos burgueses, mas é um relativo avanço na medida em que significa a consolidação de um polo político da classe trabalhadora. Entretanto, há que se ter realismo político ao analisar os dados e reconhecer que houve, se não uma queda, ao menos uma paralisação no crescimento eleitoral da esquerda no último período. Em linhas gerais, o resultado indica um enfraquecimento da esquerda socialista, na medida em que se passou uma diminuição na velocidade de seu crescimento no mesmo momento de aprofundamento da crise econômica.
A esquerda socialista argentina perdeu 20% dos votos em relação às eleições primárias (PASO), realizadas em agosto. As “primárias” são um mecanismo criado pela burguesia argentina para excluir a esquerda das eleições, e consistem numa prévia eleitoral que define quais partidos participarão das eleições. Caso o agrupamento não ultrapasse 1,5% dos votos, é automaticamente excluído das eleições. Contraditoriamente, esse ataque burguês forçou as organizações políticas da classe trabalhadora à unidade, resultando em algo positivo: a FIT. Nas primárias a esquerda socialista toda — FIT e partidos de fora da FIT, o Nuevo MAS e o MST — teve cerca de um milhão de votos para seus candidatos a presidente. Em 25 de outubro, entretanto, a esquerda teve 200 mil votos a menos do que teve em agosto. Nuevo MAS e MST não obtiveram os 1,5% necessários nas primárias, portanto não puderam participar das eleições; chamaram voto em Del Caño, mas ao que tudo indica os próprios votos da FIT diminuíram entre as primárias e as eleições.
Além de perder 20% dos votos em poucos meses, a esquerda perdeu quase 50% dos votos para deputados que obteve em 2013. Em conjunto, a esquerda obteve mais de 1,6 milhões de votos para deputados em 2013 (sendo 1,2 mi da FIT e o resto do MST e Nuevo MAS). Agora, após o aprofundamento da crise econômica na Argentina, a esquerda obteve 950 mil votos para deputados. A expectativa inicial da FIT era eleger mais três ou quatro deputados em outubro, e assim praticamente dobrar sua bancada (que consiste em três deputados eleitos em 2013). Entretanto, a FIT elegeu agora apenas Néstor Pitrola, do PO, contradizendo suas perspectivas. São importantes, é verdade, os 800 mil votos para Del Caño, e são um relevante aumento em relação aos 500 mil da eleição de 2011, mas ainda assim são um resultado abaixo das expectativas iniciais da própria frente.
Nos parece que o motivo principal de a FIT não ter crescido é que não soube capitalizar os votos de descontentamento em relação ao kirchnerismo. Isso se deu por dois motivos, interligados: sua leitura errada da conjuntura e seu programa.
A FIT amparou-se numa leitura errada de conjuntura por ter se preocupado mais em combater o “voto útil” que supostamente seria dado a Scioli contra Macri. A FIT tirou sua análise de conjuntura do humor político da própria esquerda tradicional argentina, e não da população simples e trabalhadora. A maioria da população, inclusive nos redutos operários, votou em Macri como um “mal menor” em relação a Scioli. Enquanto isso a FIT dialogava em sua campanha com quem achava Scioli um “mal menor” em relação a Macri. A campanha da FIT estava na contramão da realidade pois amparava-se na viciada esquerda tradicional argentina e não na população trabalhadora. Em vez de tentar convencer a tradicional esquerda de que Scioli não é menos pior, a FIT deveria ter mostrado à ampla maioria da população que Macri é como um irmão de Scioli e não levará às últimas consequências a oposição retórica ao kirchnerismo. No próprio ato da votação, entretanto, Del Caño insistiu na crítica ao “mal menor” de Scioli. Isso se manteve, curiosamente, mesmo após a divulgação do resultado final: a primeira declaração pública de Del Caño foi “o kirchnerismo abriu espaço para Macri”. Buscou-se mostrar como o “mal maior” (Macri) venceu graças à lógica dos que votaram em Scioli. Ora, quer-se negar a lógica do mal menor sem abandoná-la totalmente? Não à toa as pesquisas mostram que ao menos 15% dos eleitores de Del Caño votarão agora em Scioli contra Macri (possibilidade reconhecida pelo próprio Del Caño em entrevista à Folha de São Paulo).
Essa leitura da conjuntura dissociou a FIT do humor político da população trabalhadora e a fez orbitar relativamente em torno do campo do kirchnerismo, impedindo-a, em sua agitação, de aparecer como tenaz opositora do governo e como verdadeira mudança.
Além da análise de conjuntura errada há a fragilidade programática da FIT. O programa da FIT centrou-se numa concepção estranha ao marxismo: seus candidatos, tomados de um pragmatismo, viram a necessidade de apresentar propostas supostamente “concretas”, ou seja, medidas que aplicariam na gestão do Estado caso eleitos. Trata-se de um delírio político que é muito comum à esquerda socialista, e é bem evidente também no Brasil: os candidatos da esquerda acham que convencerão, de alguma forma, a população, de que são mais capazes de gerir o Estado burguês que a própria burguesia.
A lógica da esquerda nas eleições é a seguinte: se fôssemos eleitos hoje aplicaríamos o imposto progressivo, para taxar grandes fortunas, e pararíamos de pagar a dívida pública. Assim teríamos recursos suficientes para aplicar em educação pública e gratuita, em saúde, em transporte, etc., melhorando a vida do povo. O que faltaria seria apenas coragem para confrontar o grande capital na gerência do Estado atual – e não os organismos de democracia direta do movimento operário, que, na verdade, são o pressuposto de qualquer mudança real.
Na ausência de um poder operário contraposto ao Estado burguês, todas essas reivindicações são, na prática — e assim aparecem para a maioria da população — reivindicações a serem aplicadas pelo Estado atual, ou seja, pelo Estado burguês. Assim, o programa da esquerda é estatista no pior sentido do termo, do estatismo burguês social-democrata. A esquerda deveria se preocupar menos em ter propostas “concretas” para gerir o Estado burguês, e mais em apresentar publicamente um programa que favoreça a abertura da dualidade de poderes nos locais de trabalho. Entretanto, a esquerda é tomada por um pragmatismo eleitoral; busca algo “concreto” para apresentar à população, mas esse “concreto” advindo do pragmatismo é o empirismo e não o marxismo. A busca pelo convencimento ou doutrinação sobre o Estado ideal desemboca, na verdade, em idealismo. Na prática, a esquerda aparece como utópica.
Ainda que medidas como as listadas acima — “imposto progressivo”, “educação pública e gratuita” — apareçam em obras de Marx e Engels como no Manifesto do Partido Comunista, são na verdade reivindicações que eles abandonam à medida que amadurecem ao passar por experiências fundamentais, como a da Comuna de Paris. Para Marx e Engels, tais reivindicações são uma variação do lassalianismo, ou seja, da corrente socialista que deposita ilusões no Estado burguês. Isso nos ensinam clara e expressamente, além dos prefácios ao Manifesto, a Crítica ao programa de Gotha, escrita por Marx poucos anos após a Comuna.
A esquerda, sobretudo a trotskista, em vez de se diluir em pautas democratizantes de direitos humanos, pequeno-burguesas e estatistas-burguesas, deveria resgatar o Programa de Transição de Trotsky, que se preocupa justamente em abrir a dualidade de poderes a partir de uma luta defensiva e aparentemente mínima pela manutenção das condições de vida atuais dos trabalhadores. Em vez de idealismo, a realidade: impedir que os salários sejam corroídos e impedir as demissões; exigir Frentes de Trabalho para empregar os desempregados. Em vez de propostas estatistas, que trabalham na lógica da passividade da população (que fica na expectativa das medidas que o representante eleito implementará quando chegar ao Estado burguês), apresentar propostas para cuja realização a classe trabalhadora só possa confiar em suas próprias forças: manter o nível dos salários e manter os empregos por meio da combinação da escala móvel de salários com a escala móvel das horas de trabalho, garantidas nos contratos coletivos de trabalho das categorias. Isso aprofundará as contradições com o capital e tenderá à abertura da dualidade de poderes, caso a vanguarda se mantenha resoluta em sua realização. Em uma palavra: em vez de um socialismo utópico, a aplicação do programa herdeiro da Revolução Russa.
Esse abandono do Programa de Transição de Trotsky, já o demonstramos em outros textos, tem gênese clara e definida na história da Quarta Internacional. É uma variação do pablismo. No caso argentino, é uma adaptação que Nahuel Moreno efetivou seguindo as pistas de Joseph Hansen e George Novack à frente do SWP norte-americano na segunda metade da década de 1960. A maioria dos trotskistas argentinos (e brasileiros) comunga dessa origem e exatamente das revisões feitas no Programa de Transição por esses dirigentes norte-americanos.
Na ausência do Programa de Transição, a esquerda, além de trabalhar na lógica estatista-burguesa, apresenta reivindicações quanto ao salário e ao emprego que são muito similares às da burguesia ou às da burocracia sindical. Não à toa Macri, assim como Del Caño, falou (demagogicamente, é claro) de equiparar os salários à “Canasta familiar”, ou seja, ao valor médio necessário à manutenção da família trabalhadora. Não à toa Massa e Scioli, assim como Del Caño, prometeram (demagogicamente) os “82% móvil”, ou seja, um aumento da aposentadoria para 82% do salário mínimo, e móvel, crescente. Não à toa os principais candidatos defenderam, assim como Del Caño, a diminuição ou eliminação do imposto sobre os salários.
Ou seja: nas questões centrais para a classe trabalhadora — emprego e salário, em torno do que se dá a luta fundamental, a luta pela apropriação da mais-valia — a esquerda aparece como muito similar às candidaturas burguesas. Nas demais questões ela se diferencia por um radicalismo na gestão do Estado burguês (não pagar dívida, taxar grandes fortunas), o que aparece para a maioria da população como inconsequente ou aventureiro. Obviamente, a esquerda não é mais capaz de gerir o Estado burguês que os partidos burgueses. Estes aparecem como mais sensatos e qualificados.
É por tudo isso que mesmo candidaturas abertamente burguesas, como a de Macri, capitalizam o descontentamento crescente da classe trabalhadora em detrimento da esquerda revolucionária.
Ainda não se sabe o que os ventos argentinos nos sopram, mas a possível eleição de Macri pode iniciar um processo de maior luta de classes no continente, na medida em que realiza a queda do kirchnerismo e enfraquece seu aparato de controle da classe trabalhadora. Diante dessa situação, a unidade imposta à esquerda socialista na Argentina é importante e deve ser saudada. Ela não deveria restringir-se à Argentina. No Brasil, parte da esquerda tem um programa exatamente igual ao apresentado pela FIT. E mais: há setores, como o PSTU no Brasil, que, além de apresentar o mesmo programa e a mesma lógica, comungam da mesma tradição do PTS na Argentina: o morenismo. Nos parece que nada justifica hoje a separação desses dois partidos em duas internacionais, senão brigas do passado que já estão no passado (a LIT e o PSTU brasileiro, aliás, desenvolvem hoje críticas aos erros de Moreno quanto à teoria da revolução permanente).
Uma fusão do morenismo argentino e brasileiro, por exemplo, ainda que mantivesse o programa centrista apresentado atualmente, poderia ser um elemento importante para a classe trabalhadora no continente, na medida em que colocaria sob a mesma internacional dois importantes partidos como o PSTU brasileiro e o PTS argentino. O centrismo, como se sabe, pode ir ao reformismo social-democrata e estatista, mas pode também ir à esquerda em momentos de ascenso e desempenhar um papel relativamente importante na luta de classes. Dada a comunhão programática e estratégica desses dois agrupamentos morenistas, pensamos que os interesses gerais da classe trabalhadora deveriam ser colocados acima dos interesses particulares de construção partidária.
À medida que a classe trabalhadora entrar em movimento no continente, pressionará ainda mais pelas experiências de unidade. Saudamos, do Brasil, a classe trabalhadora argentina que se esforça para superar suas próprias limitações e construir suas ferramentas de luta para resistir contra os ataques do capital!