Frente à precipitação da crise social no país, resultado da avassaladora crise econômica e do descontrole absoluto da pandemia, a burguesia se encontra num patamar a cada dia mais elevado de ingovernabilidade. Ela se mostra, assim, cada vez menos capaz de conter a explosiva luta de classes no país. A maioria da população brasileira, por outro lado, está à beira da morte, seja pela fome, seja pelos efeitos da pandemia no seu momento mais crítico. Bolsonaro vê derreter todo ponto de apoio para se manter no poder. É nesse contexto de incerteza e de progressiva ingovernabilidade no país que a burguesia busca criar alternativas políticas para a manutenção da sua dominação de classe, e, numa canetada do STF, recoloca Lula no páreo político. O lulismo ressurge como uma potencial saída para a dominação burguesa no Brasil.
A situação de barbárie espalhou-se por todos os cantos do país e se manifesta enquanto guerra de classes. O desemprego atinge, hoje, mais da metade da população brasileira (contando neste número o setor dos ditos “informais”, que, na realidade, dado o nível absolutamente precário de trabalho, deve ser considerado parte da chamada “superpopulação relativa”, ou “exército industrial de reserva”). Se nos guiarmos pela quantidade dos pedidos de auxílio emergencial, chegamos ao número exorbitante de mais de 65 milhões de brasileiros sem trabalho. A miséria e a fome se alastram como pólvora e atingem setores cada vez mais amplos do proletariado. Aqueles que permanecem empregados estão hoje sujeitos a um violento aumento da exploração, com salários corroídos, regime de longas e intensas horas de trabalho e ausência de segurança frente à pandemia.
A crise econômica reproduz-se também como total incapacidade da burguesia de resguardar minimamente a sobrevivência da população diante de uma grave pandemia. Os índices de adoecimento e morte pela COVID-19 a cada dia chegam a novos recordes. O colapso do sistema de saúde atinge, até o momento, 16 estados, com taxas de ocupação de leitos de UTI superiores a 90%. A falta de insumos médicos expõe ainda mais a tragédia: a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) indicou que o oxigênio destinado a pacientes de Covid-19 está prestes a acabar em pelo menos 76 municípios de 15 estados. Os medicamentos necessários para intubação de pacientes, como sedativos e bloqueadores neuromusculares, estão em falta. A população brasileira se vê em situação absolutamente bárbara diante do avanço do vírus e da incapacidade da burguesia de planejar e gerir quaisquer medidas de contenção e vacinação em massa da população.
Diante desse cenário, a burguesia teme que a crise social saia do seu controle, dado que o grau de explosão da revolta pode tornar suas forças repressivas insuficientes para contê-la. Essa crise de dominação, aberta sobretudo a partir das manifestações de 2013, com a ruptura das massas com os governos petistas, entra agora em fase aguda. As estratégias de Bolsonaro se mostram cada dia mais falidas e apenas aceleram o processo de crise política e pressão social pela queda do presidente, algo que a burguesia quer evitar a todo o custo, dados os riscos de maior instabilidade que se abrem com um impeachment. É nesse contexto de incertezas que a justiça burguesa agiu para recolocar Lula no tabuleiro político e garantir sua elegibilidade, reconstruindo essa alternativa e apostando nos efeitos imediatos de sua entrada em cena.
Em política, não existe vácuo. Se uma carta da burguesia vai à falência, ela logo tem de tirar outra da manga e apresentar. Se ficar um vazio de poder, ainda mais em situação de tensão social como a atual, o aguçado faro político da classe trabalhadora pode levá-la a propor algo próprio, criando o pior cenário para a burguesia.
Como dissemos em inúmeros editoriais ao longo dos últimos anos, a relação entre bolsonarismo e lulismo é simbiótica. Ela se expressa, primeiramente, enquanto fenômeno de sustentação do governo, através de acordos políticos de cúpula nas instituições burguesas e nos três poderes do Estado. Como dissemos, o fio de sustentação de Bolsonaro no poder, desde o início, foi se utilizar de quadros e aliados petistas para preservar a si mesmo e à sua família, bem como à “classe política” em geral. Esse processo culminou no fim da operação Lava-Jato, no restabelecimento dos direitos políticos de Lula, e, agora, na suspeição de Moro (que visa a impedí-lo de se candidatar).
Em segundo lugar, dado que o bolsonarismo é um resultado da crise do PT – pois não surgiu nenhuma alternativa de esquerda real em meio à queda do PT –, a sobrevivência política do bolsonarismo depende do antagonista Lula. E, do outro lado, como complemento, Lula depende do antagonista Bolsonaro. Assim Lula se apresenta como “salvador da pátria”, como o único capaz de derrotar o (na narrativa delirante dos petistas) “fascista”. Eis por que Bolsonaro nada de relevante fez para impedir a “limpeza” da ficha política de Lula. Eis por que Lula deu declarações contra o impeachment do boçal. Para os dois, quanto pior, melhor. Os destinos de Bolsonaro e do PT estão interligados. Derrubar o Bolsonaro, hoje, é inclusive a melhor forma de impedir a reeleição de Lula e abrir espaço para algo novo (inclusive para a classe trabalhadora).
Tudo isso, do nosso ponto de vista, deixa claro que o PT é parte do problema; que qualquer luta apenas contra Bolsonaro, que não considere, desde já, derrotar também ao PT, está fadada ao fracasso. O PT talvez só mobilize seus aparatos contra o governo se a queda de Bolsonaro se tornar inevitável, um fato consumado. Aí o fará, visando a controlar as massas trabalhadoras.
Esta é, em suma, a principal e imediata consequência do “efeito Lula”: bloquear a derrubada de Bolsonaro e se construir, desde já, enquanto alternativa política burguesa para contornar a ingovernabilidade brasileira.
Os petistas inauguraram a famigerada “Frente Democrática”, que conta não só com os representantes políticos tradicionais da burguesia, mas também com a dita “esquerda socialista”. Assim se legitima todo tipo de aliança, pois contra o bolsonarismo, contra o “fascismo”, tudo é relevado – inclusive a responsabilidade política que o próprio Lula e o PT têm sobre o massacre da classe trabalhadora no Brasil, passado e presente. Apesar de toda a retórica, o “Fora Bolsonaro” dos petistas é apenas discurso vazio, assim como o foi o seu “Fora Temer”.
Resta comentar a desoladora, porém esperada, posição da dita “esquerda socialista” nesta conjuntura. O coroamento do longo processo de degeneração e capitulação se dá neste momento. O exemplo mais evidente é a recente discussão interna no PSOL de Boulos sobre a necessidade de retirar candidatura própria para apoiar, já no primeiro turno, a candidatura de Lula (visando, é claro, possibilidades de cargos diretos ou indiretos como moeda de troca). Quem sabe Boulos não vira o próximo Ministro das Cidades? O papel nefasto do PSOL não surpreende. Ele cumpre – de forma acelerada após a entrada de Boulos no partido – a função de linha auxiliar do petismo. Assim se bloqueia mais ainda a construção de uma alternativa revolucionária no país. Particularmente, o PSOL faz o serviço sujo de aglutinar setores mais ou menos radicalizados da chamada “classe média” (intelectuais, artistas etc.) – que com certa dificuldade engoliriam novamente o sapo do petismo – e os conduz, nadando de braçada, para o pântano petista.
Os demais partidos ou organizações políticas da “esquerda socialista” – como PSTU, PCB, MRT e outros – em sua esmagadora maioria, caminharam e caminham nesse mesmo sentido, de forma aberta ou envergonhada. A partir de, pelo menos, 2018, a maioria da “esquerda socialista”, na prática, capitulou abertamente a todas as narrativas e programa petistas. As eleições municipais de 2020 elucidaram o buraco em que tais organizações estão metidas, pois, através das mais diversas desculpas esfarrapadas, apoiaram os candidatos da “Frente Ampla” do PT, PSOL, PDT, PCdoB etc. Dado que não há nenhum balanço sério e nenhuma autocrítica dessas organizações, o mais provável é que façam o mesmo em 2022: apoiem criticamente Lula, mesmo que só no segundo turno. Aí se vê como todas elas capitularam na prática à falsa narrativa petista do “fascismo” ou do menos pior, abandonando uma política independente da classe trabalhadora. Tais organizações têm apenas três opções: 1) ou se entregam de vez aos braços do PT; ou 2) seguem fingindo independência e capitulando na prática (e assim definhando lentamente, pela contradição entre o que fazem e falam); ou 3) rompem com essa política petista e adotam uma perspectiva realmente revolucionária da classe trabalhadora.
Na atual conjuntura, portanto, urge a criação de um polo revolucionário classista e anti-petista, independente, que tenha como tarefa imediata a derrubada de Bolsonaro, mas que também pense além, que vise à reorganização da vanguarda da classe trabalhadora para lutar de forma revolucionária contra as nefastas mazelas da ordem do capital: o desemprego, as demissões e o arrocho salarial.
Derrotar Bolsonaro já é enfraquecer o rearranjo burguês em torno de Lula. A retomada da governabilidade burguesa será pior para a classe trabalhadora; implicará em maior atrelamento dos sindicatos ao Estado. A burguesia estará mais bem preparada, inclusive, para controlar o movimento da classe trabalhadora por dentro, por meio de seus agentes sindicais.
Lula brada aos quatro cantos que sua candidatura ainda não está dada, mas prepara terreno para sua jornada messiânica pelo país já em abril, buscando reverter a desaprovação de parte da população em relação à decisão do STF. No dia 10 de março, mesmo dia em que as mortes diárias pelo coronavírus passaram pela primeira vez a casa dos 2 mil (e já anunciando 3 mil mortes), Lula discursou mais de 2h30 no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, se autoproclamando “um resultado da consciência política da classe trabalhadora”. Dentro das fábricas, entretanto, enquanto milhares de trabalhadores estão sujeitos às mais bárbaras condições de trabalho – situação agudizada por surtos de Covid entre os operários – suas direções sindicais, controladas pelo PT, garantem aos patrões que não haverá qualquer resistência a esse processo. As recentes “paralisações” da produção em grandes montadoras (como a Volks, Mercedes, Renault etc) foram determinadas pelos próprios patrões devido à situação insustentável que se instaurou nas suas fábricas (mas sempre assegurando, é claro, a futura reposição das horas de trabalho).
A luta de classes, aparentemente adormecida, deverá se manifestar de forma explosiva cedo ou tarde. Dada a inexistência de uma organização revolucionária no Brasil, sua forma mais provável e imediata será através de revoltas “selvagens” (como se caracterizam aquelas revoltas por fora dos organismos institucionais do proletariado, partidos, sindicatos etc) como saques a supermercados, manifestações locais violentas etc. O auxílio “modesto” de 250 reais (150 reais para aqueles que moram sozinhos) terá pouca chance de impedi-la. A crise econômica, que se manifesta também como crise sanitária, está apenas inaugurando um processo de violenta e acelerada pauperização das massas proletárias no Brasil. A burguesia busca encontrar saídas para preservar a propriedade privada e construir seu novo representante. Só uma política independente de classe poderá resistir a esse processo. Urge, como nunca, a criação de uma organização revolucionária dos trabalhadores, que atue junto à classe com um programa transitório, ou seja, que aponte para além da barbárie capitalista.
Fora Bolsonaro! Pela construção de atos e manifestações unificadas pela derrubada do governo!
Pela construção de uma organização política revolucionária dos trabalhadores no Brasil!