A despeito das análises que tomam o “lulismo” como consumado, esse fenômeno ainda não surgiu propriamente. Os elementos para que surja, é verdade, existem. Na tradição latinoamericana, em geral, aplica-se o -ismo a governos que negam a institucionalidade democrático-burguesa. São governos de caudilhos, mais ou menos arbitrários, autoritários e autocráticos. Fala-se, por exemplo, de “populismo” e lembra-se, em geral, do varguismo e do peronismo (para ficarmos nos casos mais conhecidos no nosso continente).
O “populismo”, na verdade, é uma variação da forma de governo que Karl Marx chamou de “bonapartismo”, fazendo referência a Luis Bonaparte, o sobrinho do militar e imperador Napoleão Bonaparte. Luis Bonaparte, o sobrinho, tomou o poder na França ao final de 1851 com um golpe de Estado, que Marx analisou numa série de artigos, reunidos no livro O 18 Brumário de Luis Bonaparte. O golpe bonapartista findou o curto regime democrático-burguês então estabelecido na França. Ou seja, com o golpe de Luis Bonaparte a ordem política francesa migrou de um regime democrático-burguês para um regime bonapartista.
Ensina Marx em Guerra Civil na França que um regime democrático-burguês é o melhor possível para a burguesia e para a classe trabalhadora dentro da sociedade capitalista. Para a burguesia, é melhor porque permite que o maior número de suas frações esteja representado no Estado. Ou seja: é o conjunto da burguesia, através de seus agentes políticos, que está ocupado com a gerência do Estado burguês. Para a classe trabalhadora, o regime democrático-burguês é o melhor sob a sociedade capitalista pois lhe dá alguns direitos democráticos e de organização política. O regime democrático-burguês dá à classe trabalhadora melhores condições para preparar sua luta pelo fim de toda exploração.
Um regime bonapartista, porém, é outra coisa. Nele não estão representados muitos setores burgueses, mas um setor minoritário, sobretudo do grande capital internacional. Também para o conjunto da classe trabalhadora esse regime é um problema, pois significa maior repressão, perseguição, proibição de associações sindicais e de trabalhos públicos. O regime bonapartista é uma forma de regime ditatorial, em geral baseado numa figura advinda da estrutura militar (outro exemplo que Marx deu à época foi o governo do militar prussiano Bismarck, que unificou a Alemanha).
Ensina Marx que com o bonapartismo é como se a burguesia olhasse nostálgica o período anterior às revoluções burguesas. Antes da revolução burguesa na França em 1789, por exemplo, a burguesia ficava em segundo plano, sem ter de gerir o Estado diretamente, e este ficava a cargo de um imperador, de um déspota esclarecido, um monarca (no caso, o rei Luis XVI). Após a revolução burguesa, entretanto, diante das crescentes contradições de classe, da crescente luta dos trabalhadores, e diante dos próprios conflitos entre setores burgueses, um grande setor burguês passava a olhar nostálgico o período em que um Imperador, com mão de ferro (se possível, melhor, um militar), arbitrava e reprimia tudo o que era necessário para a manutenção da ordem. Se realizasse esse sonho, ela teria ordem e paz social suficientes para simplesmente cuidar de seus negócios privados.
O governo brasileiro, com Dilma (e mesmo o anterior, com Lula) está ainda dentro de um regime democrático-burguês, embora já desenhe os contornos de outro regime. Trata-se de um governo burguês dentro de uma forma específica de regime, democrático-burguesa. O fato, entretanto, é que o atual regime democrático-burguês, que se iniciou após o regime militar, está esgotado. O atual ciclo democrático-burguês teve desde os anos 1980 o Partido dos Trabalhadores como fiel da balança de sua sustentação. A construção do PT bloqueou a construção de uma organização política revolucionária no Brasil e estabeleceu a mais poderosa máquina de controle da classe trabalhadora, graças a uma casta sindical pelega que desde 1980 fugiu dos conflitos de classes em nome da conciliação com o capital. Esse foi um elemento central para a existência do mais longo regime democrático-burguês da história brasileira.
A verdadeira política, a grande política, é a da luta de classes. A burguesia, em última instância, está sempre mais preocupada com as políticas para controle da classe trabalhadora que com a política nacional do Congresso ou da Presidência. Enxergar nessa ofuscante politicagem nacional o essencial é compartilhar uma ilusão que Marx chamava de “cretinismo parlamentar”. Para a classe burguesa, suas polêmicas internas, seus debates no parlamento, são secundárias diante da questão política fundamental: o controle e apaziguamento da classe trabalhadora. Nesse sentido, a atual derrocada do PT como partido que controla a classe trabalhadora brasileira é um elemento que preocupa enormemente a burguesia, pois sem ele seu atual e estável regime democrático-burguês fica comprometido.
Embora seja bastante consciente disso, a burguesia não consegue, por pura vontade, estabelecer outro PT, por mais que tente. Na prática, tudo funciona assim: sem o PT, a burguesia não consegue mais controlar tão bem a classe trabalhadora, que começa a se revoltar, portanto, a burguesia é obrigada a colocar um grau de violência maior sobre toda a sociedade. Mas para colocar um grau maior de violência na sociedade ela é obrigada a paralisar ou escantear alguns dos seus próprios setores burgueses. Ou seja: sem a capacidade de controle bem estruturado da classe trabalhadora, o regime democrático-burguês é obrigado a migrar para outro regime, com grau de violência mais alto.
A questão principal hoje no Brasil reside em saber qual será a forma desse novo regime que terá de vir em mais ou menos tempo. É preciso também refletir sobre os elos de transição do regime atual para o novo.
É claro que o bonapartismo militar é uma possibilidade sempre colocada. É para isso que existem as Forças Armadas, o “reduto moral da nação”: para ser o último sustentáculo da ordem burguesa, pronto para agir a qualquer momento se preciso. Entretanto, um novo regime militar, nos parece, lançaria um grau de violência demasiado alto sobre a nação, que não corresponde à necessidade de manutenção da ordem burguesa hoje, dada a atual situação nacional e a geopolítica internacional. Não há a “ameaça comunista”, como em 1964, nem há um risco de rebelião sistemática da classe trabalhadora, dado que não há efetivamente um partido proletário revolucionário no país. O grau de violência que a burguesia necessita colocar para manter sua ordem é menor que em 1964, ainda que esse grau de violência não coadune com o regime democrático-burguês atual.
Outra variante, que consideramos mais provável, é a centrada numa figura popular, numa pessoa e não numa camarilha militar. Trata-se de uma forma que transita para o bonapartismo, sem ser já propriamente bonapartista. A figura mais habilitada hoje, no país, para realizar um governo “popular” ou “populista” para controle da classe trabalhadora é sem dúvida Luiz Inácio Lula da Silva. Algo que caracteriza o bonapartismo é a sua aparente autonomização dos conflitos de classes. O conflito central — burguesia e operariado — parece ficar suspenso, pois o bonaparte se ergue amparado em outros setores de classe que não os polos dinâmicos da nação. Por exemplo: o uso de políticas “populistas” de Estado dá ao líder popular uma base de apoio e de eleição permanente, mesmo que essa base não seja o operariado nem a burguesia. Tendo esse pilar de sustentação, com o qual ele parece se alçar acima da nação, o bonaparte pode começar sua política fundamental, propriamente de repressão, tanto da classe trabalhadora como de setores da burguesia.
A máquina de aquisição de votos e perpetuação no poder já está montada. Ela se baseia na enorme miséria nacional e consiste apenas na transferência de recursos do Estado para empresas capitalistas, usando setores miseráveis do proletariado como intermediários. São os diversos programas assistenciais do governo que visam a manter a massa miserável na miséria. A máquina para controle do polo dinâmico da classe trabalhadora — do operariado industrial, dos setores mais bem agrupados, organizados sindicalmente, da classe trabalhadora — também já está montada, e consiste, sobretudo, na própria estrutura sindical, que pode facilmente avançar para formas de gangsterismo. Esse gangsterismo ainda não teve de se desenvolver a olhos vistos pois a classe não está ainda num movimento autônomo, mas tão logo entre nele e tente criar suas lideranças próprias a CUT e demais centrais compradas lutarão para quebrar qualquer movimento independente. Já há exemplos nesse sentido, embora marginais. E a máquina passível de reprimir setores burgueses ou pequeno-burgueses também já está montada, e consiste hoje principalmente na Força Nacional de Segurança, criada por Lula, uma elite das polícias estaduais que pode atuar como guarda pretoriana do governo a qualquer momento e desbaratar qualquer manifestação opositora, mesmo de direita, desses setores que hoje defendem impeachment, etc.
É verdade que todos os elementos para se migrar para um regime bonapartista já foram criados. Toda a máquina já está preparada para funcionar e jogar sobre a sociedade um grau maior de violência. Na prática, já estamos migrando para outro regime. Mas o salto de qualidade, o momento em que o bonaparte se coroa “imperador” e suspende uma série de direitos democrático-burgueses, ainda não ocorreu.
O apeamento de Dilma do poder seria uma forma de paralisação ou de enfraquecimento do projeto de poder centrado em Lula. Apesar de Lula fingir muitas vezes que é contra o governo Dilma, na prática é ele quem avaliza a esmagadora maioria das suas políticas. Não só isso: na prática é ele quem propõe as mais importantes políticas do governo. A aparência é de dissociação de Lula em relação ao governo Dilma, mas sua essência é de ligação umbilical. Lula tem total consciência de que depende absolutamente de Dilma na presidência para realizar seu projeto de poder.
A crise política revelou o sentido verdadeiro do jogo de Lula: obrigou-o a deixar de lado a encenação e a salvar o governo. Lula tirou os homens de confiança de Dilma (com os quais o governo dela aparecia como não lulista) e colocou seus velhos comandantes na linha de frente para salvar o governo. Jaques “o pacificador” Wagner, aquele responsável por acalmar o Congresso no auge do mensalão, em 2005, virou figura de frente do governo, junto com o capa-preta Berzoini. Lula ordenou a entrega da metade do governo ao PMDB, e assim foi feito. A reforma ministerial toda tem a mão de Lula. O resto é retórica de esquerda para incautos.
Lula não pode permitir o impeachment de Dilma nem gostaria que ela renunciasse pois 1) nesses casos não se saberia onde o processo poderia parar e o PT poderia ser varrido de todos os escalões federais, perdendo o acesso a recursos fundamentais para alimentar sua enorme burocracia sindical; 2) Lula não tem foro privilegiado: não é possível saber se o PT se manteria no governo para ele se proteger como ministro; caso houvesse impeachment ou renúncia tenderia a haver um novo impulso na Lava-Jato, que poderia chegar decisivamente em Lula, como já chega em alguns dos seus familiares; 3) o impacto sobre a eleição de 2016 — que é a verdadeira catapulta para 2018 — seria estrondoso (e num momento em que muitos petistas já abandonam o barco, mudam de partido, etc.). O plano original de Lula, que teve de ser momentaneamente paralisado, era ir se descolando do governo aos poucos, e esse movimento teria uma nova propulsão após garantir bons palanques em 2016.
Dito tudo isso, nos parece importante ressaltar a justeza da palavra de ordem pela saída de Dilma. Se isso se realizasse, possivelmente resultaria numa quebra significativa das fontes de financiamento da enorme burocracia sindical petista, o maior mecanismo de controle do setor mais importante da classe trabalhadora brasileira, e resultaria também numa fragilização ou paralisação do projeto de poder lulista, que ruma para o bonapartismo, que está todo montado para se realizar em alguns anos, e que é absolutamente necessário à burguesia, dado que ela não encontra saída para o esgotado regime democrático-burguês. A linha sucessória para Lula está traçada. Seu séquito, Dilma inclusa, já estende o tapete vermelho para sua passagem. Mas como o movimento ainda não se perfez, ainda pode ser paralisado.