O MNN tem atuação embrionária no Rio de Janeiro e prefere ainda refletir com mais calma sobre a situação política nessa cidade, antes de assumir um posicionamento no segundo turno eleitoral. O texto a seguir é mais um convite à discussão, à abertura de questões, entre a esquerda revolucionária, a respeito da possível vitória de Marcelo Freixo, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Companheiros da esquerda revolucionária defendem um voto crítico em Freixo neste segundo turno, mesmo discordando de seu programa e do PSOL, com dois argumentos: 1) a classe trabalhadora precisa passar pela experiência com Marcelo Freixo; 2) é preciso derrotar o projeto reacionário do bispo Marcelo Crivella. Trabalharemos esses elementos e, ao final, faremos considerações sobre o projeto político do PSOL no atual estágio da luta de classes.
O primeiro argumento – fazer a classe passar pela experiência com a política pequeno-burguesa e reformista, para em seguida negá-la mais facilmente em nome da política revolucionária – tem longa trajetória na tática marxista. Tal tática foi consagrada pela III Internacional, na época de Lenin. Este defendeu, em seu livro Esquerdismo, doença infantil do comunismo – capítulos 9 e 10 –, que se deveria fazer o possível para levar os “heróis da Segunda Internacional” ao poder do Estado burguês. Lenin tratava especificamente dos trabalhistas ingleses, mas também, genericamente, dos social-democratas europeus. Lenin defendia que era preciso sustentar esses partidos “como a corda sustenta o enforcado”. Seria um apoio, digamos, cruel: deixar os representantes da democracia pequeno-burguesa, os ditos “socialistas”, serem eleitos, para mais rapidamente desmoralizá-los diante da classe trabalhadora; para mais rapidamente ficar clara sua impotência perante a grande burguesia. Não sendo maioria entre a classe trabalhadora, os revolucionários deveriam chamar voto em tais partidos para, assim, serem ouvidos pela classe e poderem trazer, internamente a esta, as suas críticas ao governo.
Todavia, a preocupação de Lenin era, antes de tudo, a de desmascarar os “heróis da segunda internacional” diante da classe trabalhadora. Lenin não estava preocupado em desmascarar o reformismo diante da pequena-burguesia urbana. Isso era secundário para ele. Lenin tratava, por exemplo, de nada menos do que o trabalhismo inglês, que dirigia os mais fortes e numerosos sindicatos operários da Inglaterra, com grande adesão da vanguarda do proletariado a esse próprio partido (Lenin chegou até a defender o “entrismo” dos comunistas dentro do partido trabalhista). O mesmo apoio tático eleitoral caberia, mostrava Lenin, para o caso da social-democracia alemã, que dirigia sindicatos operários poderosos e era ainda seguida pela maioria da classe operária. Ainda que os dirigentes desses partidos e o programa desses partidos fossem pequeno-burgueses, sua base, por diversos motivos históricos, era de massas operárias.
Cabe perguntar, portanto: o que significa ou representa o PSOL para classe operária? A classe operária está com Freixo? Esta é a questão chave para se aplicar ou não a tática leninista. O PSOL, até onde sabemos, tem seu apoio sobretudo na pequena-burguesia carioca, em grande medida em setores como os que se mobilizaram recentemente contra o impeachment de Dilma e pelo “Fora Temer”. A classe operária não se mobilizou por isso e, nos parece, não se identifica com Freixo nem com seu programa democrático, de reformas e direitos humanos, voltado à pequena-burguesia (nas quase 70 páginas do programa de Freixo não aparecem uma única vez as palavras socialismo ou revolução, mas apenas a ideia de gerir o Estado valorizando “direitos humanos”).
Nos parece que não há muito a ser desmascarado de Freixo diante da classe operária, dado que ela não tem grande ilusão, esperança ou identificação com essa figura e seu programa. Os grandes números de votos de protesto no Rio de Janeiro, ultrapassando Freixo e Crivella, parecem indicar isso. A classe operária, bem como a maioria da classe trabalhadora, está mais preocupada com a conservação do seu nível de vida do que com as eleições.
Cabe perguntar também: já não teria a classe trabalhadora passado por uma experiência profunda, e longa, com os reformistas pequeno-burgueses? Afinal, o que representou o PT, desde sua fundação, senão um partido com programa pequeno-burguês (apesar da relativa base operária inicial)? Se o programa reformista pequeno-burguês já se mostrou falido diante das massas – e as eleições o comprovaram, com a derrocada nacional do PT –, por que apoiar tal programa criticamente agora? É para fazer as massas passarem duas vezes pela experiência? É possível isso? Não estaria a classe operária já além disso, votando em protesto? Defender Freixo não seria novamente lançar a classe para a via das ilusões na pequena-burguesia? Essa “tática” não daria o resultado contrário do que se propõe? Não seria mais rico, neste segundo turno, organizar a classe operária dentro da onda de descontentamento crescente com o sistema político e eleitoral da burguesia, e fortalecer um partido que lute pela abertura da dualidade de poderes (comitês de fábrica, conselhos, etc.)?
Não é possível falar que Crivella e Freixo sejam a mesma coisa. Crivella, do PRB, Bispo da Igreja Universal, é um elemento francamente reacionário e representante claro do fisiologismo. De seu lado já se posicionou o candidato Flávio Bolsonaro, derrotado no primeiro turno, associado à extrema-direita.
Marcelo Crivella simboliza a continuidade do caminho de avanço rápido à barbárie na gestão da prefeitura do Rio de Janeiro. Crivella é um pouco como os anteriores governantes cariocas do PMDB, todos marcados pelo fisiologismo baixo, pela transformação da política burguesa num mero balcão de negócios. Guardadas as devidas diferenças, sua vitória equivaleria à de Russomano em São Paulo (também do PRB), ou a um retorno de Gilberto Kassab.
Crivella, curiosamente, simboliza mais o projeto fisiológico criado pelo petismo do que o próprio Freixo, que hoje tem apoio eleitoral do PT. Crivella foi ministro da Dilma e é, ele próprio – bem com seu partido e diversos partidos fisiológicos gestados sob o PT –, expressão do lulismo. Nesse sentido, a eleição de Crivella simbolizaria certa manutenção dos resquícios do lulismo no Rio de Janeiro, responsável pela militarização de favelas com o exército e implementação das odiosas UPPs.
Freixo simboliza um projeto pequeno-burguês, democrático-burguês. Tais características, todavia, não são suficientes para resolver o peso da crise do capitalismo sobre as massas, nem para recuperar o falido Estado carioca. Os políticos que gerem o Estado burguês, mesmo os mais progressistas, não têm, evidentemente, autonomia política diante da grande burguesia, nem poder de intervenção nas bárbaras relações de produção capitalistas. Além disso, neste período histórico, de decadência do capitalismo, não é possível realizar reformas que modifiquem, estrutural e profundamente, para melhor, o nível de vida das massas. As reformas dos políticos são sempre localizadas demais, superficiais demais, fragmentadas demais e assistemáticas demais; incapazes, portanto, de grandes resultados positivos. Tudo o que os reformistas dão com uma mão, o capital retira com a outra em menor tempo (basta ver como os supostos ganhos econômicos e sociais da era petista, que fingia ser reformista, foram dizimados em três anos de crise econômica, ao passo que a burguesia lucrou como nunca e a lógica bárbara do capital se aprofundou).
Portanto, ainda que Freixo não represente o baixo fisiologismo burguês, o cego caminho à barbárie, ele será necessariamente impotente diante das gigantescas contradições capitalistas colocadas. O caminho para a barbárie capitalista se imporá, com ou sem Freixo, enquanto uma via revolucionária não for aberta. É possível apenas que a eleição de Freixo abra mais contradições, mais divisões entre a burguesia – o que é relativamente favorável à luta da classe operária –, mas infelizmente não paralisará o caminho geral à barbárie que se expressa na cidade. Todavia, nem essa abertura de maiores contradições é certa, e não arriscamos afirmá-lo categoricamente, devido à nossa distância da situação carioca. Afinal, Freixo já se articula com partidos burgueses tradicionais, como PT, PSB, PCdoB, Rede, PV, e mesmo parte do PMDB.
Afirmamos frequentemente que o PSOL se propõe a ser uma cópia do PT. Isso, todavia, deve ser compreendido a fundo. Hoje, no momento de derrocada do petismo, todas as correntes do PSOL afirmam que há um grande campo a ser ocupado. Se, por um lado, os revolucionários querem criar finalmente o campo que o PT bloqueou e impediu de nascer em 1980 – o campo da esquerda revolucionária –, o PSOL, por sua vez, quer ocupar o campo que o PT não consegue mais ocupar. São duas perspectivas diferentes.
O campo que o PSOL quer ocupar é o da pequena-burguesia, que hoje fica órfã do PT. Este partido, ao realizar seu projeto histórico de poder, realizou ao mesmo tempo seu programa inicial. O PT nasceu no seio da classe operária, mas com um programa pequeno-burguês, reformista; aparentava ser operário, mas era, em essência, pequeno-burguês. No processo de realização de sua política, a classe operária o abandonou, dia após dia, e restou como apoio ao PT apenas a pequena-burguesia, que ainda é favorável ao programa reformista (porque, afinal, esse programa lhe corresponde como classe). A derrocada atual do PT, provocada pela luta de classes, é tão profunda, que esse partido afunda por completo e deixa mesmo seu campo sobre a pequena-burguesia aberto. É sobre esse campo, exata e conscientemente, que o PSOL se propõe construir.
O PSOL, portanto, não se propõe a ser um bloqueio da classe operária, como foi o PT, mas um partido eleitoral pequeno-burguês, capaz de prestar serviços ao capitalismo em momentos de crise. A pequena-burguesia, que não é desprezível numericamente, pode ser importante para amortecer a luta de classes, mas tem menos capacidade de paralisar a classe operária do que, por exemplo, partidos ditos de esquerda que controlam sindicatos operários e são, na prática, subservientes à burguesia.
Veja-se, por exemplo, os casos da Grécia e da Espanha. Nesses dois países, na atual situação de grave crise econômica (a mesma que se manifesta hoje no Brasil), os partidos tradicionais da “esquerda” foram à bancarrota. Os “socialistas” do PSOE espanhol e do PASOK grego, que controlavam importantes sindicatos operários, ao assumirem responsabilidade pela crise capitalista, faliram. Em seu lugar, ascenderam partidos pequeno-burgueses de “esquerda”, amparados em mobilizações superestruturais da juventude e da pequena-burguesia, sem grande influência sobre categorias operárias organizadas sindicalmente. São o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia, a todo momento elogiados pelo PSOL como paradigma político fundamental, como “inovação” da política no “século XXI”. Apesar de amparados majoritariamente na pequena-burguesia, esses partidos têm prestado importantes serviços para a manutenção do status quo burguês na Europa, e produzido muita confusão política na cabeça de jovens que despertam para a luta.
Em linhas gerais, na Europa, é como se o caminho de abertura da luta de classe avançasse, inexoravelmente, mas mais lentamente, numa distensão mediada por formas pequeno-burguesas, devido à ausência de um partido revolucionário capaz de organizar a revolta da classe operária e desatar uma maior resistência contra o capital. Assim, nesses países, nos parece, o elemento mais determinante para a paralisação da classe operária e para o relativamente baixo nível de conflitos de classe tem sido, ainda, a crise da direção revolucionária, e não tanto a capacidade de grupos pequeno-burgueses de iludir a classe trabalhadora e paralisar a luta de classes (o que, é evidente, também não pode ser desconsiderado).
Não se pode subestimar a capacidade de Freixo e seu partido de criarem no Brasil um fenômeno similar ao europeu, amparado na pequena-burguesia e na crise da direção da classe operária. Num momento de crise aguda, como o atual, tendo como base uma forte prefeitura e, aparentemente, dissociados do projeto petista, aparecendo como supostas novidades, tais projetos podem ser erguidos com relativa rapidez, como foram na Europa. Ainda assim, a situação geral no Rio de Janeiro, pensada à luz da situação europeia, parece revelar sobretudo a urgência de se criar um partido revolucionário, da classe operária. Nas próximas semanas, voltaremos à análise da situação.