Publicamos artigo do prof. Jair Antunes sobre a polêmica envolvida em torno do conceito de modo de produção asiático: estabelecido por Marx em textos como “Formas que precederam a produção capitalista”, parte dos Grundrisse, para compreender “a mais geral das formas de sociedade que teria surgido após as primeiras formações comunitárias”, ele seria posteriormente abandonado pela histografia soviética dos anos 1930 nos seus esforços de enquadrar a evolução de todas as sociedades em um esquema de desenvolvimento histórico segundo o qual toda e qualquer sociedade deveria, internamente, passar por uma evolução linear dos seus modos de produção que iria do comunismo primitivo até o socialismo.
Jair Antunes, Doutor em Filosofia pela Unicamp-SP e Professor de Filosofia na Unicentro-PR.
Marx, em seus estudos sobre a história geral dos povos, cunhou o termo modo de produção asiático para denominar não a única, mas a mais geral das formas de sociedade que teria surgido após as primeiras formações comunitárias primitivas de organizações humanas. Este modo de produção teria formado a base de vários povos históricos, desde o Oriente e Europa antigas até a América pré-colombiana. Este conceito de modo de produção asiático, no entanto, foi banido da concepção marxista da história pela historiografia soviética desde pelo menos a década de 1930 até a década de 1960, causando polêmica na historiografia marxista ocidental ainda hoje.
O clima de dogmatismo que permeou aqueles anos fez com que predominasse uma interpretação unilinearista e etapista da história pelos intelectuais marxistas ligados aos PCs de todo o mundo. Nossa proposta aqui é tentar mostrar, por um lado, que sem tal conceito a concepção histórica de Marx — esboçada em seus mais de quarenta anos de pesquisa sobre as sociedades humanas e especialmente sobre os fundamentos da sociedade burguesa — fica praticamente inviável. Por outro lado, pretendemos mostrar também que a função principal das sociedades pré-capitalistas — das asiáticas em especial — nas análises de Marx é tanto aparecer como contraposição às relações de produção burguesa como também compreender o papel destas sociedades e seus fortes contingentes camponeses e aldeão-comunais na revolução mundial.
Ao longo de quase meio século de produção teórica sobre os fundamentos do modo de produção capitalista apresenta-se em Marx, ainda que em latência, uma determinada forma de percepção do curso histórico mais geral da humanidade, o qual tem na crescente oposição entre expropriadores dos meios de produção e expropriados da riqueza natural o motor dinamizador do caminho percorrido pelos povos.[1] A história da Europa, iniciada basicamente com os gregos e romanos, aparece como a história da luta de classes, como a história em que a apropriação da natureza por parte dos grupos dirigentes do processo produtivo e político transcorre de forma a desenvolver modos de produção baseados na escravidão-mercadoria na servidão de gleba ou aquilo que ficou conhecido como modo de produção feudal, o qual formou a base material para o surgimento e ascensão do modo de produção capitalista, hoje o modo de produção dominante a nível universal.
Para Marx, as primeiras formas de agrupamento humano formam o que ele denomina de comunidade primitiva. Esta é formada por hordas de povos normalmente errantes e que vivem basicamente do que a natureza Ihes oferece de forma imediata. O controle de certas técnicas produtivas e de “engenharia” torna possível o assentamento de comunidades tribais em determinados locais mais ou menos privilegiados pela natureza. Tanto o maior quanto o menor grau de desenvolvimento — interno ou externo — do processo produtivo, bem como a constituição interna da tribo e o maior distanciamento ou proximidade entre as comunidades, determinam, em grande medida, a configuração social posterior das mesmas.
Marx explica que a forma histórica mais comum de evolução econômico-social pós-comunidade primitiva foi a que se formou em torno da agregação de quantidades variáveis de comunidades relativamente próximas ao redor de um governo central, organizador dos trabalhos comunitários de grande vulto (sistemas não-naturais como canais de irrigação, diques, etc.). Tais governos teriam formado extensas redes burocráticas de funcionários que se estendiam ao longo de todo o território, colocando as comunidades sob a subordinação do estado.
O modo de produção dessas comunidades era mais ou menos estável (imutável, como dizia Marx), baseado na união entre agricultura comunal e artesanato doméstico, produzindo ao mesmo tempo o suficiente para a manutenção da comunidade e um excedente in natura que era apropriado pela comunidade superior em forma de tributo.
O estado aparece como o grande proprietário, sendo as comunidades somente suas possuidoras hereditárias. Influenciado por uma tradição de estudos que remonta aos viajantes naturalistas dos séculos XVII e XVIII e a Hegel, Marx chamou essas formas de estado de “despóticos”, e a forma de governo ali dominante de “despotismo oriental”.[2]
Esta união entre comunidades de aldeia auto-suficientes (village system) — baseadas na união entre agricultura comunal e artesanato doméstico, controladas por urn governo despótico responsável pela organização dos trabalhos públicos, pela segurança contra o estrangeiro, e pelo controle religioso e político da comunidade — formava a base do que Marx chamou de modo de produção asiático.
O termo “asiático” refere-se sobretudo ao fato do mesmo ser lugar comum nos meios intelectuais do século XIX, além do fato de que a Índia “britânica” teria proporcionado o lócus privilegiado para Marx compreender os fundamentos do sistema de aldeias comunais — ainda fortemente subsistentes ali em grande medida — por meio dos relatórios dos funcionários da Companhia das Índias Orientais, administradora da colônia asiática e com sede em Londres, local de residência de Marx desde o final da década de 1840.
No entanto, apesar de tal termo aparentemente apresentar uma delimitação geográfica a generalidade desse modo de produção, Marx explica que ele teria sido a mais universal das formas de superação da precariedade de controle dos meios naturais de produção das “comunidades primitivas”. Essa forma de produção poderia ser historicamente verificada entre os orientais, obviamente, mas também na própria Europa “pré-ocidental”, ou seja, estaria na base tanto da formação greco-romana — via clássica de desenvolvimento do chamado “Ocidente” — como também entre as comunidades celtas, gaélicas e eslavas. O mesmo teria ocorrido na formação dos grandes estados pré-colombianos da América.
Do ponto de vista de Marx, o princípio desse modo de produção — qual seja a união entre agricultura autossuficiente e artesanato doméstico — proporciona a “estabilidade milenar” dessas formas de sociedades. O enrijecimento estamental, aliado ao baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, além do relativo isolamento físico entre uma comunidade e outra, teria gerado a imutabilidade das relações de produção e consequentemente do desenvolvimento técnico dos meios de produção. Marx explica que, por conseguinte, a tendência dessas formas de sociedade fundamentadas no modo de produção asiatico seria a estabilização — “a imutabilidade” — das formas de sociabilidade, tanto no que se refere às relações de produção quanto às formas de consciência: concepções políticas, religiosas, culturais, etc. Obviamente, isso não significa dizer que todas estas sociedades tivessem manifestações culturais idênticas, como se poderia pensar, mas cada uma determinada pela sua própria configuração interna (determinações étnicas, p. ex.) e externa (como sua relação com as condições naturais do local e com o estrangeiro).
Tal princípio fundamentador do modo de produção asiático provoca, pois, a estagnação e a perpetração de baixíssimas condições sócio-culturais sobretudo nas populações que vivem em aldeias comunais — onde se encontrava a quase totalidade da população — já que nessas formas de sociedade a vida urbana seria, segundo Marx, de menor importância, pois a base da sociabilidade se concentrava nas comunidades rurais.
O princípio estabilizador das forças produtivas — desenvolvimento técnico e relações de produção — dessas sociedades seria algo tão fortemente arraigado que muito dificilmente elas romperiam por si próprias tal princípio de imutabilidade, “eternizando” assim tais formações sociais.
A principal forma de rompimento e superação de tais estados de sociabilidade — historicamente comprovada segundo Marx, pois nos parece que ele não pretende aqui fazer filosofia da história (ou “história a priori”) — seria a intervenção externa, ou seja, a intervenção de povos que tomassem o domínio político do estado e impusessem ali revoluções agrárias novas e destruidoras das formas tradicionais de propriedade — comunais —, relações fundamentadas na apropriação privada dos meios de produção.
Como exemplos de conquistas e rupturas “externas” em relação aos estados “asiáticos”, onde os conquistadores teriam promovido verdadeiras revoluções nos modos de produção local, implantando novas relações de apropriação do solo e de exploração dos povos dominados — formas de propriedade privada do solo, sobretudo — poderiam ser a conquista das sociedades Asteca e Inca na América pela Europa Renascentista, da Grécia creto-micênica pelos dórios e, sobretudo, no caso especial estudado por Marx de forma mais detida, a conquista britânica da Índia.
Desde o início do século XVIII, o império britânico lutava contra os exércitos indianos até conseguir, em meados do século XIX, se tornar dono absoluto de toda a extensão do território indiano. Com a subjugação final da Índia à Inglaterra, esta última toma então a posse definitiva do país através da anexação compulsória de todos os territórios semi-independentes, tornando-se proprietária da idílica terra dos milenares tecidos de seda.
Abolindo a propriedade comunal da terra, os britânicos teriam então promovido uma revolução agrária na Índia, implantando formas de apropriação privada da terra e destruindo, assim, tanto a forma comunal agrícola quanto a base artesanal da indústria hindu, convertendo a Índia de país exportador de finas sedas em país importador dos grosseiros tecidos de algodão produzidos nas indústrias inglesas. Tal destruição da base econômica das comunidades através da melhoria nas comunicações e da instituição da propriedade privada da terra teria produzido, por isso, diz Marx, “a maior, e para dizer a verdade, a única revolução social que jamais se viu na Ásia”.[3]
Marx, após apresentar as características fundamentais da sociedade hindu, justifica a dominação britânica da Índia (além da enorme anarquia e debilidade político/militar do país) pelo fato de a Inglaterra tê-la arrancado de seu passado imutável e atrasado, portanto, do modo de produção asiatico e de tê-la lançado no frenesi da história ocidental — a história sempre convulsionada e fundamentada no princípio da apropriação privada e individual da riqueza social. Marx acreditava que tal revolução de enormes proporções em país tão importante na economia mundial desde tempos longínquos como era a já super-povoada Índia de meados do século XIX, teria impacto decisivo na revolução proletária mundial.
Assim, para Marx, por mais despudorada que tenha sido a invasão britânica na Índia, a Inglaterra teria levado até ela — e a toda a Ásia — a história ocidental, a história do modo de produção capitalista e da luta de classes, colocando a Índia e a Ásia inteira na marcha da história universal e no turbilhão da revolução mundial. E por mais que os ingleses tenham pilhado o país e promovido violência excessiva no processo de luta e conquista da Índia, Marx afirma que a destruição de tais comunidades auto-suficientes — por mais lamentável que isso possa parecer – era urn fator essencial para a submissão das forças da natureza aos interesses da humanidade.[4]
Em 1884, um ano após a morte de Marx, Engels escreve A origem da família, da propriedade privada e do Estado onde, baseado na teoria evolucionista de um antropólogo norte-americano, L. H. Morgan — que havia estudado a evolução dos clãs iroqueses do leste dos EUA —, poder-se-ia compreender a formação originária de todas as sociedades indistintamente, tanto gregos e romanos, como também germanos, hindus, etc. Engels, sob a influência de Morgan, suprime nesta obra a categoria de modo de produção asiático que havia desenvolvido juntamente com Marx, abrindo caminho para que posteriormente fosse formulada uma interpretação “feudal” e/ou “escravista” do Oriente antigo. Engels, em A origem da família, afirma estar “executando o testamento de Marx” sobre a interpretação da teoria de Morgan (Marx havia lido e fichado a obra Ancient society de Morgan em 1882), pois estava de posse dos fichamentos de Marx relativos a esta obra.[5]
No entanto, ao analisarmos esse fichamento, percebemos claramente que Marx não toma como suas as afirmações de Morgan sobre as teorias do evolucionismo e das etapas necessárias na origem da história: Marx apenas toma nota das ideias de Morgan sem, no entanto, referendá-las. Tal obra de Engels, no entanto, seria utilizada no chamado período de burocratização da União Soviética de forma a atender os interesses políticos da casta burocrática controladora do estado, servindo sobretudo para lançar uma interpretação da história dos povos asiáticos que lhes colocava na mesma linha histórica da história europeia, ou seja, na mesma sequencia história dos modos de produção que haviam se desenvolvido no ocidente: escravagismo, feudalismo e capitalismo, apagando e desmerecendo, assim, as leituras e escritos de Marx sobre a imutabilidade da história oriental.
Assim é que desde a burocratização da revolução russa no final da década de 1920-mais exatamente desde o VI Congresso da III Internacional Comunista em 1928 — essas análises de Marx com relação às sociedades asiáticas antigas e a própria categoria de modo de produção asiatico foram combatidas e em seguida suprimidas da historiografia marxista “oficial”. Nesse período, predominou uma interpretação “feudal” da Ásia e mesmo de regiões da América, aceita acriticamente por quase todos os intelectuais marxistas do mundo, o que levou, no final das contas, a estratégias políticas desastrosas para a tentativa de promover a revolução mundial.
Neste VI Congresso e também nos encontros de historiadores soviéticos em 1930-31 — dominados já por um grupo ligado à nova direção do estado sovietico — ficou determinado que a leitura “asiática” da Rússia e da China estaria equivocada. Esses países foram taxados como estando, antes das respectivas revoluções internas, em um estágio “feudal” de desenvolvimento. A teoria de Marx sobre o modo de produção asiático como base da organização econômico-social desses países foi simplesmente ignorada. Foi declarado ali, então, que a tese sobre as fases percorridas pela Europa (corn exceção da fase “asiática”), expostas por Marx no famoso Prefácio de 1859 — e “corrigidas” por Engels em A origem da família — também eram válidas para a Ásia, América e, de urn modo geral, para todos os outros países.
Essa tese ganhou elaboração teórica mais bem acabada com a teoria dos cinco modos de produção de Stalin, em 1938, no qual este afirmava que todos os povos, sem exceções, passam necessariamente pelas mesmas fases históricas (ocidentais!), desde a comunidade primitiva até o socialismo: “A história reconhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo”, diz Stalin. Ele justificou, então, sua nova pseudo-teoria, afirmando estar amparado na teoria dos modos de produção de Marx e Engels.
A partir de então, até pelo menos meados da década de cinquenta, os novos historiadores e intelectuais marxistas oficiais (corn raras exceções), amparados na “tese” de Stalin, desenvolveram uma série de estudos de povos não-europeus, aplicando a “teoria das etapas necessárias da história”, procurando e “encontrando” supostas fases “escravagistas” e “feudais” em praticamente todas as regiões de “capitalismo-não-central”. Os países latino-americanos, por exemplo, por não terem desenvolvido as forças produtivas tanto quanto os Estados Unidos ou os países europeus, foram considerados como países atrasados, coloniais ou semicoloniais, pois não teriam ainda conseguido romper com o seu passado feudal.
A concepção histórico-dialética desenvolvida por Marx (e por Engels) durante quatro décadas foi, então, substituída por esquematismos baseados em teorias empiricistas grosseiras e apoiadas na dogmática stalinista. Essa teoria das etapas, porém, foi tão penetrante no meio intelectual marxista que correu o mundo, atingindo e influenciando até mesmo autores aparentemente não comprometidos diretamente com a política soviética daquele momento histórico.
Engels — com sua obra extraída da antropologia de Morgan —, sem querer, acabou por tornar-se o suporte teórico de toda a dogmática stalinista tanto na União Soviética quanto nos diversos países onde os PCs controlavam os partidos de esquerda. A origem da família foi utilizada como base legitimadora da tese stalinista das “etapas necessárias da história”, tornando-se a nova base rica da historiografia marxista oficial. Na interpretação soviética, Engels, nessa obra, teria “corrigido” Marx em sua interpretação sobre a história da Ásia antiga, dando a entender que a história do Oriente antigo em nada se diferenciaria da história da Europa, e que, assim, os países asiáticos haviam também vivenciado etapas feudais e escravagistas. Engels, assim, na interpretação stalinista, teria ido além de Marx na compreensão das sociedades pré-capitalistas.
Na década de 1960, após o período da chamada “desestanilização” da União Soviética, houve a retomada da discussão em torno da categoria de modo de produção asiático. Tanto na França quanto na Inglaterra e em outros países, vários intelectuais marxistas se debruçaram em torno da discussão dos textos de Marx, sobretudo de uma parte dos Grundrisse, chamada “Formas que precedem a produção capitalista”, publicada somente em 1941. Esse texto inédito de Marx, que formava os esboços de O Capital, trouxe um reavivamento e maior esclarecimento aos estudiosos da compreensão que Marx possuía sobre os fundamentos e determinações econômicas das formações sociais pensadas dentro do conceito de modo de produção asiático.
Essas discussões, no entanto — em parte devido ao cunho polêmico que tais debates criavam por suas implicações políticas, em parte ao excessivo caráter cientificista que alguns autores deram ao tema —, levaram por fim a uma compreensão não muito produtiva sobre os reais motivos do interesse de Marx sobre a categoria de modo de produção asiático. Os defensores do modo de produção asiático procuraram mostrar “cientificamente” a existência de tal modo de produção no passado desta ou daquela sociedade. Outros, os que condenavam tal teoria, acusavam Marx de ter sido superficial em suas análises sobre a Ásia e defendiam um caráter “feudal” ou “escravagista” para o Oriente antigo. O conhecido historiador inglês Perry Anderson, p. ex. (entre outros), corroborou a interpretação stalinista do “feudalismo oriental” criticando o conceito de modo de produção asiático de Marx e sugerindo seu desuso na teoria marxista.[6]
Nenhum autor, no entanto, havia se perguntado porque realmente Marx se empenhara tanto em tentar descobrir os “mistérios” em torno das sociedades asiáticas, quais as implicações que tais estudos teriam em sua compreensão da expansão a nível mundial do modo de produção capitalista na modernidade e, sobretudo, quais as implicações que a persistência de resíduos comunais nas sociedades orientais poderiam ter sobre a revolução comunista mundial.
Nos anos em que estava escrevendo O Capital entre as décadas de 1850 e 60 (o primeiro volume foi publicado em 1867) as sociedades pré-capitalistas apareciam nos estudos de Marx sobretudo numa forma de relação comparativa destas com a sociedade burguesa. todas as sociedades que precederam o modo de produção capitalista tinham, segundo Marx, a produção voltada basicamente para a produção de valores de uso. Nessas formações sociais, a produção dos meios imediatos de consumo internos a própria família ou comunidade (self-sustaining), se sobrepunham aos produtos voltados ao mercado.
Dessas várias formações sociais pré-capitalistas citadas por Marx ao longo de O Capital, as de tipo “asiáticas” são as que aparecem numa relação comparativa mais radical de oposição com a sociedade burguesa.[7] Nelas as relações de produção aparecem da forma mais fixa possíveis — “relações de “imutabilidade”, como dizia Marx — não havendo qualquer possibilidade do surgimento endógeno de forças que romperem tais relações de estagnação econômico-social fixadas há milênios. A reprodução das comunidades aldeãs na Índia pré-britânica aparecia como algo natural, e Marx explica que se uma comunidade fosse destruída por uma catástrofe natural ou pela guerra, seria reconstruída nas mesmas condições, corn os mesmos princípios, sem que se pudesse depois notar alguma mudança significativa em relação à situação anterior.
O mesmo se dava quando a população da aldeia aumentava além das capacidades da mesma: parte da comunidade mudava-se para um local mais ou menos distante e fundava ali uma nova comunidade com as mesmas características da original. Os aldeões comunais não se importavam em saber quem estaria controlando politicamente o país: desde que a estrutura de apropriação comunal das aldeias não fosse atingida, não se importavam para quem deveriam pagar o tributo in natura. Os estrangeiros (afegãos, mongóis, rajas hindus, árabes, muculmanos, etc.) poderiam controlar a estrutura política, mas quem detinha o controle da base produtiva da sociedade eram os aldeãos comunais.
Essa imutabilidade milenar nas relações de produção baseadas na apropriação comunal da riqueza social — obviamente que assim não haveria ali a propriedade privada da terra onde a produção agrícola e artesanal eram internas a própria comunidade —, seria “a chave” para se compreender a imutável dade milenar das relações de produção no Oriente, diz Marx em O Capital e em artigos da mesma época.
Os ingleses teriam sido o único povo com capacidade de destruir essa sociedade baseada no modo de produção asiático, pois os britânicos, além de capacidade militar para tomar o poder político do país, possuíam também a mais potente das armas destruidoras de sociedades voltadas para a produção self-sustaining: relações de produção privadas e voltadas para produzir valores de troca.
Depois, já no final de sua vida, no início da década de 1880, quando a produção capitalista estava já bastante desenvolvida na Europa ocidental, Marx (também Engels) passou a dar mais atenção à situação revolucionária na Rússia, começando até mesmo a estudar o idioma russo. A Grande Rússia era um enorme país despótico com resíduos ao mesmo tempo de relações de servidão feudal (europeias) e comunais aldeias (asiáticas). Ou seja, a Rússia aparecia para Marx como um país meio asiatico e meio ocidental, dada sua história e posição geográfica privilegiada entre ambos os “continentes”.
Naquela época, último quarto do século XIX, dada sua proximidade corn o ocidente, a Rússia era, por urn lado, um país que se industrializava rapidamente, concentrando milhões de ex-camponeses nas insalubres cidades industriais, contribuindo tanto para a industrialização e definitiva “ocidentalização” do país, quanto para a rápida decomposição da secular estrutura aldeã-comunal do campo russo (a servidão havia sido abolida em 1861). Por outro lado, dada sua proximidade geográfica e cultural com o Oriente, a Rússia possuía ainda uma estrutura política de cunho despótico, bem ao estilo dos grandes estados despóticos estudados por Marx na década de 50.
Marx, em 1882 foi interpelado pelos marxistas russos a opinar sobre as possibilidades revolucionárias na Rússia czarista. Vera Zasulich enviou então uma carta a Marx pondo-Ihe a seguinte questão: seria possível a Rússia promover diretamente a revolução comunista nas atuais condições do país ou ela estaria necessariamente fadada (destinada) a passar por todas as etapas econômico-sociais que o ocidente havia passado — tendo assim que destruir toda sua estrutura agrícola de base aldeã — até se industrializar e chegar a uma situação revolucionária criada por si própria, ou seja, com contradições produzidas por sua própria estrutura interna e não dependente de forças externas?
A resposta de Marx a esse questionamento foi dada tanto na resposta a essa carta quanto no prefácio à edição russa do Manifesto de 1882.[8]
Marx, talvez diante da acomodação do proletariado europeu, parece ter passado a acreditar que a revolução não teria que partir necessariamente dos países mais industrializados (Inglaterra, Alemanha e França), mas ela poderia ter seu ponto de partida num país periférico estratégico, como seria o caso da Rússia. Marx diz que tudo dependeria do fato de que a explosão revolucionária na Rússia fosse seguida de uma explosão revolucionária concomitante também no Ocidente, numa relação dialética de interdependência entre os países de proletariado industrial já consolidado e um país de proletariado jovem de origem rural e que não conhecia ainda as estratégias da burguesia de controle das ações revolucionárias presentes já nos grandes centros industriais europeus.
A própria base rural aldeã-comunal russa, que antes era vista como um entrave à revolução, agora, nestas novas condições do capitalismo mundial, apareciam a Marx como uma força em parte positiva, pois ele percebe ali uma “cultura” comunista já arraigada que poderia influenciar como fator positivo na configuração da revolução proletária na Rússia e em concomitância com a Europa ocidental. Por si só a Rússia não poderia fazer uma revolução comunista, mas dando o sinal para a revolução no Ocidente, ela poderia aparecer como a avant-garde da revolução comunista mundial.
Ou seja, somente numa ação conjunta do proletariado mundial, atuando revolucionariamente em um grande sincronismo dialético, seria possível a vitória da revolução na Rússia semi-aquática e semi-industrial e na Europa, trazendo a reboque a revolução no restante do mundo. Se assim fosse feito, então a Rússia, diz Marx, não precisaria sofrer todas as mazelas que o ocidente passou, pulando essas etapas e se apropriando do que havia de mais avançado em termos de forças produtivas na Europa, podendo assim vir a regenerar a sociedade russa, de fortes tradições comunalistas.
Assim, a nosso ver, parece que essas seriam duas das principais razões para Marx dar grande atenção às sociedades pré-capitalistas e em especial àquelas caracterizadas pelo modo de produção asiatico: a) na relação de contraposição à forma burguesa de produção baseada na produção para o mercado (sobretudo em O Capital); e b) no papel que essas sociedades “asiáticas” jogariam dentro da revolução proletária mundial.
O stalinismo, ao condenar o conceito de modo de produção asiático e proclamar assim a teoria da necessidade de todos os países passarem por todas as mazelas do capitalismo mundial, na prática atuou como um freio para a revolução comunista mundial, pois colocou como interna a cada país a necessidade de criar as condições para a revolução mundial (teoria do socialismo em um só país ou teoria das etapas), traindo assim a classe operária mundial ao quebrar a sincronia entre as organizações proletárias mundiais para uma ação conjunta.
Por isso, pensamos que as discussões reavivadas sobre a categoria de modo de produção asiático na década de 1960 na França, Inglaterra, etc., por mais interesse “científico” que pudessem ter-nos trazendo conhecimentos empíricos que comprovam ou negam a possibilidade da existência de sociedade de tipo “asiáticas” em várias partes do mundo — essas discussões mesmo assim, do ponto de vista da revolução mundial — que era o grande foco teórico e prático de Marx e de Engels —, não foram frutíferas, caindo num marasmo e numa mera polêmica erudita sem grande interesse prático. Basta, para tal, ler os texto publicados na revista francesa La Pensé ou no Centre d’Études et de Recherches Marxistes (CERM), ou na revista inglesa New Left Review (entre outras publicações em livros e periódicos de diversos países), para perceber-se que o que permeia as discussões ali publicadas saber se houveram ou não sociedades “asiáticas” no passado de tal ou tal lugar. O academicismo tomou conta ali das discussões, desviando o foco político e revolucionário do debate.
As acusações a Stalin por ter falseado a teoria da história marxista — que a teria transformado numa mera “filosofia da história”, da marcha geral e necessária de todos os povos do qual o destino final, já posto desde o princípio, seria o comunismo — não tiveram, de modo geral, o objetivo de apontar a necessidade de unificação do proletariado mundial em torno de urn partido internacionalista de cunho revolucionário. O objetivo principal desses teóricos enfurnados em grandes universidades de prestígio mundial era, basicamente, poder apontar, cientificamente, qual seria a verdadeira concepção histórica do marxismo, numa tentativa de transformar o marxismo numa ciência burguesa, numa mera leitura positivista do curso geral da história.
Antes de atacar a falsificação stalinista do marxismo e o caráter contra-revolucionário da burocracia soviética, antes de pretender desenvolver urn programa verdadeiramente internacionalista e dialético para o proletariado mundial, o objetivo central desses teóricos, e outros, era, no fundo, fazer do marxismo uma ciência, como se Marx fosse um mero historiador ou cientista social. Foi completamente esquecida a importância da relação de forças que essas sociedades com fortes sobrevivências pré-capitalistas poderiam ter na futura (e, para Marx, iminente) revolução mundial. Para Marx, tais sobrevivências pré-capitalistas, mais fortes em alguns países, menos em outros, jogariam papel determinante no caráter da luta de classes interna a cada país. Essas comunidades rurais poderiam atuar positivamente como aliadas do proletariado do país e mesmo do proletariado mundial, ou poderiam atuar negativamente como aliadas das burguesias de cada nação. O apoio ativo das comunidades camponesas de cada país atrasado ao proletariado de seu próprio país seria, na visão de Marx, determinante na luta vitoriosa do proletariado mundial contra o capital.
Pensamos que esta seria a importância fundamental do conceito de modo de produção asiatico dentro da perspectiva histórico-revolucionária presente nos textos de Marx.
[1] Cf. o artigo de Benoit — A luta de classes como fundamento da história —, constante da bibliografia no final do texto, em que o mesmo discute o conceito de luta de classes — surgido pela primeira vez em O Manifesto Comunista —, mostrando que o mesmo fundamenta toda a teoria de Marx e Engels ao longo de seus textos posteriores. Cf. também o artigo O Programa de Transição de Trotsky e a América, onde Benoit procura mostrar como aparece na obra de Marx o movimento constituidor da história universal, bem como a violência de tal processo universalizador da história enquanto violência da luta entre classes e da luta da Europa contra povos considerados culturalmente “inferiores” e que são absorvidos no turbilhão da história enquanto luta de classes.
[2] Os textos em que aparecem mais claramente a opinião de Marx sobre o caráter de um modo de produção asiático determinante na constituição econômico-social nas sociedades orientais antigas são: Formas que precedem a produção capitalista (mais conhecidas por Formen), parte dos Grundrisse ou “esboços de O Capital“, publicados somente em 1941, e alguns artigos referentes à Índia (p. ex. A dominação britânica da Índia), além de cartas destinadas a Engels, onde ambos debatem o caráter despótico e auto-suficiente das sociedades orientais, fundamentados na ausência de propriedade da terra; bem como em A miséria da filosofia e no próprio O Capital (cf. bibliografia no final deste artigo).
[3] Marx. A dominação britânica na Índia. In Godelier (org), p. 84.
[4] Pode parecer estranho aos olhos e ouvidos de um leitor não familiarizado com a leitura dos textos de Marx, ou a um leitor fortemente “humanista”, falar que Marx não fazia uma condenação moralista da violência entre os povos. Tern-se que lembrar aqui que Marx tern como foco a revolução comunista, e esta somente seria possível a nível mundial, ou seja, quando as forges produtivas da natureza estivessem desenvolvidas em nível mundial; por isso é que Marx não condenava por mero “humanitarismo” a violência britânica na Ásia — a não ser seus excessos —, pois a história enquanto movida pela luta de classes tern na violência urn dos principais instrumentos de dinamização da mesma. (Veja-se sobre a questão da violência revolucionária em Marx o artigo de Jadir Antunes constantes da bibliografia geral).
[5] No Mestrado, estudamos esta questão da veracidade ou não da “chancela” de Marx, afirmada por Engels, as teses morguianas sobre urn caráter evolucionista e unilinear da história e que Engels aceita, afirmando ester expondo em A origem da família… o “testamento de Marx” sobre tal concepção. Em nossa pesquisa, verificamos que tal afirmação de Engels em relação a opinião de Marx sobre as teses morguianas não tem chancela no esboço que Marx fez desta obra pouco tempo antes de morrer e que, portanto, as afir-magees de Engels de que Marx teria chegado a uma “reconceitualização” da história a partir das teses de Morgan nos parecem falsas.
[6] “Que este conceito [de modo de produção asiático] receba o enterro condigno que ele merece”. (Anderson, 1989, p. 547).
[7] Por exemplo: “Na antiga comunidade hindu o trabalho é socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias.” (p. 50); “A cooperação no processo de trabalho, como a encontramos nas origens culturais da humanidade, predominantemente nos povos caçadores ou eventualmente na agricultura da corn unidade indiana, fundamenta-se, por urn lado, na propriedade comum das condições de produção e, por outro, na circunstância de que o indivíduo isolado desligou-se tão pouco do cordão umbilical da tribo ou da comunidade como a abelha individual da colmeia. Ambos diferenciam-se da cooperação capitalista…” (p. 265).
[8] Cf. a resposta de Marx em carta e os vários esboços da mesma em Marx e Engels “sobre El modo de…” In Godelier (org), p. 171-185.
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SOFRI, G. O modo de produção asiático: história de uma controvérsia marxista. RJ: Paz e Terra, 1977.