Não existe realmente um partido de esquerda no Brasil. Para entender isso é necessário compreender o significado dos termos “esquerda” e “direita” ao longo da história, bem como aplicar o significado real (atual) para os partidos hoje existentes.
Como se sabe, tais termos surgiram logo na primeira fase da Revolução Francesa (1789). Em 1789 os partidários do Rei e da Monarquia sentavam-se nas cadeiras que ficavam no canto direito da Assembleia Nacional, e os contrários sentavam-se nas cadeiras do lado esquerdo. Assim se convencionou que os da “direita” queriam a conservação do regime monárquico e os da “esquerda” a sua derrubada. Daí a ideia de que a “direita” quer conservação e a esquerda, mudança.
Mas conservação e mudança de quê? Será que conservação e mudança em 1789 significam a mesma coisa ainda hoje? Na verdade, assim como seria absurdo falar que uma pessoa hoje de direita quer uma sociedade com nobres, feudos e servos, é absurdo falar que uma pessoa de esquerda quer os ideais republicanos de 1789 (“liberdade, igualdade e fraternidade”).
De 1789 para cá, muita coisa mudou, não só politicamente, mas também economicamente; desenvolveu-se a sociedade que a revolução francesa ajudou a instituir: a sociedade burguesa. E, com ela, surgiu e se desenvolveu a classe trabalhadora, que passou aos poucos a lutar por seus próprios objetivos. A classe trabalhadora que antes era pouco numerosa e auxiliava a burguesia nas lutas desta contra o poder monárquico, depois passou a lutar separada, independente, contra a própria sociedade burguesa. Nesse processo, os que ontem eram radicais tornaram-se conservadores. Os que ontem revolucionaram o mundo hoje o controlam. Os que falavam (e às vezes falam ainda) de “liberdade, igualdade e fraternidade” são os que mantêm uma ordem de exploração crescente dos trabalhadores.
Entre 1789 e o presente aconteceu uma fato da maior importância: a revolução de 1848 (em vários países europeus). Particularmente na França, em junho de 1848, os trabalhadores lutaram pela primeira vez contra a sociedade capitalista-burguesa, para tentar instituir uma sociedade em que os meios de produção são propriedade comum. Esse fato mudou o significado de todos os termos políticos até então existentes. Karl Marx, por exemplo, fala sobre tal mudança e ressignificação de termos:
“Depois de junho [de 1848], revolução passou a significar convulsão da sociedade burguesa, enquanto antes ela significava convulsão da forma de Estado. (…). A revolução só se tornaria ela mesma depois de obter o seu nome próprio e original, e isto ela só conseguiria quando a moderna classe revolucionária, o proletariado industrial, ocupasse o primeiro plano da luta.” (MARX, K., As Lutas de Classes na França, cap. II)
Antes de junho de 1848, “revolução” era um termo para mera mudança na forma do Estado (como a operada pela Rev. Francesa de 1789, que só mudou qual classe dominaria a maioria). Após junho de 1848, entretanto, uma revolução não significaria mais uma mera mudança de forma (mantendo a divisão da sociedade em classes), mas uma mudança na sociedade como um todo (acabando com a propriedade privada, com o Estado e com as classes). E só assim, vinculada ao proletariado, o termo “revolução” passou a ter um sentido verdadeiro para o presente, um sentido realmente válido na sociedade moderna (ou seja, a concepção anterior de revolução passou a ser falsa, como um nome vazio que encobre, atrapalha ou confunde o que tem de ser feito).
O mesmo vale para os termos “esquerda” e “direita”. O surgimento histórico da luta independente dos trabalhadores fez com que os setores mais radicais da Revolução Francesa de 1789 fossem deslocados no espectro político. Os que antes eram a ala esquerda mais radical – os pequeno-burgueses citadinos chamados de Jacobinos, que governaram no período da Convenção Nacional (1792-95) – passaram para o centro do espectro político após junho de 1848. Os que antes estavam no centro político – chamados de “pântano” ou “centristas”, grandes burgueses organizados em torno dos Girondinos – foram deslocados para a direita. E os que estavam propriamente na direita em 1789, os monarquistas, desapareceram por completo, pois a Revolução Francesa suprimiu sua base econômico-social de existência.
O espaço da esquerda de ontem não ficou vago, pois foi ocupado pela moderna classe trabalhadora em luta por seus objetivos históricos: a instituição de uma sociedade de indivíduos livres (sem coação pessoal, como na escravidão e servidão), sem Estado, onde os meios de produção são bens comuns, trabalhados de acordo com um planejamento social racional (e não de acordo com a “lógica” irracional do lucro do mercado).
Os conceitos mudaram desde junho de 1848, mas as classes ainda não foram abolidas. Assim, enquanto o proletariado usa um termo do seu ponto de vista (correto para o presente), a burguesia usa o mesmo termo do seu antigo ponto de vista. Ela o faz para criar confusão política no presente, dificultando a luta do proletariado por uma sociedade nova. Tais tarefas ideológicas e de confusão cabem sobretudo aos meios de comunicação da burguesia, aos intelectuais burgueses (que povoam as universidades) e aos agentes da burguesia no meio da classe trabalhadora (organizações e partidos corrompidos pela ordem burguesa, que atuam para paralisar as lutas dos trabalhadores por dentro).
Frente a isso, que fazer? Alguns optam honestamente por abandonar os termos “direita” e “esquerda”, argumentando que não são científicos e claros; que mais confundem do que ajudam. Nós, pelo contrário, seguindo alguns pensadores modernos (K. Marx, F. Engels, V. Lenin, L. Trotsky, R. Luxemburgo e outros grandes revolucionários), pensamos que é necessário usar os termos “direita” e “esquerda”, sem abandoná-los e entregá-los à burguesia, fazendo um esforço para desmascarar o uso falso.
Tais termos são necessários para captar a riqueza do presente. Não nos satisfaz dizer que em vez de se utilizar o termo “direita” deve-se utilizar o termo “burguês”; que em vez de se utilizar “centro” deve-se utilizar “pequeno-burguês”; e em vez de se utilizar “esquerda” deve-se utilizar “proletário”. É verdade que “Burguês”, “pequeno-burguês” e “proletário” são pilares mais “científicos” ou “objetivos”. A realidade entretanto produz movimentos entre essas pilares mais abstratos e cinzentos da teoria. Na vida real, e nas lutas entre classes, há diversas pessoas e organizações políticas que transitam de um lado a outro. Há inclusive pessoas e organizações que circundam sempre um polo, oscilando em torno dele, sem nunca se estabelecer bem. Os termos “direita”, “centro” e “esquerda” – tendo sempre como pressuposto da análise os “pilares” objetivos ditos acima – auxiliam na descrição dos processos reais; colorem o que antes era abstrato. Eles ajudam, assim, na captação de tendências do movimento real. Sem se compreender as tendências do movimento real não é possível descrever um processo histórico real em toda sua riqueza, impossibilitando a aplicação de táticas flexíveis em meio à luta.
“Cinza é a cor da teoria, mas verde é a árvore da vida”, disse o poeta.
Dito tudo isso, é preciso avançar para uma metodologia de caracterização dos mais importantes partidos brasileiros autodenominados de “esquerda”. Como em tudo na vida, não nos serve o que os partidos falam de si mesmos (como se auto-intitulam). O primeiro vetor para determinação é o elemento científico e objetivo, ou seja o programa – trata-se de saber se tal partido tem um programa burguês, pequeno-burguês ou proletário-revolucionário (marxista). O segundo vetor para a determinação diz respeito aos indivíduos – trata-se de saber se os membros daquele partido seguem aquele programa ou se diferem dele pelos mais diferentes motivos (bem como para qual lado oscilam, quando diferem).
O problema do programa é fundamental, mas não é assunto deste texto (já em diversas ocasiões esclarecemos em que consiste um programa propriamente comunista).
Dada a questão do programa, resta entender a oscilação dos membros em relação aos programas. Por exemplo, é possível que um partido que atribua a si mesmo o nome de socialista tenha, na realidade, um programa pequeno-burguês, e tenha ainda, entre seus membros, uma proporção bastante pequena de membros propriamente marxistas. Esse partido estará à direita em relação a outro que tenha características similares mas uma proporção bem maior de membros marxistas (críticos ao próprio programa pequeno-burguês do partido).
O PT, por exemplo, é um partido que se intitula de “esquerda”. Embora tenha sido fundado, em 1980, com um programa pequeno-burguês, ele tem um programa abertamente burguês desde que elegeu Lula. O PT migrou definitivamente do centro para a direita durante a década de 1990. A maioria esmagadora de seus membros defende hoje o programa burguês de manutenção da ordem capitalista, de gestão do Estado, de repressão às contradições da luta de classes e de “desenvolvimento” do capitalismo brasileiro. Eis por que o PT é um partido de direita. Não há membros comunistas no PT (pode haver um número razoável, embora minoritário, de pequeno-burgueses).
O PSOL, por exemplo, é um partido com um programa pequeno-burguês (reformista e estatista, que defende harmonizar contradições de classe sem suprimí-las). A maioria da sua militância segue tal programa. Mas há uma parte significativa desse partido, composta pelas principais figuras públicas, que poderia estar em qualquer outro partido burguês (Rede, PDT, PSB etc.). Tais figuras defendem posições à direita em relação ao próprio programa do partido, ou seja, defendem posições burguesas de gestão da ordem capitalista (embora com discursos “humanitários”). Tais figuras só não estão no PT devido à desmoralização histórica desse partido. E há ainda no PSOL, curiosamente, uma ínfima minoria (quase desprezível numericamente) propriamente marxista. Essa confluência de posições torna o PSOL um partido de centro, mas tendendo à direita.
O PSTU é o partido legalizado mais à esquerda no Brasil. Seu programa, entretanto, não é propriamente comunista, mas pequeno-burguês (de gestão estatal), nacionalista (travestido de “anti-imperialista”), salpicado de concepções reformistas-estatistas. Trata-se de um programa de centro (da pequena-burguesia radicalizada). O limite de tal programa parece ser dado por traços burocráticos (possivelmente sindicais), mas é inegável que há também nesse partido uma proporção maior de revolucionários do que nos demais autodenominados de “esquerda”. Isso faz com que o PSTU seja o partido mais à esquerda no espectro político brasileiro, embora ainda numa posição de centro que poderia tender propriamente à esquerda (veja também nossa crítica recente ao programa do PSTU, aqui).
É forçoso reconhecer que não existe propriamente partido de esquerda no Brasil (isto é, com um programa comunista e uma maioria de militantes propriamente comunista). Essa é a maior tragédia da crise política e econômica pela qual passa este país. A confusão é tamanha que a esmagadora maioria da classe operária se disse recentemente de direita e votou em Bolsonaro, para combater a suposta “esquerda” (o PT). E não houve uma única força social que dissesse claramente que o PT é de direita, trabalhando para a esclarecer a confusão absoluta produzida pela burguesia e seus agentes!
Entretanto, o vazio na esquerda também é uma oportunidade de avanço para aqueles que não quiserem mascarar ou esconder a realidade, que assumirem como preceito que “é preciso dizer a verdade, por mais amarga que seja”. Para esse propósito, e com a esperança de ser criado no futuro um pólo revolucionário, escrevemos este pequeno texto.