Quem não viu os 16 minutos do nefasto discurso de posse de Trump não entenderá direito o que se passa no mundo. Não basta ver o recorte e os destaques da grande mídia: vejam o discurso todo e sintam sua atmosfera; sintam para quem fala e como (aqui há um link).
Trump olha nos olhos das pessoas empobrecidas e fala coisas como: vocês não serão mais esquecidos; Obama e todo o lixo partidário anterior (republicano ou democrata) representam a oligarquia, os que se dão bem enquanto o povo empobrece; a carnificina (destruição da educação, corte de empregos, a miséria, drogas, gangues, etc.) precisa ser estancada; é preciso salvar o nosso em primeiro lugar (“America first!”), e depois se preocupar com o resto; não somos negros, mulheres, gays, etc., somos americanos e queremos uma condição de vida digna. Essas são as linhas de força do seu discurso.
Trump sabe falar para a massa. Quem não entende o enorme apelo desse tipo populismo, sobretudo na América, não entende nada. O que está por trás? Oito homens mais ricos do mundo — revelou a organização humanitária Oxfam — têm agora mais dinheiro que a metade mais pobre do mundo. A crise estourada em 2008 acelerou por um lado a concentração de capitais e, por outro, a miséria da classe trabalhadora. Trump fala várias vezes da “classe média” — “vamos resgatar a bela classe média de nosso país”. Repetimos: quem não consegue entender a psicologia da classe “média” desesperada por ter empobrecido nesta crise, não entende nada.
É evidente que “classe média”, nos EUA ou no Brasil, não é uma classe camponesa ou mesmo de profissionais liberais, mas um enorme setor da classe trabalhadora, um pouco melhor remunerado. Foi esse setor que mais perdeu na crise. Nos EUA, esse setor atribui a responsabilidade pelo empobrecimento ao “establishment” partidário; no Brasil, ao PT; na Inglaterra, à União Europeia e à Alemanha, e por aí vai. O movimento é um só e perpassa a classe trabalhadora em todo o mundo. Esta, obviamente, por não ter um partido que eleve sua compreensão da realidade, atribui a culpa à primeira imagem ou representação do sistema que apareça. Essas “imagens” (establishment, PT, UE) são cúmplices da crise, são repulsivas e nefastas e devem ser condenadas, mas somente combatê-las é pouco e pode encobrir a luta verdadeira: a crise é do sistema capitalista, que necessita piorar as condições de vida da classe trabalhadora.
Trump é um populista-trabalhista, de forte tendência bonapartista (autoritária); é um símbolo do perigo a que a ordem bárbara, degenerada e decadente do capital nos conduz. O mesmo se dá com a ascensão do nacionalismo na Europa. Mas a esquerda que não entender que a base disso tudo é diminuição das condições de vida da classe trabalhadora não entenderá nada. A base de todo o processo não é a xenofobia, o ódio às mulheres, aos negros, aos latinos, aos gays, etc. – esses são apenas reflexos superestruturais de um processo de corte de empregos e diminuição de salários; são formas que a concorrência entre trabalhadores assume num momento de crise.
Infelizmente, de muito pouco ou nada adianta combater desemprego e rebaixamento de salários com direitos democráticos burgueses (a defesa da mera “igualdade” cidadã). Por mais importantes que sejam as passeatas “feministas” contra Trump (e não negamos sua importância), elas não pararão o processo material que dá sustentação a Trump e seus comparsas pelo resto do mundo. E estes terão mais sustentação quanto mais se aprofundar a crise econômica, e quanto mais demorar para surgir uma alternativa de esquerda consequente. O que a classe trabalhadora empobrecida necessita mundialmente, acima de tudo, mais urgente do que tudo, são passeatas unificadas contra o desemprego; são lutas sindicais contra toda demissão e contra o rebaixamento de salários.
É claro que é muito difícil organizar a classe operária — sobretudo em países como os EUA, com uma estrutura sindical totalmente controlada, policialesca ou gangsterista. E até por isso a “esquerda” vive apenas nas ruas (e não nas fábricas), fazendo passeadas por direitos humanos ou direitos democráticos burgueses. Isso é fácil: enquanto houver ruas, haverá ocupação de ruas — e as ruas existirão, pois o direito político de ir e vir é um subproduto do direito econômico burguês de troca de mercadorias, que necessita de liberdade nas ruas. Quanto maior a ditadura na fábrica, maior a liberdade nas ruas. Mas o eixo da luta de classes não é a esfera de circulação de mercadorias, e sim a de produção.
Trotsky pensou o Programa de Transição a partir da América, do mais avançado que havia no capitalismo. O operário americano não está preocupado com revolução, dizia ele, mas com a manutenção dos seus empregos e salários. Por isso são necessárias as reivindicações transitórias “escala móvel de salários” e “escala móvel das horas de trabalho”, a serem defendidas dentro das fábricas, somadas a um movimento de luta contra o desemprego fora das fábricas. Manter emprego e salário parece pouco, mas reivindicados na exata forma com que aparecem nesse Programa, levam à abertura do poder operário contra o poder do capital.
Desgraçadamente, a esquerda trotskista, brasileira e mundial, faz questão de ignorar esse programa e seguir ou com suas reivindicações adaptadas ao programa das burocracias sindicais, ou com seus programas democrático-burgueses que mal fazem cócegas no capital. Desatar um processo transitório, com um programa que amplia decisivamente as contradições com o capital, parece ser sua última preocupação. A eleição de Trump não é apenas a celebração da barbárie capitalista, mas ao mesmo tempo a celebração da falência da esquerda revolucionária em todo o mundo. A esquerda precisa ser absolutamente repensada e refundada. A nova movimentação da classe trabalhadora em nível mundial dará bases para isso.