As eleições municipais que se aproximam acontecerão sob o signo da crise, talvez até mais do que as já conturbadas eleições dos últimos anos: crise sanitária, crise política e, sobretudo, crise econômica, que arrasta milhares de trabalhadores para o desemprego e para a miséria, com mais da metade da população apta para o trabalho desocupada. Essa situação catastrófica não mudou, no essencial, as posturas dos diversos oportunistas postulantes aos cargos de prefeito ou vereador, que prometem mundos e fundos mas que por vezes não são capazes sequer de garantir que conseguirão fazer campanha sem serem declarados inelegíveis ou presos, como no caso do Rio de Janeiro, que novamente funciona como retrato da nação. A profusão das intenções de votos em nulo e branco são um grande sintoma de que, passada a onda da “nova política” das últimas eleições – “nova política” que hoje se deita prazerosamente nos braços da antiga, Bolsonaro e o centrão que o digam! –, boa parte da população segue descontente, agora tanto com Bolsonaro quanto com os seus antigos adversários. Nessas circunstâncias de crise extrema, qual papel cabe aos revolucionários nestas eleições? Defender essencialmente as mesmas propostas que os oportunistas, com a diferença de fazê-lo com alguns decibéis a mais de estridência, ou apontar um novo caminho?
Pode parecer, de um ponto de vista revolucionário, até um truísmo dizer que os revolucionários não podem vender falsas promessas para a população, que devem denunciar a farsa eleitoral, que devem chamar os trabalhadores a confiar só nas suas próprias forças, entre outras tarefas que lhes cabem em qualquer processo eleitoral, independentemente das oscilações da conjuntura. Mas basta ver os programas eleitorais da chamada “esquerda” para lembrarmo-nos de que nos tempos que correm é preciso dizer o óbvio: mudanças duradouras nas condições de vida da população não podem nunca ser conquistadas através da administração do Estado burguês e a aplicação de reformas por meio dele; as eleições são um teatro da burguesia em que todas as opções oferecidas, invariavelmente e em última análise, servirão aos desígnios desta classe; o papel dos revolucionários nos parlamentos burgueses não é o de aprovar reformas, mas denunciar a corrupção e a exploração capitalistas. Já se vão cem anos das teses do Segundo Congresso da Terceira Internacional, mas elas permanecem bastante precisas na sua caracterização do Parlamento e das reformas:
“Nas condições atuais, caracterizadas pelo arrebatamento do imperialismo, o Parlamento se transformou num instrumento de mentira, fraude, violências, destruição, de atos de ladroagem, obras do imperialismo; as reformas parlamentares, desprovidas de qualquer continuidade e estabilidade concebidas sem um plano conjunto, perderam toda importância prática para as massas trabalhadoras”.
Sendo assim, logicamente, não caberia aos revolucionários ser um apêndice dos reformistas em suas coligações eleitorais, bem como não caberia a mera agitação de reformas para a melhoria da vida da população. O papel dos revolucionários, antes pelo contrário, é utilizar o parlamento burguês tendo como objetivo derradeiro a sua destruição, bem como a destruição de todas as instituições burguesas. Diz o texto da IC que os comunistas “só podem colocar a questão da utilização das instituições governamentais burguesas tendo em vista a sua destruição. É nesse sentido, e unicamente nesse sentido, que a questão pode ser colocada”. Um mandato parlamentar somente pode ser, de forma consequente, um ponto de apoio para a atuação revolucionária fora deste se esta for pautada não pelo objetivo de administrar o Estado burguês, mas sim destruí-lo – conforme Marx já havia exposto com clareza após a experiência da Comuna de Paris e a necessidade de desenvolver mecanismos de poder paralelos ao Estado oficial. Na medida em que encara o voto não como um passo para galgar posições no Estado burguês, mas sim como uma expressão de revolta e de protesto, a agitação revolucionária nas eleições se aproxima da agitação que fazem grupos anarquistas e semi-anarquistas pelo voto nulo ou pelo boicote. A diferença em relação a essa espécie de agitação diz respeito ao devir organizativo que a esquerda revolucionária necessita oferecer: a indignação com o sistema político corrupto da burguesia precisa se converter em indignação que se traduza não apenas em palavras e em um gesto de revolta circunscrito ao período eleitoral, mas em atos, por meio de organização nos locais de trabalho.
Talvez a “esquerda” nos acuse de “anacrônicos”, por balizarmo-nos por referências tão “antiquadas” quanto o Marx maduro e a Internacional Comunista em seu período sadio. Mal sabe ela que, quando acredita estar descobrindo a pólvora, está na verdade fazendo regredir seu programa e sua atuação política para uma posição pré-marxista, jogando na lata do lixo toda uma experiência revolucionária acumulada por séculos, com valiosas lições também para a atuação nas eleições. No seu afã “inovador”, o que a “esquerda” faz, na realidade, é enxergar o mundo do ponto de vista da burguesia; por conseguinte, ela não consegue fazer nada muito melhor do que adotar o ponto de vista da burguesia também no que diz respeito à natureza e à administração do Estado burguês. O corolário disso é que, para tentar se distinguir dos reformistas ou dos oportunistas burgueses ordinários, promete fazer a mesma coisa que eles, mas em maior quantidade, de um jeito mais “radical”, de maneira análoga à sua postura no âmbito sindical, ao reivindicarem uma redução da jornada ou aumento maior do que faz a burocracia sindical, sem propor formulações móveis e transitórias que sejam qualitativamente diferentes.
De maneira coerente com essa postura, a grande reivindicação que a “esquerda” tira da cartola nas circunstâncias particulares dessas eleições é a da manutenção e/ou ampliação do auxílio-emergencial. Se há alguma novidade nessa conjuntura é que o programa da “esquerda” desta feita não tenta “radicalizar” o do PT, mas sim o do próprio Bolsonaro. Como se sabe, a popularidade de Bolsonaro cresceu durante a pandemia, apesar do saldo de milhares de mortos, e até os analistas burgueses menos perspicazes debitam esse crescimento ao auxílio: sem ele, a situação econômica calamitosa teria consequências ainda mais catastróficas, no curto prazo –a extensão da miséria da população brasileira está demonstrada no fato de pouco mais da metade de um salário mínimo significar uma inserção de dinheiro às vezes inaudita no seu bolso. Entretanto, o fato de medidas assistenciais como o Bolsa-Família já durarem há muitos anos e a miséria tenha permanecido nesses patamares assustadores, e o fato de um canalha como o presidente conseguir se capitalizar politicamente em cima de medidas como essa não leva a esquerda a refletir a contento sobre a natureza dessas propostas, mas simplesmente querer ampliá-las, consolidá-las e, porque não, capitalizar eleitoralmente em cima delas. Quem vai ter que sobreviver com R$ 600, afinal, não é ela própria, que pode inclusive aliviar sua consciência pequeno-burguesa pesada e acusar de “elitistas” os que denunciam quão irrisório é esse valor e o quanto uma medida dessas não resolve problema nenhum.
O que esse cenário deixa claro é que a mera manutenção do auxílio não é uma medida que aponta para a superação da profunda miséria brasileira, senão para a sua manutenção, em patamares que sejam suficientemente toleráveis para que as massas não morram de fome e para que o oportunista de turno aufira disso vantagens políticas e eleitorais. Ao não propor nada essencialmente diferente daquilo que Bolsonaro está propondo – e batendo cabeça para resolver –, a “esquerda” mostra, com clareza, a extensão da sua miséria programática.
A política revolucionária para a classe trabalhadora não pode ser destinar a ela meramente as misérias do banquete da burguesia: não queremos migalhas, queremos TRABALHO! Se há alguma coisa que deve ser exigida do Estado burguês, é a realização de um plano de obras públicas, para a construção de escolas, hospitais, creches e outras instalações que sejam de necessidade da população, bem como para diminuir as alarmantes taxas de desemprego, superiores a 10% já se vão cinco anos. Entretanto, nunca é demais lembrar que essa reivindicação deve ser feita, necessariamente, conjuntamente com as das escalas móveis de salário e de horas de trabalho, tarefa que cabe aos sindicatos, atuando nos locais de trabalho. As frentes públicas de trabalho são uma medida destinada a aliviar a pressão do exército de reserva sobre o salário daqueles que estão empregados e não são, por si mesmas, transitórias. Dissociadas da defesa das escalas, podem muito bem ser utilizadas por um governante burguês de turno para aliviar momentaneamente a pressão do desemprego em cima de sua popularidade, como aliás o próprio Bolsonaro planeja fazer – atitude que confirma, à sua maneira, a importância de pautar as questões de salário e emprego também na campanha eleitoral: os burgueses precisam lidar com a insatisfação das massas com o desemprego, mas não podem, por definição, resolver o problema. Cabe aos revolucionários apontar o caminho.
Convém não esquecer: em uma sociedade em que a maioria da população não tem nada de seu a não ser sua força de trabalho para vender, o desemprego é a maior tragédia pode se lhe abater. A resposta a esse problema não é o assistencialismo da “esquerda”, como nos lembra Trotsky no Programa de Transição de Trotsky:
“Sob a ameaça de sua própria degeneração, o proletariado não pode admitir a transformação de uma parte crescente dos operários em desempregados crônicos, em miseráveis vivendo das migalhas de uma sociedade em decomposição. O direito ao trabalho é o único direito sério que o operário tem numa sociedade fundada sobre a exploração. Entretanto, este direito lhe é roubado a cada passo.”
É hora de os revolucionários tirarem o Programa de Transição da gaveta e passarem a balizar a sua atuação por ele, tanto nas eleições quanto fora dela.