Nestas eleições o PSOL deverá ter, pela primeira vez, votos expressivos em várias capitais brasileiras. É preciso portanto refletir sobre a possibilidade de chegada ao poder municipal por esse partido.
Os índices de intenção de voto mostram chance real de vitória ao menos em Porto Alegre e Belém. Na primeira cidade, de acordo com pesquisa do Instituto Methodus, Luciana Genro ostenta 20,8% das intenções de voto, à frente do segundo colocado, Raul Pont (PT), com 14,5% e de Sebastião Melo (PMDB), com 13,7%. Em Belém, Edmilson Rodrigues, que já foi duas vezes prefeito quando era do PT, aparece à frente, segundo a pesquisa Doxa, com 20,5%. Em seguida vem Zenaldo Coutinho (PSDB), com 11,2%. Em outras importantes cidades o PSOL também aparece bem colocado, embora não na liderança. É o caso do Rio de Janeiro, onde Marcelo Freixo, de acordo com a Paraná Pesquisas, aparece em segundo lugar, com 13,8% das intenções de voto, atrás de Marcelo Crivella (PRB), com 33,3%. Em São Paulo, segundo a pesquisa Ibope, Luiza Erundina também aparece em segundo lugar, com cerca de 10% das intenções de voto, praticamente empatada com Marta Suplicy (PMDB) e Fernando Haddad (PT). Em primeiro lugar, na capital paulista, está Celso Russomano (PRB), com 29%. Em Sorocaba, de acordo com pesquisa do Ipeso, Raul Marcelo aparece em segundo lugar, com 15,8% das intenções de voto, atrás de Renato Amary (PMDB), com 44,9%.
Essa melhor colocação do PSOL em importantes cidades é um fenômeno que ainda não havia sido observado nas eleições municipais anteriores, diretamente vinculado às mudanças na conjuntura (falência do PT e rejeição dos candidatos com aparência abertamente burguesa). Quais poderiam ser os significados futuros, para a luta da classe trabalhadora, da chegada do PSOL ao poder em alguns municípios? Para responder a essa pergunta é preciso ver o programa que os candidatos do PSOL apresentaram nestas eleições. Tomemos como exemplo o programa de Luciana Genro, em Porto Alegre, por ser de uma das correntes mais à esquerda no partido, o Movimento de Esquerda Socialista (derivado da corrente morenista) e por ter chance real de vitória. Caso eleita, sua vitória é a que teria maiores consequências para a classe trabalhadora.
O que propõe Luciana Genro em seu programa para gerir a cidade, chamado “Compartilhar mudança, uma alternativa para Porto Alegre”? O texto pode ser acessado aqui.
O programa “Compartilhar a mudança” — seu próprio nome indica — está imbuído da preocupação com a nova importância das redes digitais na vida política (a cultura do “compartilhamento”). Mas, para além da socialização do conhecimento, potencialmente promovida pelas tecnologias digitais, o que nos aponta o texto sobre os velhos problemas da socialização do poder político real?
O programa de Luciana fala de mecanismos para aumentar a participação popular: “Enquanto o sistema político tenta circunscrever a participação popular ao momento eleitoral, a mobilização social do povo insatisfeito pode tornar a relação de forças favorável à democracia real, na qual a criação de novos poderes democráticos é essencial para a transformação do poder político”. Em outro trecho diz ainda que as mudanças que pretende “só poderão se realizar através de um processo que produza um governo popular conquistado e construído a partir de baixo”.
Todavia, apesar de parecer algo bom e radical, cabe perguntar: o que são, na prática, para Luciana “a democracia real”, os “novos poderes democráticos” ou o “governo popular conquistado e construído a partir de baixo”? O próprio texto clarifica.
É preciso, diz, criar a “rede de poder local”; “dar poder às subprefeituras”, da seguinte forma: “Os subprefeitos estarão em permanente contato e avaliação com os cidadãos através de aplicativo de celular”. É preciso melhorar os canais de contato entre o “povo” e a prefeitura: “Qualificar o serviço telefônico 156. Dar ao serviço de atendimento telefônico à população pelo número 156 … um novo status”; “o sistema deve ser modernizado, com o desenvolvimento de um aplicativo para telefonia móvel”, para se transformar num “instrumento efetivo de participação, exercício de cidadania, controle social e qualificação da gestão pública”. Deve-se, além disso, desenvolver o “programa de Controle Cidadão através da implantação de códigos QR (código de barras facilmente ativado em celulares) em cada alvará ou licença emitida pela prefeitura, através do qual a população poderá consultar…”, etc.
A única medida que desenvolve uma relativa participação popular real é a proposta de plebiscitos. Defende-se “o desenvolvimento de uma plataforma de internet na qual qualquer cidadão possa apresentar uma proposta. Se tiver apoio de 2% do eleitorado da cidade, a ideia será submetida a plebiscito e, se aprovada, será encampada pelo governo”. Não se compreende, todavia, o que significa esse “ser encampada pelo governo”. Será aprovada por decreto? Será levada à Câmara dos Vereadores?
Como pode-se notar, o processo de participação política ao qual a população de Porto Alegre é convocada é hegemonicamente por meios virtuais. Não há uma palavra sobre o incentivo à criação de comitês autônomos de trabalhadores nos locais de trabalho, nas fábricas e nos bairros.
O real intuito de Luciana Genro fica claro quando se fala dos “problemas de segurança pública”, ou seja, do problema do monopólio social da violência. A grande inovação de Luciana é a proposta de criação da “Nova Guarda Municipal”, que deve ter a seguinte função social: “atuar de forma integrada com os agentes de fiscalização do trânsito e transporte (‘azuizinhos’)”. O foco dessa nova guarda seria a “segurança viária”. Na verdade, essa guarda seria apenas uma reforma da atual guarda, que deveria, supostamente, se tornar “cidadã”, “comunitária” e “territorializada”. Como? Por meio de aplicativos de celular… Diz o texto: “A população tem se organizado por conta própria, através de grupos que utilizam aplicativos como o WhatsApp, para criar uma rede (…). Esta dinâmica cidadã precisa ser compreendida pelo Poder Público”.
Não há uma palavra sobre submeter a “Guarda Municipal” a organismos de poder autônomos da população, pelo contrário, todas propostas parecem reforçar as instituições Estatais atuais. Luciana lamenta que “no RS não dispomos sequer de um sistema de comunicação integrado entre as guardas municipais e as polícias”; lamenta que só “às vésperas da eleição municipal representantes da Guarda Municipal, Polícia Civil e Brigada Militar se reuniram para elaborar um plano estratégico”. Para não deixar dúvidas, diz de forma peremptória: “Assumimos o compromisso de investir e dinamizar a Academia de Guardas”; bem como afirma seu “pulso firme”: “A prefeitura atuará fortemente como um agente executor de políticas públicas de prevenção à violência e ao crime”. Para piorar, Luciana ainda propõe ampliar, para o âmbito municipal, o que já é feito no âmbito estadual na repressão à juventude. Não bastando as rondas escolares da Brigada Militar nas escolas estaduais, Luciana propõe que a Guarda Municipal atue nas escolas municipais. Será somente necessário “firmar um protocolo de cooperação entre a Guarda Municipal e a Secretaria Municipal de Educação”.
Ora, essa suposta “guarda municipal comunitária” de Luciana são a guarda e a polícia que já existem (e que já usam o adjetivo “comunitária”). A única diferença é que agora soma-se o funcionamento do WhatsApp.
Na verdade, no programa de Luciana há retórica de sobra. Seus organismos de “poder” são sobretudo virtuais, e não reais. É como se os grandes problemas que até hoje assolam a população trabalhadora fossem problemas técnicos, de comunicação. Luciana parece escrever um programa para gerir uma das maiores cidades do país como quem redige um programa de Centro Acadêmico ou Diretório Estudantil. Em seu texto há mais de 300 propostas (e “está em permanente construção”, afirma), para resolver cada probleminha da cidade, como tapar buraco, arrumar luz, instalar mais câmeras e alarmes, mas não há palavra sobre os problemas básicos e materiais da classe trabalhadora, a serem urgentemente resolvidos, como emprego e salário. Na verdade, o problema não é técnico, a ser resolvido por aplicativo de celular, mas é o velho problema (de mais de dois mil anos) de criação de mecanismos de democracia direta. Quanto à questão central, para o capital, a questão do monopólio da violência social, não há uma palavra que aponte para tirá-lo das mãos do Estado burguês, pelo contrário, sobram palavras pela reafirmação e fortalecimento desse poder reacionário.
O programa de Luciana Genro não é socialista. Isso fica evidente no uso frequente de termos como “público”, “cidadão”, “sociedade civil”. Esses termos são termos abstratos que a burguesia usou historicamente para lutar contra o feudalismo. São abstratos justamente porque unem a classe trabalhadora e a burguesia, e foram necessários na frente única contra o Antigo Regime (“público” vem de “povo”, que indiferencia burguês e proletário; “cidadão” faz referência aos citadinos, os habitantes da cidade, ou burgo, que lutavam unificados contra o poder feudal; “sociedade civil”, como se sabe, é uma tradução do alemão “bürgerliche Gesellschaft”, ou, literalmente, sociedade burguesa). Não à toa, a partir da década de 1830, o movimento operário e socialista da classe trabalhadora, sobretudo na França, já começou a negar todos esses termos abstratos e a fazer um recorte de classe muito claro — em vez de poder público, passou-se a falar em “poder dos trabalhadores”; em vez de “cidadãos”, passou-se a falar em “classe trabalhadora”; em vez de “sociedade civil”, passou-se a denunciar abertamente a sociedade do capital. Que significa Luciana Genro usar esses conceitos anacrônicos e ultrapassados da burguesia? Por que Luciana Genro quer fazer a inteligência humana retroceder quase 200 anos? Quem ela quer agradar com isso?
Sem dúvida, por trás de toda a retórica, Luciana na prática se mostra mansinha para o capital. Aos revolucionários não cabe, em hipótese alguma, coligar-se com um projeto desse. Caberia, no máximo, um apoio crítico e tático, na ocasião de derrotar um inimigo mais perigoso. Coligar-se com Luciana (ou seja, compor sua chapa eleitoral) significa assumir a responsabilidade por esse programa nefasto; na prática, é diluir e apagar a estratégia histórica da classe trabalhadora na luta pela sua libertação.