Transição Socialista

O “retorno” da crise de 2008

As bolsas de valores de potentes nações capitalistas registraram seu pior início de ano na história. Em apenas duas semanas, mais de 5,7 trilhões de dólares foram queimados. O Guardian, jornal da consciente burguesia britânica, repercutiu a nota do Royal Bank of Scotland aos seus clientes: “vendam tudo, exceto títulos muito seguros”. E não demorem, recomendam, pois “numa sala cheia de gente, as portas de saída nunca são grandes o suficiente”. Segundo o banco, as bolsas podem sofrer uma queda de 80% nos mercados acionistas mundiais neste ano, semelhante à que antecedeu à quebra do Lehman Brothers em 2008. Seus clientes, explica o banco, devem preocupar-se mais em ter o retorno do dinheiro investido que em lucrar. A sombra do ano de 2008 retorna como um fantasma para a burguesia, mas não só ela.

O índice geral de Xangai, o referencial do mercado chinês, acumulou perdas em duas semanas que fez sua história voltar cinco meses. O dia 04/01, o primeiro de funcionamento da bolsa chinesa em 2016, seria curiosamente o de implementação do mecanismo de “break” — paralisação do funcionamento por quinze minutos em caso de queda brusca de ações, similar à que ocorreu em agosto de 2015. E, curiosamente, já nesse primeiro dia de funcionamento tal mecanismo teve de ser acionado! A bolsa abriu em forte queda, foi suspensa por quinze minutos e, em seguida, ao ser aberta novamente, teve de ser fechada de vez graças à maior queda. Foi a chamada “segunda-feira negra”.

Após isso, dois dias de leve crescimento foram suficientes para iludir os sempre predispostos à auto-ilusão. Todavia, a lei do valor, força geral reguladora, impôs-se como a lei da gravidade, e no dia 7/01, logo após abertas as bolsas, o mecanismo de “break” foi acionado novamente. A principal bolsa chinesa teve de ser fechada de vez pouco após ter funcionado, ao todo, cerca 30 minutos num dia. O índice de Xangai registrou nesse dia mais de 7% negativos, e o de Shenzhen mais de 8% negativos.

Novos dias de queda na China: 11/01, nova “segunda-feira negra”, em que os economistas burgueses comemoraram a queda de “apenas” 5% (esperavam mais!), e a última sexta, 16/01, que registrou 3,6% negativos. Em todos esses dias as bolsas asiáticas, centralizadas pela chinesa, derrubaram as bolsas do mundo todo (inclusive a BOVESPA, que também registrou o pior início de ano).

Sabe-se que as bolsas chinesas têm por base pequenas poupanças individuais. Isso, entretanto, não deixa de transformar o valor ali negociado numa soma de capital volumosa (ainda mais em dimensão chinesa), portanto, em capital com função social fundamental para o sistema capitalista. O índice de Xangai, por exemplo, agrupa os principais bancos e as principais estatais do gigante asiático (incluindo as estatais de petróleo, cujo preço do barril virou pó). O movimento da bolsa chinesa reflete, ainda que de forma deturpada, um movimento geral do capital na Ásia, com implicações mundiais decisivas.

Não é coincidência o fato de que os EUA registraram queda na produção industrial pelo terceiro mês consecutivo em dezembro do último ano. O receio da recessão econômica — tecnicamente registrada, do ponto de vista econômico-burguês, após sequência de três trimestres negativos — paira novamente sobre a principal economia do planeta. Após seis anos da chamada “recuperação” na economia capitalista central, que estaria “salvando” o mundo burguês da bancarrota, retorna o desespero diante de um possível abismo. A maioria dos dados dos EUA registram um retorno aos patamares de 2008. O desemprego retorna avassaladoramente. Na Europa, apesar dos ajustes fiscais draconianos, o crescimento do PIB se mostra pífio — menos de 2% —,e as bolsas europeias entram no que os agentes de mercado chamam de “território do urso” (um nível cerca de 20% abaixo do registrado há um ano atrás). Os tais “emergentes”, sobretudo Rússia e Brasil, estão em grave recessão, acumulando enorme retração (e demissões), sobretudo na indústria.

Na verdade, países como a China ficaram impossibilitados de produzir e importar ao resto do mundo (por sua vez, incapaz de consumir de forma estruturada). A projeção oficial do PIB chinês para este ano é de 7%. Isso, por si só, representaria o menor crescimento da riqueza produzida no país asiático nos últimos 25 anos. Representaria, caso os dados chineses fossem con fiáveis. Agências estrangeiras e mesmo internas à China projetam crescimento de cerca de 4% para este ano. E apesar do prospectado crescimento no PIB, os relatórios do índice Caixin revelam que o emprego fabril na China está em queda há 25 meses. O índice de desenvolvimento manufatureiro chinês (PMI) registrou 49,7% em novembro e, em dezembro, 48,6%. Abaixo dos 50% esse índice indica uma contração na indústria. Ou seja, há pelo menos dois meses a indústria chinesa pode estar registrando retração.

É verdade que não cabe analisar uma economia, em última instância, a partir do subir e descer dos seus números. Tais são fenômenos, que, essencializados, ganhando vida, turvam a análise. A bolsa não sobe, nem desce, assim como não sobe nem desce a inflação, nem o PIB. Menos ainda o “mercado” fica deprimido. Trata-se de relações sociais entre homens, ou, propriamente, entre classes, determinadas por formas de apropriação das forças produtivas sociais. Não cabe fazer fetiche como os economistas burgueses. O que se passa é uma crise global do capital enquanto capital, graças a um limite que este impôs objetivamente à sua própria expansão. “A sociedade tem civilização demais, meios de produção demais, indústria demais, comércio demais”, diziam Marx e Engels no Manifesto. Assiste-se na China, por exemplo, ao aumento no desemprego na classe operária, a centenas de gigantescos prédios abandonados, faraônicas obras semi-concluídas, rodovias que levam a lugar nenhum, portentosas engenhocas de infraestrutura sub-utilizadas. A “sociedade” tem forças produtivas demais para o capital. O sistema capitalista, em escala global, não consegue produzir e realizar sua capacidade produtiva sem apontar para um ultrapassamento dos seus próprios limites. O sistema capitalista é a barreira do sistema capitalista. A crise do capital é o capital.

Vemos agora a crise de 2008 colocar novamente sua cabeça para fora da terra. A suposta saída de tal crise, marcada sobretudo por políticas de facilitação monetária, era uma farsa que cedo ou tarde se revelaria. Houve uma expansão de crédito em diversos países, sobretudo nos EUA, entretanto não acompanhada de uma estruturação e crescimento na economia real, como revelam os dados sobre a indústria norte-americana. Houve destruição de forças produtivas — a começar pela mais valiosa, a força de trabalho, com a demissão de mais de 20 milhões de operários em todo o mundo — e ajuste fiscal, mas não propriamente reerguimento real. O suposto reaquecimento econômico foi insuficiente para reestabelecer um patamar capaz de reerguer a economia mundial. A ascensão dos “BRICS” ou supostos “emergentes” foi um capítulo da novela da crise, que logo se esgotou. Em todo o mundo o processo de suposto contorno da falência econômica levou à maior concentração da riqueza nas mãos de poucos e ao aumento da expropriação e exploração da classe trabalhadora; bem como — fica claro agora —, à maior incapacidade de contornar a própria crise, que retorna com mais violência e em maior escala.

Mas quem retorna, na verdade, é a crise estrutural do capital. A rigor, não há “crise de 2008”; há a crise sistêmica capitalista, desde que as relações de propriedade capitalistas se tornaram objetivamente um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas criadas pelo capitalismo. Como apontou corretamente Trotsky (em polêmica com Kondratiev na década de 1920 do séc. XX), não há hoje no capitalismo de forma independente ciclos de crise — curtos ou longos —, mas uma tendência geral (uma “curva”) de declínio do sistema, constituída por ciclos interligados onde os períodos de destruição de forças produtivas ultrapassam em tamanho os períodos de (re)construção. Só é possível entender o que se passa considerando-se a relação entre esses “ciclos”. Nesse sentido, Trotsky apenas seguia Marx e seus apontamentos sobre a queda tendencial da taxa de lucro.

Isso é fundamental para se compreender a tendência declinante do sistema capitalista (e revela porque Kondratiev, contra Marx e Trotsky, foi apropriado por ideólogos burgueses ou intelectuais conciliadores com a ordem burguesia), mas não apenas por isso. Isso é importante porque ressalta a noção de uma “tendência”, ou de uma “lei tendencial”, como queria Marx. Uma lei tendencial não compreende uma teoria da catástrofe iminente, mas um processo recheado de contra-tendências, que podem atenuar a tendência, mudar sua velocidade, sem negá-la absolutamente. Assim, desde que a contradição fundamental entre relações de produção e forças produtivas burguesas se impôs, a crise estrutural do sistema se manifesta, se esconde, e se manifesta novamente, em escala ampliada, conduzindo aos poucos, muitas vezes quase imperceptivelmente, à barbárie, dentro da qual em certa medida já vivemos.

O capitalismo consegue contornar a contradição fundamental apenas pela destruição de foças produtivas, o que permite temporária reconstrução e dá aparência de sobrevida ao sistema. A enorme destruição na Primeira Guerra Mundial permitiu os “anos dourados” que, entretanto, conduziram à crise de 1929. Esta, à depressão dos anos 1930 e à Segunda Guerra Mundial, destruição concentrada jamais vista de forças produtivas. Sua reconstrução deu fôlego ao capital até ao final dos anos 1960 e início dos anos 1970. A abertura da China ao capital na metade da década de 1970, bem como de todos os países do Bloco Soviético ao final dos anos 1980 e início de 1990, deram novo e fundamental fôlego ao sistema. A manifestação da crise em 2007/2008 foi o registro do esgotamento desses bolsões de respiro para o capital. É por isso que o capital promove, acentuadamente, desde meados dos anos 2000, guerras em diversos pontos do planeta, sobretudo no Oriente Médio e África. Tais guerras, entretanto, além de também serem insuficientes para a necessidade do capital, incendeiam o mundo em conflitos cada vez mais amplos e complexos, que não apontam qualquer saída.

O que o retorno agudo da crise guarda hoje para a classe trabalhadora? Sabe-se que a sabedoria chinesa expressa a noção de crise por dois ideogramas: um é referente à ideia de “risco”, o outro à de “oportunidade”.