O difícil é compreender o caráter contraditório do movimento. Este provém em parte do caráter também contraditório dos transportes enquanto processo de produção que se dá dentro da esfera da circulação (Marx, O Capital, Livro II, seção I, caps. I e VI), algo que boa parte da esquerda ignora (considerando apenas como trabalho na esfera da circulação de mercadorias). Transporte é uma indústria fundamental. O movimento comprovou o peso decisivo da indústria sobre o conjunto da economia. A verdade é que a paralisação de um único ramo de indústria pára toda a sociedade imediatamente ou no médio prazo (a depender do setor). Não seria outra coisa se parassem por mais tempo os petroleiros ou mesmo os metalúrgicos.
Em apenas 3 dias os caminhoneiros fizeram ir pelos ares toda a lenga-lenga de décadas de professores de academia, que “teorizam” sobre o fim da indústria. Os “brutos” caminhoneiros deram uma verdadeira aula e de quebra botaram fogo em bibliotecas inteiras de futilidades acadêmicas. A propósito, a movimentação também jogou por terra o discurso pós-moderno culturalizante de nossa “esquerda” adaptada à new-left norte-americana, bem como, ainda, revelou a ausência de sentido das estratégias de construção partidária de grupos focados em público pequeno-burguês enriquecido ou em proletários de categorias da superestrutura do modo de produção capitalista.
Mas passemos ao problema complexo. Os caminhoneiros — bem como todos os trabalhadores da indústria do transporte, seja no chamado departamento I, produtor de meios de produção, seja no II, produtor de meios de subsistência — produzem a mercadoria transporte, que não é tangível, que se realiza no próprio ato de trabalho. É a única mercadoria cuja produção coincide com o consumo. Se não se compreende isso, não se compreende os trabalhadores desse setor como produtivos. Pode-se confundir eles, por exemplo, com os improdutivos propriamente da circulação (bancários, parte dos “serviços” e funcionários públicos). Se não se considera essa possibilidade de haver trabalhadores produtivos dentro da esfera da circulação, não se considera também — o que é fundamental para o problema agora colocado — a possibilidade de haver pequenos-burgueses dentro desse ramo específico. Ou seja: pessoas que trabalham para ali criar valor e assim tirar seu próprio sustento. Seu trabalho produtivo (para si, não para o capital) garante-lhe a auto-subsistência.
Ao não se compreender essa possibilidade, pode-se achar que todos os que trabalham nesse setor são trabalhadores. Na verdade, estamos brincando com as palavras. Se trabalham, como não seriam trabalhadores? São trabalhadores, evidentemente, num sentido amplo (de produtores diretos), mas não são propriamente proletários ou operários no sentido estrito. Eis a verdadeira dicotomia. Os proletários vendem a sua força de trabalho, mas os pequenos-burgueses vendem o seu “trabalho” (ou, mais propriamente, o produto de seu trabalho: nesse caso específico, a mercadoria transporte produzida por eles mesmos). No caso dos caminhoneiros proprietários dos próprios caminhões, o produto de seu trabalho lhes pertence (porque o meio de produção lhes pertence), e fazem o que querem com ele. No caso dos trabalhadores, motoristas que vendem sua força de trabalho, o produto de seu trabalho não lhes pertence, mas sim ao capitalista (porque o meio de produção pertence a este).
Os caminhoneiros autônomos, mesmo quando submetidos a uma grande transportadora, não vendem a elas a sua força de trabalho, e por isso não são propriamente (objetivamente) proletários. Eles cedem a essas transportadoras parte do valor que produzem ao trabalhar seus próprios meios de produção; são obrigados a passar, numa espécie de tributo, a essas grandes empresas, parte do que ganhariam com o produto transporte que criam, cujo valor seria sobretudo voltado à sua subsistência e de sua família. Eles fazem isso porque hoje dependem dessas grandes transportadoras para viver, e dependem pois sem elas não teriam acesso a boa parte das suas próprias possibilidades de trabalho e subsistência. Seu meio de produção pararia. Assim, devido a tudo isso, não há propriamente troca (nem na aparência, como ocorre com a força de trabalho), mas parasitismo direto da transportadora sobre o “autônomo”. Essa relação de dependência faz com que os autônomos tenham de pagar às transportadoras um tributo (em geral de 40% do valor total do “frete”, a categoria empírica que grosso modo encobre o valor que a indústria de transporte produz), tributo cujo estatuto social é jurídico (acordo), relativamente arbitrário, nesse caso definido pela relação de forças entre a pequena-burguesia e a grande burguesia. É devido a tudo isso que tais pequenos-burgueses são propriamente oprimidos pelos grandes capitalistas e colocados diante do abismo da miséria e do risco da proletarização. Essa condição de opressão pelo capital permite a frente de luta desse setor junto com o proletariado.
Vale uma ressalva: quando falamos que tais setores são pequeno-burgueses, devemos cuidar para não colar neles a pecha que usualmente atribuímos a outros com essas palavras. Não é uma questão moral. Pequeno-burguês não é necessariamente sinônimo de “engomadinho”, “almofadinha”, “bom-mocinho”, “conciliador”, “centrista” etc. Material e abstratamente, significa um setor que vive do próprio trabalho e, por isso, se vê acima das classes fundamentais em luta na sociedade capitalista. Mas, obviamente, a pequena burguesia tem muitas franjas, e os caminhoneiros autônomos (que também têm franjas internas), estão entre as mais baixas. É um pouco como quando discute-se a questão das divisões internas dos camponeses na tradição marxista. Há os ricos e os pobres. Ao chamar os camponeses pobres de “pequenos-burgueses”, referimo-nos a uma classe social que, do ponto de vista material, é alheia ao proletariado e tem objetivos diferentes dos dele. Isso não significa necessariamente que ela tenha condições de vida melhores do que as do proletariado, pelo contrário: muitas vezes tem condições piores do que a média proletária e tende à proletarização. Pensemos mais uma vez na extrema penúria dos camponeses pobres. A questão, para o marxismo, sempre foi a de criar a divisão na pequena-burguesia e trazer o setor pobre para o lado do proletariado.
O movimento atual se iniciou, como comentamos, a partir dos setores mais baixos dos caminhoneiros: conjuntamente por autônomos e pequenos empresários, donos de pequenas frotas. É isso que permite dizer que o movimento teve uma gênese, um impulso inicial, progressista. O movimento se iniciou por setores esmagados pelo preço do diesel, que não viram outra forma de responder a esse aumento senão criando um inimigo comum responsável pelo aumento — o governo. A rigor, é a única forma de realizar uma unidade geral dessa suposta “categoria”, dado que ela é, tal como configurada hoje, internamente contraditória. Ela exterioriza a sua própria contradição interna voltando-a como unidade contraditória contra o governo.
O correto (idealmente falando) seria levar a contradição para dentro da própria suposta categoria, separando primeiramente os proletários dos proprietários (por meio de reivindicações salariais) e arrastando os pequenos proprietários para o lado do proletariado. Para isso, seria necessária uma reivindicação salarial entre os caminhoneiros (proletários) das médias e grandes empresas, que acoplasse a si a reivindicação de diminuição da porcentagem do frete dos autônomos que fica na mão das grandes transportadoras. Não se trata de aumentar o frete, como parte dos caminhoneiros intentou exigir — isso seria irrealizável, pois atenta contra a própria teoria do valor-trabalho. Também não se trata de criar um “frete mínimo”, como alguns esboçaram. Trata-se de diminuir a porcentagem do frete (40%) que fica na mão das grandes transportadoras.
Em nossa tradição, trotskista, cabe colocar exatamente assim a questão: o correto seria a vanguarda operária, internamente à categoria de motoristas, reivindicar escala móvel de salários e, ao mesmo tempo, diminuição da porcentagem do frete dos autônomos que fica com as grandes transportadoras. Em vez de focar no diesel, ou seja, na reivindicação que aproxima os pequenos-burgueses dos grandes burgueses e ao mesmo tempo afasta ambos do proletariado, caberia focar na reivindicação que une proletários e pequenos-proprietários contra os grandes empresários.
Todavia, por mais que a questão do frete apareça, ela ficou subordinada ao problema do diesel, o que prova que houve hegemonia do setor proprietário dentro do movimento. A cuia, infelizmente, dentro do movimento, tendeu a separar os proprietários dos proletários.
Tudo isso, entretanto, como escrevemos em texto passado, não nos deve impedir de apoiar o movimento tal como nasceu e graças às contradições que abriu externamente a si. Não há mundo ideal (como sempre!). Nosso apoio foi crítico devido às questões colocadas acima. Mas mesmo assim foi convicto de que esse movimento inicial, despertado pelos setores proprietários mais empobrecidos ou deparados com o abismo da miséria, era progressista e tinha reverberação externa diretamente no conjunto do proletariado nacional. Afinal, trata-se de um protesto de setores próximos do proletariado ou ameaçados de serem jogados na condição de proletários do dia para a noite; trata-se em suma de um protesto contra a miséria capitalista. Há por isso uma corrente elétrica comum que transpassa a pequena-burguesia empobrecida e o proletariado. O grito de revolta do caminhoneiro é ouvido e entendido muito bem pelos proletários.
Além disso, e não menos importante, os caminhoneiros aparecem como uma força social contra um governo odiado pela população toda. Isso faz com que as simpatias aumentem. Por fim, mas não menos importante, há um apoio popular devido a certa ingenuidade a respeito da possibilidade de o movimento fazer baixar o preço das mercadorias em geral, bem como da gasolina dos veículos. Isso é relativamente irracional, mas também fez com que a classe trabalhadora olhasse o movimento com simpatia e senso de oportunidade.
É por isso que algumas categorias já tentam se mover. Os petroleiros ameaçam entrar em greve, bem como os estivadores do porto de Santos. Isso deve ser louvado e agitado como caminho a ser seguido (ainda que esses movimentos também tenham suas limitações).
Há sempre risco de o senso de oportunidade virar senso de oportunismo. Um bom exemplo é a FUP, Federação Única dos Petroleiros. Em vez de anunciar uma política propriamente proletária, capaz de dirigir os pequenos-burgueses que hoje fazem barulho dentro da indústria do transporte, a FUP (e com apoio da FNP!) anuncia uma pauta de greve pequeno-burguesa, capaz de aprofundar a separação entre burgueses e pequenos-burgueses, de um lado, e operários de outro.
O site da FUP diz o seguinte:
“A Federação Única dos Petroleiros (FUP) e seus sindicatos filiados convocam a categoria petroleira para uma greve nacional de advertência de 72 horas. Os trabalhadores do Sistema Petrobrás iniciarão o movimento a partir do primeiro minuto de quarta-feira, 30 de maio, para baixar os preços do gás de cozinha e dos combustíveis, contra a privatização da empresa e pela saída imediata do presidente Pedro Parente, que, com o aval do governo Michel Temer, mergulhou o país numa crise sem precedentes.”
Em vez de aproveitar a situação para iniciar uma luta proletária por salários e melhores condições de trabalho — lutas que, na condição do governo de joelhos, teriam vitória e dariam um grande exemplo à classe trabalhadora nacional —, a FUP usa de forma populista a pauta do preço do gás e dos combustíveis (e o fantasma da privatização) unicamente para derrubar o presidente da empresa, Pedro Parente. Ela busca assim recolocar parte de seus cupinchas da CUT à frente da administração da empresa, visando a atender interesses materiais.
A FUP quer que volte a política anterior da Petrobras, dirigida por Dilma Roussef, tão nefasta para a Petrobras quanto a política de Pedro Parente. Obviamente, o subsídio de Dilma ao gás de cozinha e aos combustíveis teria de ser repassado à população em algum momento, como foi. A FUP e seus apoiadores pequenos-burgueses sonham com a utopia da existência de uma grande empresa capitalista dentro do mercado internacional vivendo alheia às leis do mesmo mercado internacional capitalista, no mundo imaginário da nação burguesa isolada.
Tal política faz os operários assumirem um ponto de vista pequeno-burguês, de gestão da empresa para os interesses “nacionais”. Caberia aos operários lutar para vender os produtos da empresa de acordo com o preço de custo (chamado por eles erroneamente de “preço de produção”) para subsidiar o consumo nacional. Entre o consumo doméstico, obviamente, estaria o consumo produtivo das empresas capitalistas e o consumo de subsistência de burgueses, pequenos-burgueses e proletários. Assim desenvolve-se o mito de que uma empresa do tamanho da Petrobras, inserida no mercado mundial, poderia atender às necessidades de uma abstrata nação (que é capitalista, diga-se de passagem) e atender ao abstrato “povo” (que é composto por classes diferentes). Essa política não é proletária. O que cabe não é lutar por uma gestão “humanitária” da Petrobras, mas fazer greve por empregos e salários, de um ponto de vista dialético-transitório (ou seja, de acordo com o Programa de Transição de Trotsky).
A gênese dessa política nacionalista pequeno-burguesa está exatamente no stalinismo que tomou conta do PCB ao final da década de 1920 para impedir a revolução proletária brasileira. Em nome da aliança com um suposto setor progressista da burguesia brasileira, desenvolveu uma série de políticas supostamente nacional-desenvolvimentistas, de combate ao atraso, ao “colonialismo”, à “dependência” (e nunca pela revolução socialista brasileira!). O veneno nacionalista contaminou e contamina toda a “esquerda” brasileira até hoje.
Apesar de todos esses erros e oportunismo das direções sindicais dos petroleiros, é preciso saudar o movimento grevista dentro desta conjuntura, com a esperança de que o próprio movimento real da classe trabalhadora possa superar as limitações de suas direções.