Este é o nosso quinto texto de crítica ao programa apresentado pelo PSTU para debate no Polo Socialista. Veja os nossos quatro primeiros textos aqui. O texto do programa do PSTU, por sua vez, pode ser encontrado aqui.
Em seu documento de programa, após adaptar-se às reivindicações usuais do movimento sindical (burocracias sindicais), o PSTU dá a entender que a sua perspectiva política geral é o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). O texto, a nosso ver, apresenta uma concepção superficial ou ingênua do que significam os serviços públicos sob o capitalismo.
O documento afirma: “Os serviços púbicos [sic] são partes fundamentais da qualidade de vida da população, e têm sido precarizados e sucateados conscientemente pelos planos neoliberais. A burguesia, ao contrário, pode pagar por esses serviços, sendo uma enorme demonstração da desigualdade. Nós propomos inverter essa lógica, assegurando serviços públicos gratuitos e de qualidade” [página 12].
À frente, complementa-se: “A nossa proposta é a completa estatização da saúde, com a expropriação dos hospitais e grupos privados de saúde. Junto com isso, o aumento das verbas para a saúde, acabando com o sucateamento do SUS e os baixos salários dos profissionais” [página 13]. O mesmo vale para a área da Educação: “Nós defendemos uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos, em todos os níveis do fundamental as [sic] universidades. Defendemos o aumento das verbas para a educação” [página 13].
Tratando do SUS sob a pandemia, o texto ainda afirma: “O sistema chegou ao colapso em vários estados, sem vagas de UTIs, sem oxigênio e anestésicos. Seria muito pior se não houvesse o SUS, uma conquista do povo brasileiro, que vem sendo detonada por décadas de planos neoliberais” [página 13].
Certamente, seria muito pior se, pouco antes da pandemia, o SUS tivesse simplesmente desaparecido. Todavia, com esse tipo de argumento – colado ao imediato – apaga-se a compreensão da função dos serviços públicos sob os Estados capitalistas desenvolvidos. Será mesmo que o SUS é uma conquista do “povo brasileiro” (classe trabalhadora)?
O valor da força de trabalho (que dá base a seu preço, ou seja, ao salário) não é determinado arbitrariamente. É certo que ele se altera de país para país, de cultura para cultura, de época para época, com base em diversas variáveis particulares (ver O Capital, livro 1, cap. XX). Entretanto, seu conceito geral – a determinação pelas mercadorias necessárias à reprodução da força de trabalho – não se altera.
Sob um Estado de Bem-Estar social, parte das mercadorias que compõem o valor da força de trabalho é financiada pelo Estado (ou seja, é “socializada”, sobretudo entre a classe capitalista). Assim, tais “serviços” (Saúde, Educação etc.) deixam de ser mercadoria, deixam de compor o valor da força de trabalho. Sob o Estado de Bem-Estar, portanto, esse valor pode ser diminuído, permitindo consequentemente a diminuição dos salários (o que não significa, em tal caso, piora nas condições de vida dos trabalhadores).
À classe capitalista, nada de significativo muda. A sua mais-valia será limitada da mesma forma, seja pelo aumento de impostos (que são uma dedução da mais-valia), seja pelo aumento do valor da força de trabalho. Isto é: à classe capitalista cabe decidir se descontará de sua mais-valia, na forma de impostos, parte do valor que compõe a força de trabalho, ou se descontará de sua mais-valia, na forma de salários, o que repassa diretamente aos trabalhadores. É um problema genuinamente dos capitalistas.
O “segredo” dos Estados de Bem-Estar Social não está na maior arrecadação de impostos, taxações sobre fortunas etc., mas na alta produtividade das economias nacionais que os levaram adiante. O “segredo” dos Estados de Bem-Estar social é a mais-valia relativa – o alto grau de exploração da classe trabalhadora em economias de ponta. A isso somam-se, como elementos secundários, traços culturais e históricos.
Se o SUS desaparecesse – para mantermos o exemplo acima –, a classe trabalhadora brasileira seria levada processualmente à luta pelo aumento dos salários, pois os gastos acrescidos com Saúde seriam um componente do novo valor da sua força de trabalho. Com um salário um pouco maior, a classe trabalhadora poderia pagar hospitais privados (certamente, tão precários quanto o SUS).
Não cabe desenvolver em detalhes aqui, mas o Estado de Bem-Estar Social tem funções bem determinadas na economia capitalista. Por exemplo: ajuda a reduzir os custos de reprodução da força de trabalho (na medida em que são parcialmente socializados entre a classe capitalista); aumenta a produtividade das economias capitalistas (na medida em que atua pela qualificação da mão de obra, algo bastante custoso, que requer “socialização”); ajuda a disciplinar a classe trabalhadora (alguém só recebe seguro-desemprego, por exemplo, sob a condição de ter trabalhado antes. Igualmente, só recebe aposentadoria sob a condição de ter “contribuído”, ou seja, de ter sido explorado durante anos. Sua pensão muda de acordo com o tempo de “contribuição”); ajuda a manter a superpopulação relativa (exercito industrial de reserva) à disposição do capital, a ser utilizada nos momentos necessários do ciclo econômico; ajuda a aliviar ou suavizar choques cíclicos de crises, pois estas não lançam massas humanas na miséria em forma tão repentina, impactando rapidamente o consumo social; etc. (ver, quanto a esses temas, as obras clássicas de James O’Connor e Ian Gough, das décadas de 1970 e 1980).
O Estado de Bem-Estar ajuda a manter a qualidade da força de trabalho? Certamente, assim como fez a diminuição legal da jornada de trabalho nos séculos XIX e XX. Mas isso ocorre apenas para que a força de trabalho se mantenha à disposição do conjunto da classe capitalista, para ser explorada. Mesmo tendo elogiado a diminuição da jornada de trabalho, Marx, como vimos, nunca deixou de apontar como a exploração capitalista se mantinha e se ampliava sob a jornada diminuída. É o mínimo que se espera de marxistas: que descrevam o caráter contraditório da realidade.
Nenhuma dessas contradições, entretanto, é notada pelo PSTU, que mantém uma apologia acrítica de tudo o que é estatal (como se o estatal fosse sinônimo de alguma transição ao socialismo).
Desaparecendo a compreensão dos mecanismos de funcionamento do capitalismo – por exemplo, o que é valor da força de trabalho, o que é mais-valia, o que é dinheiro –, desaparece a compreensão da exploração capitalista. A discussão vira superficial, como a de saber quem colocará mais ou menos “verbas” aqui ou ali (e, para isso, romperá mais ou menos com a “dívida” do “imperialismo”). Não à toa, no exato processo em que desaparecem os conceitos marxistas, o próprio termo “capitalismo” desaparece e – assumindo um tom claramente social-democrata – o texto demoniza o “neoliberalismo”, os “planos neoliberais” etc.