Transição Socialista

Trump e o dilema da esquerda mundial

Tanto as análises dos meios de comunicação de grupos burgueses quanto as da maioria das organizações da esquerda socialista já esclareceram, até a exaustão, que Trump conseguiu canalizar o descontentamento de uma expressiva camada da população trabalhadora norte-americana, descontente com as guerras dirigidas por seu país; descontente com o fechamento de fábricas e sua transferência para outros países; descontente, acima de tudo, com a queda acelerada de seu nível de vida nas últimas décadas.

Em menor número, alguns desses analistas também destacaram que a vitória de Trump significa uma quebra da lógica bipartidária que domina a política norte-americana. Destacou-se que Trump é o outsider, eleito contra a vontade de seu próprio partido e contra o establishment financeiro-midiático norte-americano.

Comentou-se, em grau muito menor, que esse fenômeno de quebra do sistema político burguês estabelecido é mundial; pode ser observado em vários países da Europa e no Brasil, e é resultado direto da crise capitalista que se manifestou em 2008. Assim, conclui-se, nessas poucas análises, que a crise de 2008 abre hoje um novo estágio na política mundial.

O que não se trabalhou ainda, nos parece, é o significado mais profundo do que está sendo negado por este novo estágio político mundial. Nega-se, evidentemente, o estágio anterior – mas o que ele significa? No caso dos EUA, não se trata de uma mera “negação do bipartidarismo”. Este domina o país desde a metade do século XIX e tem, em seu interior, diversas fases diferentes de estruturação. Na verdade, nega-se uma forma particular de manutenção do bipartidarismo estadunidense, que começou a se estabelecer na segunda metade da década de 1980 e se consolidou nos anos 1990, cuja expressão maior foram as famílias Bush e Clinton.

Lembremos: após a eleição e presidência de George Bush (pai), a partir de 1989, vieram os oito anos de presidência de Bill Clinton. Em seguida, oito anos de Bush filho. Obama foi a trégua, que durou oito anos, e em seguida possivelmente retornariam uma Clinton (Hillary) ou um Bush (Jeb, governador da Flórida, que perdeu nas prévias republicanas).

O que deve ser ressaltado é o significado da data: Bush pai foi eleito em 1989 e o estágio político atual estabeleceu-se na primeira metade da década de 1990. Trata-se de um estágio fundado sobre as consequências políticas e econômicas da queda da URSS. O que chega ao fim é a ideia cuja expressão teórica mais clara foi – ninguém se cansa de lembrar – Francis Fukuyama: a tese do fim da história. Segundo esta, a luta de classes teria acabado com a queda da URSS. Tratar-se-ia de pensar a diferença, e não a contradição.

Não é à toa que as análises da maioria da esquerda, mesmo a socialista, se atêm, em geral, aos limites das análises dos setores burgueses. Seu choque diante da eleição de Trump é similar; sua tentativa de explicação do desastre é similar; seu limite conceitual é próximo. Na verdade, com o fim deste estágio político não acaba apenas o mundo burguês conforme a burguesia estava acostumada e tranquila, sobre o qual era capaz de fazer previsões: acaba também o mundo da esquerda atual. Cabe, particularmente, falar disso.

Afinal, a esquerda não despendeu a maioria dos seus esforços, nas últimas duas décadas, ao menos, na inclusão da diferença; no estabelecimento de políticas “positivas”? Do dia para a noite ela viu, perplexa, irem para o lixo todos os seus esforços multiculturalistas. Como explicar isso? A onda conservadora, da classe trabalhadora branca, dizem, aparece agora como força inexorável.

Essa esquerda, que se formou no começo da década de 1990, tem uma dupla gênese política: de um lado, são setores próximos da antiga burocracia soviética; de outro, setores mais ou menos críticos a esta burocracia. Ambos sentiram a necessidade de se adaptar à “esquerda” do status quo burguês, à esquerda do partido da ordem. Por que o fizeram?

Os que giravam, em maior ou menor grau, em torno da burocracia soviética, se adaptaram rapidamente porque dependiam materialmente da fonte de poder proveniente de algum Estado. Eram não só os comunistas e os eurocomunistas, mas também muitos social-democratas e antigos socialistas. Na ausência do “socialismo real”, tratava-se de se adaptar, muito pragmaticamente, às possibilidades reais das “forças progressistas”. Para tais setores políticos, mudar sua política “socialista” burocrática ou reformista para a da mera inclusão das “diferenças”, via parlamento burguês, era um passo pequeno. O socialista Bernie Sanders é apenas um exemplo disso.

Os que advieram de uma crítica do stalinismo adaptavam-se desde o final da década de 1960 à lógica da diferença, em detrimento do marxismo revolucionário (trotskismo). Afinal, a onda de 1968 foi também, em certo sentido, uma revolta contra as limitações do stalinismo. O renascimento do anarquismo ao final da década de 1960, bem como, no mesmo período, o fortalecimento de concepções teóricas de matriz sociológica e antropológica (ditas depois pós-estruturalistas ou “pós-modernas”), têm muito a ver com uma revolta contra as limitações grosseiras e repulsivas do stalinismo, que tanto infamou o marxismo. Boa parte da esquerda, mesmo trotskista, adaptou-se à revolta “libertária” da pequena burguesia contra o stalinismo, estabelecendo um ecletismo entre suas antigas posições, de classe, e posições multiculturalistas, de essencialização de minorias em países de capitalismo avançado.

Foi da junção dessas duas esquerdas que se criou, aos poucos, o senso comum da esquerda após a queda da URSS, a esquerda da década de 1990 e dos anos 2000. No fundo, admitia-se (sem o dizer) a tese de que a história teria acabado, bem como os conflitos de classe. O socialismo seria na prática impossível e tratar-se-ia de dar, cada vez mais, espaço às lutas minoritárias, em detrimento das reivindicações da classe trabalhadora por emprego e salário. O reformismo burguês mais pragmático tornou-se, conjuntamente com as teorias dos anos 1960, parte significativa da ideologia burguesa dominante. Todavia, comprovam as eleições americanas, a luta de classes ainda existe e a classe trabalhadora teve sua renda achatada decisivamente nestas últimas décadas. A luta de classes retornou, e a esquerda ainda não consegue compreender esse fenômeno, seja nos EUA ou no Brasil.

Particularmente para nós, brasileiros, a eleição de Trump pode ser pensada na relação com a de João Dória em São Paulo e a de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Trata-se de um mesmo fenômeno: a ascensão de aventureiros burgueses, da pior espécie, numa conjuntura de crise econômica grave e falência absoluta da esquerda. A maioria da classe operária ou dos proletários das periferias de São Paulo ou do Rio de Janeiro não se identifica nem pode se identificar com Fernando Haddad (PT) ou Marcelo Freixo (PSOL); não se identifica com suas figuras, com suas imagens, com seus discursos de paz, amor, direitos humanos, e outras concepções que advêm, muito mais, da pequena-burguesia. A classe trabalhadora (e operária), quando votou – pois em todas essas eleições o não-voto foi recorde –, votou naqueles que, aparentemente, lhe daria melhor chance de conservação de seu nível de vida (ainda que isso fosse falso).

É verdade que a eleição de Trump significa a barbárie capitalista e é parte de um processo grave de fechamento nacional das economias; de maior guerra cambial, etc. Mas sua eleição também significa que parte significativa da população trabalhadora mundial procura um caminho, uma alternativa, e não a encontra. A eleição significa a falência absoluta da esquerda que perdeu, num processo histórico, qualquer identidade de classe com a classe operária; essa esquerda que nem mesmo sabe falar mais de defesa e manutenção dos empregos e salários. A esquerda mundial está num dilema; num impasse.

Curiosamente, a eleição de Trump confirma também – embora negativamente – que o trotskismo revolucionário, expresso no programa da IV Internacional, o Programa de Transição, foi durante todo pós-guerra e continua a ser o único programa coerente de alternativa ao stalinismo e de superação do capitalismo. A nova conjuntura, de abertura da luta de classes em nível mundial e falência absoluta da “esquerda”, coloca como tarefa fundamental a construção das organizações revolucionárias, estreitamente vinculadas à classe operária, armadas do programa dialético de negação do presente e da barbárie capitalistas, cujo potencial explosivo são as reivindicações transitórias que partem da manutenção dos empregos e salários da classe operária.