Transição Socialista

Estaria Bolsonaro se preparando para renunciar?


“Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos (…). Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. (…) Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã.”

Essa não é a carta de renúncia de Bolsonaro. Mas poderia ser. É trecho da famosa carta de renúncia de Jânio Quadros, de agosto de 1961.

O espantoso decreto de Bolsonaro pelo porte de armas, promulgado na última terça-feira (07/05), deixou uma nova reflexão no ar: não estaria o presidente se preparando para cair?

Até ontem achávamos que Bolsonaro fazia das suas traquinagens apenas para manter aquecida a militância histérica (aquele setor delirante que o considera um mito, e não o grosso que votou nele só para tirar o PT). Agora começamos a nos questionar se o intuito do presidente não é o de “sair por cima”.

O decreto do porte de armas apareceu como um verdadeiro absurdo. Ele amplia o porte a cerca de 19 milhões de pessoas; amplia a compra de cartuchos de cinquenta para mil; permite a civis a utilização de armas antes apenas limitadas às forças armadas; não constou na campanha de Bolsonaro (que tratava da posse, e não do porte); ignora que a maioria da população, segundo pesquisas, é contra a expansão da posse (e que dirá do porte!) etc.

Mas não é só um absurdo diversionista. A medida apareceu como algo premeditado para ser derrubado. E será, pois é flagrantemente inconstitucional. As duas casas do Poder Legislativo, ato contínuo, indicaram a derrubada do decreto. E Rosa Weber, do STF, deu cinco dias para o presidente “se explicar”. Bolsonaro afirmou, em quebra-queixo jornalista, que “se a medida for inconstitucional, tem que cair”.

A impressão que o presidente passa é a de que está brincando com os poderes. Todavia, dado que o resultado será a derrota fragorosa do governo – com sua humilhação pública em meios de comunicação –, cabe perguntar: não estaria Bolsonaro preparando a sua própria derrota? Não estaria ele criando uma narrativa para virar mártir? Assim, ao menos, após constatada a falência de seu governo, garantiria o futuro político-eleitoral seu e de sua famiglia.

O frágil equilíbrio se desfaz aceleradamente

Bolsonaro tem de se equilibrar entre três elementos: 1) o fisiologismo político (corruptos do centrão, partidos evangélicos etc.) que não tira a faca do pescoço do presidente nem para dormir; 2) os militares (que entraram no governo em parte porque sabiam que era fraco, em parte para tentar manter e ampliar seus próprios interesses corporativos); e 3) a direita histérica (ala ideológica, ou psiquiátrica, do governo), que se vincula à sua base social mais sólida.

Quanto ao “centrão”, podemos dizer que vivemos já um parlamentarismo light, onde a opinião pública quase se importa mais – leva mais a sério – o que Rodrigo Maia fala do que o que presidente fala. Este anuncia seu decreto de armas e em seguida Maia tranquiliza a geral simplesmente anunciando que “não vai passar”. Bolsonaro avaliza Olavo de Carvalho na briga com os militares e Rodrigo Maia chama no dia seguinte o general Vilas Boas para ser homenageado no Legislativo. Bolsonaro condecora Olavo de Carvalho e Maia prepara a derrubada de tal condecoração na Câmara. E por aí vai.

Quanto a isso, vale ressaltar que não se confirmou uma tendência de ditadura com Bolsonaro, mas, pelo contrário, uma tendência de fragilidade do Poder Executivo. Não há um bonapartismo no bolsonarismo. Não se passa um processo como na Venezuela, em que, numa série de anos, o Executivo ganha força, edita medidas-provisórias, decretos, muda os calendários do Legislativo, paralisa e cria confusões neste, solapa seu funcionamento etc. Pelo contrário – a despeito, é claro, da enorme força repressora atual do Estado burguês –, vemos, desde a crise política da Dilma (em 2015), uma fragilização crescente do poder Executivo, que hoje atinge seu ápice.

Seu ápice seria a renúncia do presidente. Se, com Dilma, o Executivo ainda lutou contra o Legislativo – e perdeu –, com o valentão Bolsonaro é possível que nem mesmo lute. O nome disso é crise da dominação burguesa.

Esta semana haverá o que o próprio presidente anunciou como “tsunami”. Ele se refere à derrota que o governo sofrerá na recomposição dos ministérios, na terça-feira. A votação é vista como uma demonstração de força prévia à votação da reforma da previdência. O centrão sabe que o governo é fraco, e que pode humilhá-lo nessa votação, para assim arrancar milhares de concessões a mais em nome da reforma da previdência. Chantagem.

O segundo elemento de sustentação, o dos militares, atingiu um novo grau de combustão após longas crises com os olavetes. Tais crises vêm se desdobrando desde o primeiro mês, no Ministério da Educação, na Secretaria de Governo (espécie de Ministério), e nas Relações Exteriores (sobretudo na APEX). Agora, no último capítulo do conflito entre o astrólogo Olavo de Carvalho, de um lado, e os militares Santos Cruz e Vilas Boas, de outro, constatou-se um mal-estar que não se via há décadas nos corredores do Planalto. As cúpulas dos partidos assistiram incrédulas à nova crise do governo, desatada aparentemente “do nada”. Para fechar a semana, vazou a informação de que o governo contingenciaria 44% das verbas do Ministério da Defesa. Militares afirmaram à boca pequena que nem mesmo nos anos do PT viram tamanho afronte às Forças Armadas. Eles, que entraram no governo para manter seus interesses corporativos, encontram-se com limites (ainda que pequenos) impostos pela reforma da previdência, pelo corte de verbas e pela desmoralização política e social de seus superiores hierárquicos!

Alguns articulistas burgueses da grande mídia já defendem abertamente que os militares saiam do governo “antes que seja tarde demais”. Acreditam que sua saída ajudaria a acelerar a queda de Bolsonaro. É o caso de Demétrio Magnoli e Reinaldo Azevedo. Talvez o tiro saia pela culatra, dando mais espaço a lunáticos no governo. Azevedo, sobretudo, escreve tendo em vista salvar Lula e convocar novas eleições antes de 2022, favoráveis ao PT.

O terceiro elemento – a ala “ideológica” – é o que traz o dado novo mais interessante. Pois se era óbvio que Bolsonaro era da turma corrupta do centrão – como sempre foi –, e se era óbvio que as FFAA somente se desmoralizariam no governo, não era tão claro o quanto duraria o apoio da direita histérica a Bolsonaro. É esse apoio que agora se esvai. Tal elemento é fundamental, pois é justamente para segurar esse setor social que Bolsonaro tem realizado a maioria das suas travessuras sem grandes impactos reais.

A imagem que sintetiza tudo é a da deputada mitomaníaca Carla Zambelli (PSL-SP) chorando na reunião da bancada de seu partido em que o presidente anunciou que é preciso se vender ao centrão.

(Para quem não acompanhou: Bolsonaro recriou dois ministérios fisiologíssimos – com destaque para o das Cidades –, bem como foi favorável à retirada do COAF da alçada de Sérgio Moro. Ambas foram exigências do centrão. Bolsonaro entregou a cabeça de Moro de bandeja. Parte significativa da base do PSL, aliás, votou contra Bolsonaro, apoiando Moro. Mas o próprio presidente, que tem um filho e a mulher investigados no COAF, não quer fortalecer esse órgão nas mãos de Moro)

Os bolsonaretes fizeram vistas grossas ao fato de que o presidente apoiou o STF em dois momentos-chave recentes: quando o ministro petista Dias Toffoli estabeleceu leis de censura, travestidas de “combate às fake news”, para que suas relações espúrias com a Odebrecht não viessem a público; e quando o STF recentemente abriu licitação de mais de um milhão de reais para a compra de lagostas e vinhos premiados. Em ambos os casos, o Advogado Geral da União, que age (e só pode agir) sob as ordens de Bolsonaro, atuou em defesa das medidas do STF. Os bolsonaretes fizeram vistas grossas, mas tudo tem limite.

Já circulam vídeos de bolsonaretes – como um na página do próprio Olavo de Carvalho – em que se afirma que começam “a perder a fé no Jair”. Eles estão bravos porque Bolsonaro não foi mais incisivo com os militares. Ótimo, que se matem!

Bolsonaro é chantageado por oportunistas e interesseiros de todos os lados. São muitos vetores de sustentação, muitos interesses particulares (e baixos) a atender. Ao se retirar um dos pés de sustentação desse tripé, os outros vêm abaixo juntamente. Todavia, desses três elementos, um parece ser o mais importante numa sociedade assentada sobre a luta de classes: a sustentação social/popular mais ampla. Eis por que a perda do terceiro elemento — a perda da pequena-burguesia histérica – tende a ser o mais decisivo para a queda de Bolsonaro.

Para isso, será fundamental o verdadeiro tsunami que se aproxima nesta semana: o início da mobilização de amplos setores da juventude contra Bolsonaro, devido aos cortes de Abraham Weintraub no Ministério da Educação. A juventude começa a se mover, ante a um país sem perspectiva de futuro, com um horizonte econômico que vai de mal a pior. É o começo da ação do proletariado.

Por mais que a direita histérica ainda apoie Bolsonaro, ela não é impermeável. No Brasil não há como — objetivamente falando – uma direita histérica se manter de forma sólida. Ela é permeável à influência do conjunto do proletariado, à sua gigantesca dimensão social, às suas necessidades objetivas de classe. As “classes médias” são muito diminutas, e não há setores camponeses, ou coisa que o valha, que tradicionalmente dão base a políticas conservadoras. A própria “direita” mitomaníaca começará a sofrer, de forma mais decisiva, a partir desta semana, graças à ação da juventude, a pressão do conjunto do proletariado. Ela tende a ser arrastada por ele. E isso tende, por sua vez, a mudar seus humores políticos e a quebrar o elemento de ligadura do tripé governista.

As próximas semanas serão decisivas para selar o destino de Bolsonaro. Ainda é especulação, mas talvez ele opte por copiar a carta acima e deixar a bucha da previdência para Mourão. Jânio aguentou até agosto.