Publicado em Comitê de Enlace
As eleições burguesas são um jogo no campo do adversário, o campo da burguesia, onde a classe trabalhadora não é um sujeito ativo. A definição do gerente do estado burguês do momento pouco interfere na luta política mais importante (estratégica), que se dá em torno da apropriação dos meios de produção entre classes com interesses antagônicos. Isso não significa que a participação tática dos revolucionários nos pleitos seja essencialmente equivocada. O processo eleitoral/parlamentar deve ser utilizado como mais um espaço para a agitação revolucionária, para denunciar as manobras burguesas, elucidar amplos setores sobre suas ilusões democrático-burguesas e estatistas, em suma, conquistar setores de trabalhadores para direcioná-los à política efetiva. A tática da participação eleitoral é parte, em última análise, da luta pela destruição do próprio parlamento burguês.
Isto tudo, entretanto, é bastante diferente da forma com que a nossa “esquerda” autodenominada socialista e revolucionária atua nas eleições. Nada tem a ver com a escolha de um suposto mal menor sob o regime democrático-burguês. Com exceção das eleições presidenciais de 1998 (em que FHC venceu no primeiro turno), o voto “crítico” no PT no segundo turno tem sido amplamente defendido pela esquerda “revolucionária” e “socialista”, com a justificativa de que a vitória desse partido representaria a derrota de inimigos comuns. Argumentou-se que o PT seria uma alternativa aos “neoliberais de direita”, de acordo com o linguajar antigo, ou à “ultradireita golpista”, segundo o manual atual. Justificou-se ainda que, por não estarmos em um contexto revolucionário, esse “mero voto” não representaria grande problema para as lutas dos trabalhadores.
Questionamos aqui se esse “mero” voto crítico no PT com fins táticos é, de fato, de interesse da classe trabalhadora. Nossa intenção não é avaliar os resultados imediatos dessa postura nas urnas, pois a “esquerda socialista” é de pequena dimensão social e pouco interfere numericamente. Queremos, na verdade, compreender as consequências desse persistente apoio “crítico” sobre a organização da classe trabalhadora e a construção de alternativas revolucionárias. O que afinal é chancelado nesse “voto crítico”? Qual o seu o significado histórico mais profundo e quais as suas consequências para a organização dos revolucionários e da classe trabalhadora em geral?
O papel histórico do “Novo Sindicalismo” de Lula
A origem do PT, nas grandes greves operárias do final dos anos 1970 é amplamente conhecida. O que normalmente se esquece é que no movimento sindical daquela época havia forte disputa de caminhos. Três correntes predominavam:
– Sindicalismo oficial: pelego, a serviço do decadente regime militar, bastante desacreditado politicamente pelos operários. Sua maior expressão era o dirigente sindical Joaquinzão;
– Sindicato autônomo e independente: predominante em São Paulo e Osasco; vinculado à oposição metalúrgica; objetivava realizar um trabalho cuidadoso nos locais de trabalho, a favor da criação de comissões de fábrica não atreladas à estrutura sindical usual; propunha fortalecer o poder autônomo dos próprios operários;
– Sindicalismo Autêntico ou Novo Sindicalismo: era a corrente de Lula e seu grupo do ABC; contrário às “ideologias comunistas” e, sobretudo, à criação de comissões de fábrica; favorável à submissão dos operários à estrutura sindical usual, tutelada pelo Estado.
Em julho de 1978, Lula, em entrevista à revista Cara a Cara (p. 221), afirmou o seguinte:
“Nós inclusive fomos contra a criação de comissões [de fábrica] e em algumas empresas em que elas surgiram nós procuramos acabar com elas. […] Eu posso garantir que, pelo menos em São Bernardo, não existem comissões organizadas.”
Eis como Lula e seus “autênticos”, desde o início, tranquilizavam a burguesia no principal centro produtor de capital do país!
A classe dominante brasileira, nem um pouco inocente – e ciente do esgotamento político da corrente do Joaquinzão –, desceu o porrete no sindicalismo autônomo (das comissões) e colocou o holofote em cima do grupo de Lula. Em 1978, desencadeando grande repressão em São Paulo e Osasco, as comissões de fábrica foram desmanteladas e mais de 1200 operários vinculados a ela foram demitidos. A relação da oposição sindical com a massa operária estava cortada. No mesmo período, Lula dava entrevistas tais como a acima, além de aparecer em outros canais com maior visibilidade. Um companheiro da época sintetiza assim:
“Os militares perceberam, muito cedo, nos sindicalistas do grupo de Lula, uma via eficaz de garantir a estabilidade burguesa após a retirada da ditadura militar.”
(H. Benoit, “A crise no Brasil: o fim de um ciclo de dominação burguesa”, in Revista Maisvalia, n. 1, 2007).
Além do aval da burguesia ao controle sindical pelo grupo de Lula, uma intelectualidade “radical” e a esquerda “socialista” aderiram ao nascente projeto do PT. Os intelectuais pequeno-burgueses argumentavam que a beleza e o frescor do jovem partido eram a sua indeterminação programática; que se devia sobrevalorizar o programa democrático e acumular forças, pela via eleitoral-parlamentar, antes que mudanças sociais mais profundas fossem possíveis. Em pouco tempo, não à toa, tornaram-se os principais teóricos e intelectuais do partido.
Os grupos socialistas, por sua vez, acreditaram que o PT seria um atalho para a construção de um partido revolucionário de massas. Entretanto, eles próprios careciam de um programa baseado na obra madura de Marx (O capital); não foram capazes de se contrapor aos teóricos pequeno-burgueses, adaptaram-se ao ideal democrático-burguês, às práticas sindicais dos “autênticos” e absorveram a lógica das políticas públicas de gestão estatal. Na realidade, acabaram dando um verniz “socialista” ao oportunismo do PT.
O resultado de tudo foi que, no âmbito sindical, produziu-se a hegemonia do “sindicalismo autêntico”, inicialmente mais combativo que o do grupo de Joaquinzão, mas não menos contrário à criação de formas de poder autônomo dos trabalhadores. No âmbito político-programático, produziu-se a hegemonia de uma concepção pequeno-burguesa e reformista, às vezes denominada de “Estratégia Democrático-Popular” (EDP), contrária à estratégia revolucionária da dualidade de poder.
O caminho do PT para a direita
Devido à hegemonia de seu programa pequeno-burguês, o PT foi desde o início um partido do centro do espectro político e social nacional (ou seja, nunca propriamente de esquerda, comunista), a despeito de sua capilaridade em sindicatos.
Nas décadas de 1980 e 1990 observou-se um fortalecimento paulatino do petismo nas universidades, entre estudantes, em sindicatos e nos parlamentos. Em 1990, a CUT se filiou à Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL), de orientação socialdemocrata, com a proposta explicitamente conciliadora e reformista. Em 1992 houve a expulsão das correntes mais à esquerda (p. ex.: Convergência Socialista). Em 1996 o partido já governava importantes cidades e fazia alianças com gente como Garotinho, no Rio de Janeiro.
Sob a faixada de um suposto reformismo de esquerda, o petismo cumpriu o papel de desviar as lutas proletárias independentes para o campo burocrático/parlamentar, enterrando greves e combatendo a ascensão de organizações revolucionárias. O ciclo econômico de aumento do desemprego, rebaixamento dos salários, aumento da fome e da miséria, bem como a ausência de uma oposição de esquerda contribuíram para que Lula assumisse, em 2002, o governo federal. O PT aceitou, sem quaisquer constrangimentos, ser financiado por grandes empreiteiras e ter o burguês José Alencar como vice de Lula. Por fim, Palocci escreveu a “Carta aos Brasileiros”, em que firmava o compromisso absoluto do partido com o sistema capitalista. Ou seja, nesse momento o PT se converteu explicitamente num partido burguês, de direita.
O PT no governo e sua queda
No início dos anos 2000, até mais ou menos 2010, o Brasil viveu um ciclo favorável ao crescimento econômico (em grande medida devido ao mercado internacional, apesar da crise de 2008). Isso fez com que o PT pudesse sustentar uma casta política burocrática parasitária ao mesmo tempo em que firmava aliança com os mais importantes setores burgueses.
É certo que políticas públicas como “Bolsa Família”, “Minha Casa, Minha Vida” e PROUNI levaram o partido a angariar apoio de setores proletários. Todavia, foram maneiras de usar a população miserável como intermediária, para transferir renda a ramos capitalistas. A miséria e a exploração capitalistas não desaparecem graças a tais políticas públicas; antes, paradoxalmente, ampliaram-se. O Bolsa Família foi, além disso, uma exigência dos banqueiros para impedir uma sublevação de famintos. A maior parte dos recursos públicos, ainda assim, foi sempre destinada diretamente a setores burgueses. Recordemos os generosos empréstimos do BNDES às grandes empreiteiras corruptas, ao agronegócio e a empresas monopolistas (p. ex., o grupo educacional antes chamado de Kroton, a JBS, as empresas do Eike Batista etc.). É dessa época a proliferação das leis das parcerias público-privadas, que passaram o controle significativo da educação superior, bem como o do SUS, às mãos de grandes empresários.
A grande disputa burguesa pelos gigantescos e acrescidos recursos estatais levou à exposição de diversos casos de corrupção (que, obviamente, também existiam, a seu modo, nos governos anteriores). Entretanto, enquanto a economia continuava aquecida e a oposição social, silenciada, o PT tinha sucesso em abafar seus escândalos.
O desgaste das políticas petistas começou a se expressar em 2010. Devido à virada no ciclo econômico, iniciou-se um constante aumento do número de greves. Em 2013, estouraram as manifestações nacionais de público, independência e radicalismo ímpares até então. Entre 2013 e 2016 foi registrada a maior série de greves desde o final da década de 1980. Em 2015, assistimos ao maior número de ocupações de escolas na história deste país.
Nenhuma resposta progressista veio do governo federal nesses anos. Pelo contrário, vimos apenas a mais intransigente e violenta defesa de interesses capitalistas (p. ex., na Copa do Mundo e nas Olimpíadas). Ainda em 2015, na impossibilidade de retomar o crescimento econômico, o governo petista de Dilma, associado a figuras como o Chicago Boy Joaquim Levy, escreveu as reformas trabalhista e fiscal que seriam depois implementadas por Temer. Dilma e Levy pretendiam também atacar os direitos previdenciários. Tais reformas só não foram implementadas antes por Dilma devido à crise política que levou ao impeachment.
A esmagadora maioria da chamada “esquerda socialista” ficou ao lado do indefensável PT no momento decisivo de sua queda (ou lavou as mãos, numa posição “neutra”). Pautas populares tradicionais começaram a ser então capitaneadas por inexpressivos grupos pequeno-burgueses liberais, como MBL e Vem Pra Rua, que facilmente se projetaram e ajudaram a erguer frágeis figuras, até então desconhecidas e sem base social relevante, como Moro e Bolsonaro. A eleição de Bolsonaro foi uma expressão bastante deformada do ódio popular ao governo burguês do PT, nas condições de capitulação da esmagadora maioria da chamada esquerda socialista e revolucionária.
Desde o seu primeiro semestre de governo, Bolsonaro gozou do apoio do PT, graças a alianças com esse partido na alta cúpula dos três poderes. Tais alianças foram fundamentais para que essa figura repugnante e nefasta não fosse derrubada.
Votar no PT representa “luta contra o fascismo” e contra um possível “golpe”?
Antes de Bolsonaro ser eleito, boa parte da esquerda brasileira o caracterizava como fascista e alardeava a possibilidade de um golpe. Porém, Bolsonaro chegou ao poder em um partido recém-formado e sem base social consolidada. Já governantes fascistas como Mussolini, Franco e Hitler ascenderam ao poder em partidos políticos bem centralizados, organizados e militarizados para destruir a vanguarda dos trabalhadores pela força. Regimes fascistas são ditaduras autocráticas, muito diferentes da nossa atual democracia burguesa.
Além disso, os grandes capitalistas, donos do Estado burguês brasileiro, não têm por que apoiar um golpe militar. Eles já estão no poder e estarão em 2023, seja lá quem for o eleito. Banqueiros, empreiteiros e toda sorte de empresários e latifundiários corruptos financiarão as campanhas do PT, PL, PSDB, PDT, MDB etc. O mercado financeiro brasileiro já afirmou que um golpe seria um desastre para a burguesia, pois levaria à fuga de capitais. A esmagadora maioria da população seria contra. A CIA, diretores do Departamento de Estado americano e até o Secretário da Defesa dos EUA deram diversas declarações criticando a bagunça bolsonarista nas eleições. A cúpula das Forças Armadas também é contra.
A verdade é que os bate-paus da burocracia sindical, cutista e afins, são ainda hoje mais perigosos para a vanguarda da classe trabalhadora do que os isolados e desclassificados apoiadores de Bolsonaro. Independentemente do discurso de Lula e Bolsonaro, os governos petistas foram mais competentes em exercer o autoritarismo do Estado contra a população trabalhadora. Prova disto é a recuperação da Lei de Segurança Nacional, a criação da Lei Antiterrorismo, a ampliação acintosa do encarceramento da juventude pobre (graças à “Lei das Drogas”), o uso do exército nas favelas e no Haiti etc. Tudo isso foi promovido por governos petistas. A “Comissão da Verdade” (ou Falsa Comissão da Verdade), dirigida pelo PT, sem poder para julgar, impossibilitou as condenações aos militares do regime de 64.
Para além de todo o seu discurso repugnante, Bolsonaro é um frágil e instável acidente da história, criado pelo desarranjo político do após junho de 2013, que levou à queda do PT. Desde o início de seu mandato, como um governo fraco, Bolsonaro foi refém do centrão parlamentar e do PT. Os mesmos que hoje nos chantageiam, falando de risco de “golpe” e “fascismo”, são os que moveram suas estruturas sindicais e populares para impedir a queda de Bolsonaro no seu momento de maior fragilidade, no ano passado, na pré-abortada campanha pelo impeachment. Haveria maior expressão de cara de pau do que isso?
Na realidade, o grande capital já migrou para o apoio ao petista. O manifesto da FIESP e da FEBRABAN “pela democracia” é uma declaração quase explícita disso. As movimentações pró-Lula de figuras como Blairo Maggi, Michel Temer e Arthur Nogueira expõem que setores significativos do agronegócio e do centrão político do Congresso já estão com o PT. A burguesia sabe bem que um regime democrático-burguês sob Lula é mais estável, para explorar operários, do que a arruaça provocada por Bolsonaro e sua trupe (que, inclusive, desmoraliza as Forças Armadas).
A onda que leva o PT mais uma vez ao poder paralisa, quebra e reduz a significância dos partidos e organizações que se diziam de oposição de “esquerda”. Com seus fios invisíveis nos meios sindicais e políticos, Lula puxa para si todos aqueles que o criticavam verbalmente. Forma-se uma visível e vergonhosa “frentona popular”, que parte do capital industrial e do mercado financeiro, passa pelo centrão político-burguês, pelos sindicatos e suas “campanhas salariais” em época de eleição, e deságua na “esquerda socialista” temerosa de “golpe”.
Se a atual disputa Lula versus Bolsonaro realmente representasse o conflito entre um regime democrático e um autoritário, seria compreensível a tática de frente com o PT e outros setores democrático-burgueses. Mas não é disso que se trata; não há risco real de mudança de regime e a frente atual da nossa “esquerda socialista” com o PT significa mera capitulação a esse partido, ao seu programa e à sua história, bem como, enfim, à ordem democrático-burguesa atual.
Não compactuaremos com isso! Votaremos em protesto contra Bolsonaro e Lula!
O voto no PT não é mero voto. Quando se vota hoje nesse partido, chancela-se um caminho, uma história, um programa. Bloqueia-se outra vez a possibilidade de criação do poder autônomo dos operários nos locais de trabalho. Reafirma-se a concepção programática, por parte da nossa “esquerda socialista”, de que o importante é a mera gestão estatal.
A defesa do voto nulo no eventual segundo turno da eleição presidencial deste ano é um grito claro de BASTA disso tudo! Basta da chantagem política de Lula e de sua contraparte, Bolsonaro! Basta do sindicalismo que mata a autonomia do movimento operário! Basta da submissão do movimento operário ao Estado! Basta do programa reformista da “esquerda socialista”!
Lula e Bolsonaro são inimigos da classe trabalhadora!
Vote nulo, em branco ou abstenha-se neste segundo turno.
Pelo enlace dos revolucionários para a criação de uma nova organização revolucionária”!