Transição Socialista

O programa de Marx e Trotsky contra a crise

Por R. Padial

Texto usado como base para apresentação no 8o SESTMARX (Seminário de Estudos Marxistas), no dia 27/05/2018

Devemos tratar um pouco da crise capitalista que se anuncia. As perspectivas são as mais nebulosas e, frente a isso, os revolucionários devem sair da rotina atual; armar-se contra algo em dimensão que nossa geração não viu. Não podemos seguir na mesmismo, com as palavras-de-ordem de ontem, sem vislumbrar que a conjuntura daqui a um ano poderá entrar em situação catastrófica para os trabalhadores. Portanto, este é, acima de tudo, o momento dos revolucionários repensarem suas posições e programas.

A crise que se abre, na realidade, já seria de dimensão catastrófica, com ou sem a pandemia do coronavírus. Sem este, ela apenas demoraria um pouco mais para estourar. Com o vírus, ela estoura de forma mais rápida e violenta. A própria burguesia foi agora forçada a colocar sua economia numa espécie de “coma”. Um coma induzido do qual ela não sabe bem se conseguirá sair. Apostamos que não. Ao menos não facilmente.

Quando falamos que a economia já entraria em crise, mesmo sem o vírus, temos em vista alguns dos dados econômicos mais importantes dos últimos anos. Análises interessantes a respeito podem ser vistas na página do Prof. José Martins, seu site Crítica da Economia. Bem como em teses da TS[1]. Por ora, apenas para dar uma dimensão do que falamos, apresentamos um gráfico que registra o gigantesco grau de acumulação de capital com base em um dos principais índices da bolsa de valores de NY. Nele pode-se ter a dimensão da explosão a vir, não à toa considerada por muitos economistas como possivelmente maior do que a de 1929.

Mas, em vez de tratar de elementos empíricos – que são também importantes –, tentemos apresentar alguns conceitos importantes sobre a crise, conforme aparecem em Marx. Cremos que a dimensão da crise que se avizinha pode ser compreendida valorizando-se a noção de “crise geral”, apresentada por Marx. Este pensador, juntamente com Engels, analisou as crises de um ponto de vista de seu retorno, de sua circularidade, ou seja: analisou os ciclos econômicos da produção capitalista[2]. Assim, ao menos para Marx não existe algo como uma “crise permanente” do capital. As crises capitalistas, expressões dos limites imanentes do capital, dão-se devido à superprodução. Tal fenômeno ocorre a partir do século XIX (antes, na época manufatureira – analisada, por exemplo, por Adam Smith –, as crises eram ainda meramente creditícias ou monetárias, não propriamente de superprodução).

Ainda assim, há formas e formas de retorno cíclico das crises e diferentes impactos que cada retorno pode trazer. Eis por que Marx desenvolveu – contra o economista David Ricardo – as diferenças entre duas possibilidades de superprodução: a parcial e a geral (ou relativa e universal). Assim, entre os itens 8 e 14 do capítulo XVII das chamadas Teorias da Mais-Valia, Marx critica David Ricardo porque este “não soube nada das crises gerais”. É em parte compreensível, pois Ricardo viveu num período em que tais crises gerais ainda não se manifestavam plenamente (morreu em 1823). Mas o mal se estenderia também aos seguidores de Ricardo, contemporâneos de Marx, que não conseguiam, devido à limitação de seu antigo mestre, explicar as crises do novo tempo. Ricardo acreditava que não poderia haver superprodução geral, apenas superprodução parcial (ou relativa) de mercadorias. Isso, para Marx, virava um subterfúgio, uma desculpa teórica para não encarar a possibilidade explosiva das contradições efetivamente existentes na sociedade capitalista. Diz Marx, contra os ricardianos:

“É um pobre subterfúgio dizer que só pode ‘haver pletora [excesso] num mercado’ de determinado tipo de mercadorias, mas não de todas, e que portanto a superprodução só pode ser parcial. […] Mas no que se refere à diferença entre superprodução parcial e geral, se trata [por parte dos ricardianos] de apenas afirmar a primeira e apagar a segunda …”.[3]

Marx, no item 14 desse capítulo, mostra que Ricardo se baseia num sofisma de outro economista, J-B. Say, que concebe, grosso modo, que toda oferta cria sua demanda (a chamada “Lei de Say”). Com base em Say, Ricardo defende que só pode haver superprodução em um ou outro ramo, mas não em todos ao mesmo tempo. Marx resume o sofisma de Ricardo (baseado em Say) da seguinte forma:

“[Para Ricardo] não existe superprodução universal, uma vez que, se fosse assim, todas as esferas de produção conservariam a mesma proporção entre si; portanto, a superprodução universal equivaleria à produção proporcionada, o que exclui superprodução. […] Desse modo, uma superprodução universal no sentido absoluto não seria superprodução, mas simplesmente o desenvolvimento normal da produtividade em todas as esferas de produção, o que significa que não pode existir a verdadeira superprodução […]”[4]

Para Marx, escrevendo no início da década de 1860 – quando redigidos os manuscritos das denominadas Teorias da Mais-Valia –, não apenas era possível uma crise parcial, mas também uma crise geral, aquela que se dava ao mesmo tempo “nos artigos comerciais mais importantes” (aqueles que “se pode produzir em massa e fabrilmente, incluindo aí a agricultura”). Essa crise geral teria um peso muito maior no estouro das contradições capitalistas, como explica Marx:

“Todas as contradições da produção burguesa estalam coletivamente nas crises gerais do mercado mundial, e [entretanto] nas crises particulares [besondren] (particulares por seu conteúdo e extensão) apenas de modo disperso, isolado e unilateral”.[5]

É disso que se trata: de um estouro ao mesmo tempo, coletivo, de todas as contradições da produção burguesa. Em condições assim, a burguesia sente-se por ora impotente, pois sua sociedade é lançada na desordem e a própria propriedade privada dos meios de produção é colocada em cheque.

Cremos que foi somente após a crise de 1929, uma crise geral, que a burguesia finalmente aceitou a possibilidade teórica da crise geral e se armou para combatê-la (disso resultou, entre outros, Keynes e sua teoria geral). A partir de então, os esforços da burguesia têm sido sempre para impedir que as crises capitalistas se generalizem tão rapidamente (passem de relativas ou parciais a gerais); para que não falte “liquidez”, crédito, paralisando o chamado “sistema financeiro”, bem como para que não falte consumo a determinados setores-chave da economia (no que se costumou valorizar a função do Estado enquanto criador de uma “Demanda Efetiva” [termo malthusiano], ajudando a contornar a superprodução).

Mas a questão é: diante da tamanha explosão à frente, associada ao elemento do vírus, que aprofunda a queda nas relações burguesas, terá a burguesia instrumentos eficazes para, digamos assim, “aliviar” o estouro da crise e dificultar que ela se generalize? Parece-nos duvidoso. Basta ver a dimensão da assustadora paralisação do comércio mundial, o assustador corte de emprego nos EUA, o desabamento do PIB desse país, a maior economia do mundo. Os elementos de uma crise geral, como a de 1929, e talvez maior do que essa, colocam-se à nossa frente. Eis por que a discussão sobre o programa, sobre quais formas de ação os revolucionários devem realizar neste momento para que o peso da crise não seja lançado nas costas dos trabalhadores, se coloca como da maior importância e urgência.

Programa para saída da crise capitalista (e, necessariamente, para a superação do capitalismo)

Para o mesmo período de crise geral, refletindo especificamente sobre a crise de 1929 e suas consequências, Trotsky criou o Programa de Transição, o programa da IV Internacional, com suas reivindicações transitórias (as duas escalas móveis). Esse é, por isso, o programa mais avançado que há no marxismo para tratar esse tipo de conjuntura. Tratemos um pouco dele, mas antes façamos um esforço para encontrar suas raízes na própria obra de Marx.

Uma situação de crise geral necessariamente produz demissões em massa e inflação galopante por longo período. É assim para que o capitalismo retome uma taxa de lucro satisfatória para acumulação. Mais do que ficar falando sobre socialismo, são esses males que devem ser atacados antes de tudo, para daí desdobrar uma luta de superação do capitalismo.

Marx, em toda a sua obra, está preocupado com armar a classe trabalhadora com um programa que leve ao socialismo, ou seja, quer superar o programa então existente entre as organizações dos trabalhadores (sobretudo em seu ponto mais avançado, a Inglaterra). Tais programas de sua época foram importantes em seu nascimento, acreditava ele, mas também eram limitados. Assim, Marx está preocupado com encontrar reivindicações, no quesito emprego e salário, que não sejam paliativas, mas realmente levem a um choque incontornável com o capitalismo, um choque que aponte para o socialismo. Ele não quer o que hoje poderíamos dizer que é um programa da burocracia sindical, com os chamados “aumentos reais” de salário, diminuição fixa da jornada de trabalho, com as lutas por “Participação nos Lucros e Resultados” etc., que não apontam para além do capitalismo[6].

Não é à toa que Marx termina os capítulos longos de O Capital que tratam da luta pela redução da jornada de trabalho – capítulos referentes à análise da chamada “mais-valia absoluta” – e apresenta, logo a seguir, a seção referente à “mais-valia relativa”. Nos capítulos dessa nova seção, Marx mostrará que a diminuição fixa da jornada – por exemplo, de 14h para 12h ou 10h diárias – forçou os capitalistas a introduzir novas formas e métodos de produção, ampliando a produtividade do trabalho (bem como a intensidade). Assim, o capital conseguiu não apenas um aumento de seus lucros como também um aumento do seu controle sobre a classe trabalhadora, cada vez mais subordinada à dimensão do capital e sua maquinaria – tudo isso apesar da redução da jornada!

O mesmo pode ser dito no que se refere a aumentos salariais. Marx diz, por exemplo, quando trata da lei geral da acumulação capitalista (especificamente no item 4 do capítulo XXIII) que “à medida que se acumula capital, a situação do trabalhador, qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo [hoch oder niedrig], tem de piorar”[7]. Marx está analisando a relação dos salários exatamente com os ciclos econômicos e com o chamado exército industrial de reserva (o responsável principal pelas oscilações dos salários, assunto para o qual voltaremos). Cabe por ora notar que tal comentário é totalmente afim às concepções de Marx sobre salário desde 20 anos antes, em 1847, quando já desenvolvera traços gerais consistentes de sua teoria (ainda que muito faltasse desenvolver). Tal é a concepção sobre salários que está por trás da noção fundamental de salários relativos, que aparecem já em Trabalho Assalariado e Capital  (palestras dadas em 1847, mas impressas em 1849) e se mantém até Salário, Preço e Lucro (conferências dadas à Primeira Internacional, em 1865) e em O Capital (1867).

Marx sabia bem que as diferenças entre as noções de salário nominal, salário real e salário relativo são fundamentais para se refletir sobre a possibilidade de um programa revolucionário. As duas primeiras formas – salário nominal e salário real – são as em que se move a burocracia sindical. A última forma, salário relativo, é a forma que se deve considerar para elaborar um programa revolucionário, pois coloca a contradição entre burguesia e proletariado de forma incontornável, ou seja, inconciliável (propriamente enquanto contradição entre classes). Resolver o problema do salário relativo é resolver necessariamente a ordem capitalista (ou seja, superá-la). Expliquemos mais.

O salário nominal é aquele do “nome”, aquele que nos aparece no holerite e é expresso com a moeda de cada país. Por exemplo, R$ 1.500,00 mensais. Esse salário nominal nos diz nada ou pouca coisa, pois não deixa claro o que se pode consumir com ele. Eis por que é fundamental compreender seu poder de compra, sua relação real com as mercadorias. Daí o conceito do salário real, que expressa o que realmente aquele salário nominal pode comprar. Ou seja: se o salário nominal se mantém o mesmo mas o preço das mercadorias sobe, há um decrescimento do salário real. Mas se o salário nominal sobe acima do preço das mercadorias consumidas pelo trabalhador, há um crescimento do salário real. O mesmo ocorre se o salário nominal se mantiver igual, mas houver (por diferentes motivos) uma diminuição no preço das mercadorias. Então o salário nominal poderá comprar mais mercadorias, e assim haverá um aumento real do seu poder de compra. A forma do aumento do salário real é a favorita das burocracias sindicais, que insistem em “ganhos reais”, a verdadeira base do chamado “sindicalismo de resultados” (cujo bom exemplo, no Brasil, é a CUT). Eis por que, já em 1847, Marx se esforçava para encontrar outra categoria de análise no quesito salarial, que não fosse nem a de salário nominal nem a de salário real. Ela é, como falamos, a de salário relativo.

A noção de salário relativo trata da participação do trabalhador dentro da riqueza que produz. Ela reflete sobre a dimensão do que é apropriado pelo trabalhador (na forma de salário) dentro da totalidade da riqueza que ele produz. Ou seja: ela versa propriamente sobre o quanto do valor produzido fica para si e o quanto fica para o patrão. Com tal noção, Marx mostra que o salário nominal e real podem crescer, mas o salário relativo, no capitalismo, tem de decrescer (do que se pode concluir, como argumentava Rosa Luxemburgo, uma “queda tendencial do salário relativo”). O sujeito que ganhava, no exemplo acima, R$ 1.500,00 pode passar a ganhar, graças a uma vitória na luta sindical, R$ 1.800,00. Isso significaria que ele ficou mais “rico”? Não necessariamente. É necessário ver o salário relativo para verificar isso. Ou seja: pode ser que ele ganhe mais – nominal e realmente –, mas agora, devido a diversos elementos, esteja mais explorado do que antes, pois sua participação na totalidade que produz de riqueza diminuiu. Eis por que Marx falava, como citamos, que a situação do trabalhador necessariamente piora, qualquer que seja seu salário, crescente ou decrescente[8].

Marx, em Trabalho Assalariado e Capital, para ilustrar o problema do salário relativo, usa a imagem de uma casa. As casas simples dos trabalhadores, estando umas ao lado das outras, parecem normais e iguais entre si. Mas se, no dia seguinte, alguém constrói uma palácio ao lado daquelas casas, elas serão sempre minúsculas, e o trabalhador será oprimido socialmente. Por mais que o trabalhador se esforce para ampliar a sua casa, se o palácio crescer ao lado na mesma proporção, ele crescerá em dimensão cada vez mais opressora (sem falar que, na realidade, tal palácio tende a crescer em velocidade superior). Ou seja, a desigualdade social tendencialmente sempre aumentará (desprezando por completo qualquer tentativa quixotesca e fada ao fracasso dos reformistas sociais). Não basta, por exemplo, ter ganho de 5% na greve por salário (mesmo superando a inflação), se o lucro da empresa é também de 5% no mesmo ano. A dimensão do capital acumulado pela empresa será em geral muito maior e a força do capital se tornará mais opressora contra o trabalhador.

Rosa Luxemburgo deu uma importância fundamental a tal noção de salários relativos, pois o aumento da exploração escondido aí é algo chave para o capital. Por trás da perda no salário relativo cresce algo – diz Rosa, na sua Introdução à Economia Política – como um poder invisível dos capitalistas. A redução do salário real é muito evidente, e por isso tende a gerar uma contra-resposta fácil dos sindicatos e uma revolta nos trabalhadores. Já a redução dos salários relativos é pouco percebida, e ajuda a manter a classe trabalhadora controlada num tipo de “banho-maria”, por “fios invisíveis”, que ela não capta. Não capta, mas uma hora a situação se torna insuportável e há a explosão.

Só isso explica, por exemplo, como é absolutamente falsa a narrativa dos petistas e afins, que afirmam que a situação dos trabalhadores brasileiros sob o governo do PT estava melhor, pois eles compravam televisões de plasma ou viajavam de aviões. Isso não significa nada, se não se refletir sobre a participação dos trabalhadores na riqueza que produzem. Como dissemos, os salários nominais e reais podem aumentar, mas o relativo diminuir – e foi isso de fato o que ocorreu nos anos do PT. Se analisarmos os dados de produtividade per capita, notaremos que a produtividade do trabalhador só cresceu, nos anos do PT, em dimensão comparável aos anos mais pesados da Ditadura Militar (o período do “milagre” dos militares)[9]. O governo do PT não foi, em momento algum, um governo de conciliação de classe, de “ganha-ganha” (onde ambos os lados ganham), mas de aumento assustador do grau de exploração sobre os trabalhadores. Eis o resultado do gigantesco atrelamento do movimento sindical ao Estado. Aos trabalhadores sobraram as migalhas que caíam da mesa do banquete capitalista. Ou seja: não adianta salário maior, se a exploração aumenta, se a opressão do capital aumenta e se torna mais sufocante. Não adianta salário maior se o trabalhador desce um degrau em relação ao capitalista (ou se este sobe um relação àquele). Não adianta salário maior se a desigualdade entre classes cresce, e, por isso, o capital se torna uma força material mais opressora.

Entretanto, as televisões foram mandadas aos ares e os aviões explodidos na revolta popular de junho de 2013.

A noção de salário relativo, portanto, é importante pois indica com precisão o aumento ou não da exploração capitalista. Por refletir sobre a participação do trabalhador na totalidade da riqueza que ele produz, ela aponta para o problema da jornada de trabalho e do grau de exploração, tratando a classe trabalhadora não como meramente consumidora (como fazia o PT), mas propriamente enquanto produtora da riqueza. O fundamento da ação oportunista da burocracia sindical está em tratar a classe trabalhadora como meramente consumidora (e nisso ela dá os braços aos keynesianos), meramente negociando seus salários tendo em vista sua necessidade de consumo, sem vinculação com o problema da jornada, do grau de exploração.

Por tudo isso, Rosa Luxemburgo falava que

“A luta contra a queda no salário relativo já não é uma luta que se desenvolve no terreno da economia mercantil, mas sim um assalto revolucionário, subversivo, contra a existência dessa economia. É o movimento socialista do proletariado”.[10]

Do que se trata, conforme Marx e Rosa, é encontrar a forma propriamente socialista do movimento dos trabalhadores em defesa de seus salários e empregos. Ou seja, a forma que necessariamente trava a acumulação capitalista. Se isso não for encontrado, o capital continuará se ampliando, a despeito de qualquer ação sindical. E continuará reinando a burocracia sindical. Assim não se vai a lugar algum e desperdiçam-se gerações.

Mas, conforme aponta Marx, não basta entender a necessidade de manutenção do salário relativo. É preciso conseguir implementar essa reivindicação, e, para isso, temos de entender as forças sociais em jogo num conflito assim. Na realidade, a regulação dos salários, mostra Marx, não depende apenas dos trabalhadores empregados, mas sobretudo do que ele chama de exército industrial de reserva (ou seja, a superpopulação relativa que pressiona o setor ativo da classe trabalhadora). Esse é o verdadeiro regulador da oscilação dos salários. Se não se toca nesse problema, não é possível qualquer luta real pela mínima manutenção do salário relativo. Diz Marx, em polêmica contra a teoria populacional de Malthus:

“No geral, todos os movimentos do salário são regulados exclusivamente pela expansão e contração do exército industrial de reserva, que corresponde à mudança periódica do ciclo industrial. Portanto, eles não são determinados pelo movimento do número absoluto da população trabalhadora, mas pela relação variável em que a classe trabalhadora se divide entre exército ativo e exército de reserva […]”.[11]

Marx revela que exército industrial de reserva quebra toda luta revolucionária do proletariado:

“O exército de reserva industrial pressiona o exército ativo de trabalhadores durante os períodos de estagnação e prosperidade moderada, e mantém suas demandas sob controle durante os períodos de superprodução e paroxismo [ou seja, crise].”[12]

Para Marx, é impossível fazer qualquer luta revolucionária se não houver uma articulação total entre organizações de empregados e desempregados. Frente à exploração capitalista, é necessário que os trabalhadores compreendam esse “segredo estranho”, que se expressa no fato de que, quanto mais trabalham, mais são explorados e mais a miséria cresce. Com a articulação com os desempregados, entretanto, pode-se iniciar uma luta para dar um basta nisso, para travar a lei geral de acumulação capitalista. Diz Marx:

“Portanto, assim que os trabalhadores desvendam o segredo de como é possível que, quanto mais trabalhem, mais produzam riqueza alheia, e que na medida em que a força produtiva de seu trabalho cresce, até mesmo sua função de meio de valorização do capital se torna cada vez mais precária para eles; assim que descobrem que o grau da intensidade da competição entre eles depende inteiramente da pressão da superpopulação relativa; assim que procuram organizar uma atuação conjunta e planejada dos empregados com os desempregados, por meio das Trade’s Unions [sindicatos] etc., a fim de eliminar ou enfraquecer as consequências ruinosas da lei natural da produção capitalista sobre sua classe, o capital e seu bajulador, o economista político, gritam contra a violação da lei ‘eterna’ e por assim dizer ‘sagrada’ da demanda e da oferta [de trabalho]. É que qualquer solidariedade entre empregados e desempregados atrapalha a ação ‘livre’ da lei”.[13]

Tal solidariedade seria fundamental para reivindicar emprego a todos. Isso seria possível com a divisão das horas totais de trabalho entre todos os aptos a trabalhar, com um tipo escalonamento do trabalho. Isso seria não apenas possível, mas a única forma de dar base a um nova sociedade, socialista. Somente assim uma sociedade socialista poderia manter a capacidade produtiva da sociedade capitalista, estabelecendo as bases reais para superá-la. Conforme esclarece Marx:

“Se, entretanto, o trabalho total fosse reduzido a um nível racional amanhã [ou seja, no socialismo], [se] a idade e o gênero das várias camadas da classe trabalhadora fossem escalonadas [abgestuft], a população ativa existente seria absolutamente insuficiente para continuar a produção nacional em seu nível atual. A grande maioria dos trabalhadores agora ‘improdutivos’ teria de ser transformada em ‘produtiva’.”[14]

E Marx, como costuma fazer em O Capital, mostra que em tais ideias está apenas dando voz à classe operária em luta contra o capital. Assim, a esta altura do texto, Marx reproduz um panfleto de operários de fiação de algodão da região de Blackburn (Inglaterra), em luta no ano de 1863. Nesse panfleto se lê, a respeito da necessidade de divisão das horas de trabalho entre todos os com capacidade de trabalho:

“As vítimas do excesso de trabalho sentem a injustiça tanto quanto os condenados à ociosidade forçada. Neste distrito, o trabalho a ser realizado é suficiente para empregar parcialmente todos, se o trabalho for distribuído corretamente [um alle teilweise zu beschäftigen, würde die Arbeit billig verteilt]. Nós exigimos aos patrões apenas [nur] o direito de trabalhar por um período curto de tempo, pelo menos enquanto durar o estado atual das coisas, em vez forçar uma parte dos operários com trabalho em excesso, enquanto falta trabalho para a outra [parte], e é obrigada a viver de caridade.”[15]

Os operários não estão exigindo a revolução socialista. Estão exigindo apenas [nur] o direito de todos os trabalhadores serem explorados. É – como diria Trotsky no Programa de Transiçãoo único direito sério numa sociedade fundada sobre a exploração. Esse trecho da obra de Marx é fundamental, pois aqui ele não apenas está apontando – como na passagem da seção da mais-valia absoluta para a relativa – que o rebaixamento fixo das horas de trabalho não serve para superar o capital. Aqui ele está mostrando que a classe trabalhadora tem que ter como reivindicação a divisão das horas de trabalho entre todos os trabalhadores existentes. Do contrário, não se trava a acumulação capitalista e reproduz-se o sindicalismo que concilia as contradições do capital (salvando o sistema).

O Programa de Transição, de Trotsky

Foi com base nessas reflexões de Marx, bem como, ainda, em outros elementos – a saber, a experiência da Revolução Russa de 1917, a situação da crise de 1929, as lutas da classe operária na década de 1930 em vários países –, que Trotsky elaborou o Programa de Transição, o programa da IV Internacional. Não queremos aqui nos alongar sobre esse programa, dado que já o comentamos muitas vezes. Cabe apenas notar que até 1936 Trotsky redigia programas com as reivindicações usuais do movimento sindical (literalmente, “Semana de 40h” e “Aumento dos salários” eram defendidos por ele). A derrota da greve geral francesa de 1936 deixou claro, para ele, que essas reivindicações usuais favoreciam a conciliação e a traição das lutas operárias, ajudando a quebrar as formas de poder paralelo criadas pela classe. Eis por que Trotsky abandonou tais reivindicações, em nome das que abrem o Programa de Transição[16].

As reivindicações iniciais do Programa de Transição são propriamente transitórias porque aparecem como muito pouco – conservar os níveis atuais de salários e empregos – mas na realidade são muito. Elas dialogam com o caráter conservador da classe trabalhadora, mas fazem acender nela o fogo revolucionário. Tais reivindicações são as escalas móveis, sempre combinadas: escala móvel de salários e escala móvel das horas de trabalho. Se somadas à reivindicação de Frentes Públicas de Trabalho, elas equivalem, diz Trotsky – em discussão com membros do SWP –, à forma de funcionamento da economia socialista, onde todos trabalham de acordo com a necessidade de produção e não há inflação. Por esse motivo é que elas são já reivindicações máximas (socialistas), ainda que pareçam o mais mínimo (conservar os níveis de vida). Elas realizam uma dialética entre aparência e essência. Elas travam a acumulação capitalista, e, por isso, equivalem ao que Rosa Luxemburgo falava quando tratava dos salários relativos: elas são uma luta que não se desenvolve no terreno da economia mercantil; são um assalto revolucionário contra a economia de mercado. Elas são o movimento socialista do proletariado na sua forma mais concreta e imediata para o trabalhador (sem necessitar de discursos ou doutrinações sobre socialismo, que em geral mais servem para encobrir atuações duvidosas do que para apresentar um caminho real de ação).

Nesse sentido, as duas escalas móveis juntas, ao vincular necessariamente a questão do reajuste salarial à questão da jornada de trabalho, concretizam perfeitamente a luta pela conservação do salário relativo. Já a reivindicação de Frentes Públicas de Trabalho, somada às duas escalas, coincide perfeitamente com o que Marx defendia para fazer que todos trabalhassem; que o trabalho total fosse dividido por todos os aptos a trabalhar. É aí que o Programa de Transição, de Trotsky, se mostra como continuidade direta (concretização) dos esforços de Marx para encontrar um programa de ação propriamente socialista.

Em que consistem essas reivindicações do Programa de Transição? Façamos um detalhamento uma vez mais, lembrando que elas devem ser reivindicadas sempre em conjunto, do contrário perdem seu caráter transitório. São elas:

1. Escala Móvel de Salários: os contratos coletivos devem assegurar o reajuste mensal dos salários, de acordo com a inflação dos produtos básicos. Tendo um mínimo assegurado (um piso), os salários devem oscilar de acordo com a inflação. Reajustes anuais permitem manter a classe trabalhadora sob arrocho salarial e ajudam a legitimar perdas que se acumulam historicamente;

2. Escala Móvel das Horas de Trabalho: os contratos coletivos devem assegurar o reajuste mensal das horas de trabalho, de acordo com a necessidade social de produção. Tendo um máximo assegurado (um teto), a jornada deve oscilar de acordo com a necessidade de produção. Não se deve aceitar qualquer forma de demissão, nem rebaixamento de salário com a diminuição das horas. Diminuições fixas de horas permitem à burguesia se organizar e desenvolver formas de mais-valia relativa que ampliam o grau de exploração do trabalho;

3. Frentes Públicas de Trabalho: o governo deve iniciar já a realização de obras públicas para a absorção da mão-de-obra desempregada. Deve-se construir tudo o que é de necessidade da população: escolas, creches, hospitais, universidades, vias, etc. Os que começam a trabalhar nessas obras entram no esquema de funcionamento das duas escalas listadas acima.

*

Essa é a imanência da luta de classes. A disputa real, pelo socialismo, se dá no processo de trabalho, na repartição entre o tempo de trabalho necessário e o mais-trabalho. É daí que deve partir o programa revolucionário. Toda discussão que foge desse núcleo para levar a determinação do programa revolucionário (ou seja, a estratégia, e não a tática) aos céus do politicismo, à luta conta o “imperialismo”, ao mito da nação burguesa inexistente, à essencialização de questões democráticas, às análises do fluxo de capitais entre nações etc., está fazendo metafísica e não propriamente política revolucionária marxista, a que se esforça sempre por encontrar o caráter verdadeiramente contraditório nas relações sociais.


NOTAS:

[1] Site de J. Martins: <https://criticadaeconomia.com/>;
Uma das teses da TS: <https://transicao.org/conjuntura/tese-1-la-se-vao-mais-de-dez-anos/>

[2] Veja também, quanto a isso, a tese da TS referida em nota acima.

[3] MARX, K, Theorien über den Mehrwert, in MEW, volume 26.2, Berlin: Dietz Verlag, 1967, pp. 505-506.

[4] Idem, ibidem, 530.

[5] Idem, ibidem, 535.

[6] Não nos enganemos: não há nada de absolutamente novo em fenômenos como PLR, banco de horas, terceirização. Tais coisas já existiam na época de Marx e foram comentadas, mesmo que de passagem, em O Capital.

[7] MARX, K., Das Kapital, in MEW, vol. 23, Berlin: Dietz Verlag, 1962, p. 675. Marx expressa a mesma concepção em Salário, Preço e Lucro, de 1865.

[8] Disso também, é claro, resulta que não há em Marx uma teoria do pauperismo, no sentido de que os trabalhadores consumirão sempre menos (terão seu salário real sempre diminuído). O salário real pode aumentar, como falamos, mas diminuir o salário relativo. A situação do trabalhador piora, sua opressão pela sociedade capitalista aumenta, mas não quer dizer necessariamente que a classe trabalhadora consumirá cada vez menos, sendo necessariamente transformada em lumpen-proletariado pela lógica do capital.

[9] Sobre a exploração nos governos petistas, veja-se comentário no seguinte link: <https://transicao.org/conjuntura/bolsonaro-produzira-o-contrario-do-que-pretende/>

[10] LUXEMBURGO, R., Ausgewählte Reden und Schriften, vol. II, Berlin, 1951, pp. 719-720. Ver também, sobre essa passagem, comentário de ROSDOLSKY, R., Gênese e Estrutura de O Capital, Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 247.

[11] MARX, K., Das Kapital, op. cit., p. 666.

[12] Idem, ibidem, p. 668.

[13] Idem, ibidem, pp. 669-70.

[14] Idem, ibidem, p. 666.

[15] Idem, ibidem, p. 665-666. O trecho “ao menos enquanto durar o estado atual das coisas” faz referência, talvez, à situação de crise econômica. Isso mostra o grau de imanência da reivindicação. Não se pede no panfleto a distribuição para todo o momento do capitalismo, mas para a situação catastrófica da crise. Assim, a reivindicação parece o mais mínimo possível (“Nós pedimos apenas…”, diz o texto), mas em tal situação de crise ela é insustentável e explosiva contra a ordem do capital.

[16] Analisamos com mais calma tais elementos na obra de Trotsky aqui: <https://transicao.org/historico/ascensao-e-queda-do-programa-de-transicao-parte-1/>