O coronavírus será um mal menor para a maioria da população, se comparado às consequências da crise econômica que se instalará mundialmente este ano. Os revolucionários e socialistas têm de fazer um esforço para ver os problemas atuais mais longe, distinguindo o real horizonte que se desenha, bem como antevendo as dificuldades e as oportunidades políticas únicas que surgirão.
Já expusemos que as condições para o estouro de uma grave crise econômica capitalista estavam praticamente dadas. O ciclo econômico capitalista atual já há muito está esgotado. A tendência de deflação nos preços de mercadorias nas principais economias – reflexo do gigantesco aumento na produtividade do trabalho, ou seja, da diminuição do valor unitário de cada mercadoria – se expressou, como só poderia ocorrer, enquanto queda na taxa média de lucro do sistema capitalista, preparando a paralisação da extração de valor (ou seja, preparando a paralisação da exploração dos trabalhadores pelos capitalistas). A própria queda das taxas de juros – ou seja, do preço da mercadoria dinheiro – é reflexo desse processo, pois, como ensinou Marx, a taxa de juros, apesar de sua relativa autonomia, é determinada em última instância pela taxa geral de lucro. A economia de todo o sistema já compunha o desenho exato do fim de um ciclo econômico. Faltava apenas a gota d’água.
Algumas das mais produtivas economias do mundo – como a alemã e a japonesa – giravam em falso há mais de um ano, sendo dirigidas em ponto-morto pela pujante economia norte-americana. Esta já dava sinais de ter atingido seu limite de acumulação e poderia, a qualquer momento, abrir uma tendência de paralisação. O gatilho para isso foi o coronavírus, paralisando subitamente a economia chinesa. Para além de todo o jornalismo e da economia vulgar – que essencializa uma “guerra comercial” entre EUA e China –, a verdade é que a economia norte-americana e a chinesa são, há décadas, praticamente complementares (uma com alta produtividade, outra com baixa), estabelecendo uma relação quase simbiótica. Tal relação assenta o eixo que permite aos EUA comandar economicamente o mundo. Devido ao coronavírus, entretanto – funcionando ao menos como gatilho – tal eixo se rompeu, e agora o sistema como um todo ameaça ser lançado no abismo.
Nesta segunda-feira, 16/03, a economia chinesa – que há muito seguia em desaceleração – divulgou a queda em sua produção industrial nos dois primeiros meses do ano: 13,5%. Tal cifra é quatro vezes superior ao esperado nos últimos dias pelos economistas consultados pelo The Wall Street Journal. O investimento público caiu 24,5% em janeiro-fevereiro sobre o ano anterior, enquanto o privado despencou 26,4%. As vendas no varejo encolheram 20,5%. A taxa de desemprego da China subiu a 6,3% em fevereiro, de 5,2% em dezembro, atingindo o nível mais alto desde que os registros oficiais começaram a ser publicados.
Alguns economistas, analisando o caso do coronavírus, nas últimas semanas consideravam a possibilidade de uma recuperação da economia mundial em forma de V – ou seja, após a queda brusca, devido ao vírus, viria uma rápida recuperação. Agora, entretanto, os economistas mais otimistas consideram que, se houver, a recuperação será em forma de U – ou seja, passada a crise do vírus, com o retorno à produção industrial, a recuperação seria lenta.
Isso entretanto é delírio. Após servir como gatilho na economia chinesa – uma economia de relativamente baixa produtividade –, agora os mesmos problemas se instalam nas principais economias do mundo, sobretudo na Europa. Alemanha, França, Itália e Espanha começam a passar pelo que a China passou, mas agora significando a paralisação de um tipo de capital muito mais dinâmico, caracterizado pela extração de mais-valia relativa. A poderosa economia alemã, sobretudo, devido ao seu alto grau de abertura ao mercado mundial, sofrerá um impacto com consequências devastadoras sobre todo o sistema capitalista (e cujo resultado será a explosão definitiva da União Europeia nos próximos anos).
Acaso apenas a economia chinesa – em simbiose com a dos EUA – não fosse capaz de paralisar a norte-americana, certamente a paralisação da economia europeia o faria em pouco tempo. Eis por que os mercados no mundo todo, antevendo, já mergulham. Eis por que o presidente do Banco Central dos EUA (Federal Reserve, FED), Jerome Powell, em seu característico linguajar eufemístico, já anunciou que a economia dos EUA terá um “crescimento negativo” no segundo trimestre deste ano. Na atual situação do ciclo econômico mundial, é muito pouco provável que um “crescimento negativo” dê base a qualquer crescimento. Ou seja: o “crescimento negativo” abrirá as portas da depressão mundial.
As portas do inferno começaram a ser abertas na semana passada, quando as principais bolsas dos EUA tiveram as maiores quedas dos últimos 30 anos, queimando tudo o que haviam acumulado em capital nos últimos três anos. Não à toa, na quinta-feira da semana passada, 12/03, Powell anunciou uma drástica injeção de dinheiro no moribundo corpo da economia dos EUA (a chamada “quantitative easing”). É preciso bombear, fazer circular dinheiro nas veias da economia. A falta de “liquidez” (dinheiro), como a falta de sangue sobre o corpo, leva à morte. Foram então anunciados, em 12/03, 1,5 trilhões de dólares a serem injetados na economia em poucas semanas, na forma de “recompra” (ou seja, quando o governo compra novamente títulos do próprio tesouro, antes vendidos por ele mesmo, possibilitando às empresas aumentarem seus caixas).
Para entender melhor a dimensão da medida anunciada, compare da seguinte forma: US$ 1,5 tri é mais ou menos metade do que um país como o Brasil produz em um ano (tomando por base o PIB em paridade de poder de compra). Ou seja: pegue a riqueza produzida por todos os trabalhadores brasileiros durante seis meses e injete em três semanas na economia dos EUA. Essa foi a droga aplicada para salvar o doente. E qual o resultado? Veja na bolinha branca no gráfico abaixo (referente ao movimento do índice industrial Dow Jones no último mês):
Eis a reação pífia àquela que foi – “quantitative easing” – uma das principais ferramentas do Banco Central dos EUA para contornar a crise de 2008. Tal injeção, é claro, ainda é cerca 3 a 4 vezes menor do que a realizada, como um todo, em 2008. Entretanto, ela agora é anunciada mesmo antes da explosão econômica!
O resultado pífio fez com que o FED tomasse medidas mais drásticas. Em pleno domingo (!), 15/03, – antecipando em 3 dias sua reunião –, Jerome Powell anunciou que o FED injetaria mais 700 bilhões de dólares na economia (dos quais, 500 bi em recompra de títulos e 200 bi em seguros de hipotecas). Além disso, anunciou a ampliação para noventa dias do prazo em que bancos dos EUA podem pegar dinheiro emprestado do próprio FED (antes, o prazo era irrisório).
Ainda nesse domingo, o FED anunciou a queda em sua taxa básica de juros para algo entre zero e 0,25%. Trata-se de medida, assim como a anterior, somente adotada no auge da crise de 2008 (mas, reafirmamos, agora assumida antes mesmo do estouro definitivo da crise!). Na prática, assim, descontando-se a inflação, temos agora uma taxa real de juros negativa nos EUA. Tal taxa visa a diminuir as poupanças (investimentos em bancos e títulos públicos) para fazer o dinheiro circular (como crédito), ou seja, sobretudo para ser investido em sua função produtiva de valor e mais-valia. Tal iniciativa do FED deu base a ações similares, também no domingo, por parte dos bancos centrais de vários outros países, como Nova Zelândia, Japão, Coreia de Sul e Austrália. Temos hoje algo jamais visto em todo o pós-segunda guerra mundial: os bancos centrais dos EUA, da Europa e do Japão estão atuando com taxa real de juros negativa.
E mais: a drástica situação fez com que o FED atuasse abertamente – ou seja, de facto, e não disfarçadamente, como em geral faz – enquanto o Banco Central dos Bancos Centrais (ou o banco central do mundo). Os dirigentes do FED, reunidos com dirigentes de outros importantes bancos centrais – com destaque para Japão, Inglaterra, UE e Canadá – acertaram uma série de medidas para que os bancos de seus países tivessem reservas suficientes em dólares frente ao choque que virá. Tal medida, chamada de “swap cambial reverso”, também é uma das “inovações” propiciadas pela crise de 2008. Além disso, acordou-se uma redução dos compulsórios bancários (ou seja, diminuiu-se o tamanho das reservas que os Bancos Centrais de cada país recolhem dos bancos comerciais e demais instituições financeiras de seus respectivos países).
Se não agisse com todas essas medidas listadas acima, a falta de “liquidez” geraria iminentes falências de grandes companhias internacionais, já nos próximos dias, o que generalizaria o pânico nos mercados. E qual foi o resultado de todos esses presentes maravilhosos para os capitalistas do mundo todo? A segunda-feira abriu com quedas violentas em todas as grandes bolsas de valores do mundo, acionando os “circuit breakers” (quando as bolsas param de funcionar após grande queda) em todos os continentes! Em toda a crise de 2008, a Bovespa acionou o circuit breaker, ao todo, 6 vezes. Na anunciada crise atual, já o acionou 5 vezes!
O mercado leu a ação dominical do FED como sinal de desespero por parte do órgão. E, assim, o próprio mercado desesperou-se. O grande temor é que os bancos centrais simplesmente não tenham mais grandes ferramentas de política monetária para agir em situação de piora. A impressão que dá é que as ferramentas de 2008 são muito pequenas. É claro que não se deve subestimar a capacidade dos agentes burgueses criarem novas ferramentas – muitas das quais têm de ser aprovadas nos parlamentos, o que se torna uma disputa política complexa. Mas deve-se também contar com a possibilidade dos gentes burgueses simplesmente não saberem o que fazer. A burguesia está mundialmente debilitada como classe dirigente. Veja-se a existência de representantes como Bolsonaro e Trump, expressões de uma classe que caminha de forma aventureira. Além disso, o próprio alarme social criado pelo coronavírus pode inviabilizar que a burguesia ateste o resultado das medidas que está tomando, ou seja, pode fazer com que não se consiga medir verdadeiramente o pulso das economias e a dosagem dos remédios.
É portanto provável que, dada a dimensão da crise que se avizinha, seja minado algum dos pilares da dominação do regime burguês em algum canto relevante do planeta. Se a crise não se manifestar economicamente em falência de ferramenta de contenção monetária, deve se manifestar logo em falência de ferramenta fiscal ou cambial (que já vêm se aprofundando nos últimos anos, desde a crise de 2008). Um dos elementos deve levar a outro, e, se somado à falência do pilar propriamente da repressão de classe – o poder policial –, uma grave crise (catastrófica) tende a se acercar de alguns importantes Estados nacionais. Ou seja, não mais em países secundários, mas em importantes potências veremos a ingovernabilidade plena (como já é anunciado nos últimos anos, com passeatas e revoltas nos EUA, na França e outros países). Trata-se da instalação de crises gerais em países que compõem os eixos econômicos do sistema. Envolvendo de tal forma ao menos um país assim relevante, criam-se as condições para a generalização da crise na totalidade do sistema capitalista. Algo similar ao visto com a crise de 1929, que durou mais de uma década, que repercutiu nas principais nações, e somente foi “superada” graças ao “esforço” coletivo – ou seja, bélico – das diversas burguesias nacionais.
Frente a tal situação, não devemos apenas “apertar os cintos”. Não adianta ser catastrofista e achar que a revolução virá necessariamente da crise geral do capital. As condições para uma revolução não são apenas objetivas, senão também subjetivas. E algo só vem a ser quanto todas as condições estão reunidas. Por mais falidos que sejam, hoje, os quadros burgueses, se a classe trabalhadora não tiver quadros à altura da tarefa, e sobretudo uma organização revolucionária à altura, a crise geral não será superada por um processo revolucionário, acarretando no aumento da miséria absoluta e relativa por várias gerações (bem como em processos bárbaros, propriamente destrutivos, bélicos, crises humanitárias etc.).
É hora, antes de tudo, de retomar o verdadeiro programa marxista, há muito abandonado pela dita “esquerda”. Foi sobretudo para uma situação assim, de crise geral do sistema capitalista, que Trotsky redigiu o Programa de Transição, o programa da IV Internacional, infelizmente abandonado pelos “trotskistas” em meados da década de 1950. Frente à situação de crise geral que se avizinha – que necessariamente produz demissões em massa e inflação acelerada –, os revolucionários devem responder erguendo um programa único mundial, transitório, que leve a classe trabalhadora necessariamente até a tomada do poder político. Trata-se de compreender que as lutas mais imediatas e mais “conservadoras” – conservar os empregos e o poder dos salários atuais, com a escala móvel de salários e a escala móvel das horas de trabalho – podem levar ao socialismo, pois tais reivindicações são impossíveis de ser atendidas pelo capital. Trata-se da disputa pela mais-valia, o alimento do capital. Mas, diferentemente do que acontece com as reivindicações usuais da burocracia sindical (que fecham as contradições em si mesmas, contornando-as), as escalas móveis favorecem a abertura das contradições com a ordem do capital, impulsionando objetivamente as formas de luta e organizativas da classe trabalhadora (facilitando a abertura de formas duais de poder, com ocupações de fábricas e conselhos, por exemplo).
Conjuntamente com a exigência de tais escalas, deve-se erguer a reivindicação por um plano de obras públicas, para diminuir a pressão do exército industrial de reserva (facilitando a luta pelas escalas), para o que organizações populares e de desempregados são fundamentais.
As organizações revolucionárias da esquerda brasileira têm de olhar para o horizonte e preparar a ação efetiva, isto é, revolucionária. O perigo que ronda realmente a classe trabalhadora hoje não é o coronavírus (que aliás será usado como álibi pelos capitalistas; apresentado como culpado pela crise, e as paralisações em seu nome poderão ser usadas para iniciar reestruturações produtivas, como já ocorre na China). As organizações de esquerda, revolucionárias e socialistas, no Brasil, precisam urgentemente iniciar atividades conjuntas para esclarecimento e depuramento de um programa para a crise econômica que se avizinha, um programa não estatista, um programa que arme a própria classe trabalhadora, confiando apenas em suas próprias forças, para não só resistir aos duros tempos que se aproximam, mas sobretudo para a luta pelo poder econômico e social.