Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
(Gregório de Matos Define a Sua Cidade)
Sobre o motorista e motoristas
Antigamente, nos bons filmes de suspense, o pivô da trama eram frequentemente mordomos. Já no drama cotidiano brasileiro, produzido por burgueses e seus políticos, o destaque cabe muitas vezes a motoristas.
Quem não se lembra de que na queda de Collor foi fundamental o depoimento de Eriberto França, o motorista do presidente? França confirmou decisivamente todo o esquema financeiro ilícito de PC Farias por trás do governo e suas relações com Collor. Agora há o caso decisivo, não menos collorido (laranja), de Fabrício Queiroz, com o qual o recém empossado se emaranha mais e mais. Se seguir assim, logo-logo Bolsonaro seguirá os passos de Collor.
Mas não para por aí: dois ex-motoristas de Lula acabaram de confirmar a nova delação de Palocci. Cláudio Gouveia e Carlos Pocente eram motoristas do ex-presidente em Brasília e São Paulo, quando ele recebeu, das mãos de Palocci, valores em espécie dentro de caixas de celular e uísque. Em média, R$ 50 mil em cada caixa. Tais valores seriam apenas uma parte (pequena) da propina de R$ 15 milhões da Odebrecht a Lula, pagas devido ao favorecimento à empreiteira na produção da Usina de Belo Monte.
Terrir bolsonarista
Geneticamente incapaz de produzir algo sério e elevado — como um suspense inglês com mordomos —, a burguesia brasileira decidiu inventar um gênero próprio de narrativa, para nos servir em doses homeopáticas. No período que vai de Collor a Bolsonaro — muito bem preenchido por Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer et caterva —, reafirma-se um gênero único que perfeitamente mistura terror com riso: o Terrir!
Ao passo que a maioria da população é aterrorizada pelo subemprego, pelo facão (demissão), pelo crescimento do custo de vida, pelas dívidas, pela repressão policial e para-militar, os políticos burgueses passeiam acima e abaixo, com seus motoristas particulares (de carros ou jatos), rumo a novos atos de um pastelão sem fim. Falamos já das trapalhadas recordes dos bolsonaristas. Mas o caso só piorou:
O gabinete do próprio Jair Bolsonaro confirmou que sua assessora Nathália Queiroz (filha do “motorista” Fabrício) bateu ponto certinho, todo dia, em Brasília. Nathália — a mesma que gravou o pai dançando horas antes de uma cirurgia de câncer que, ao que parece, é falsa — não faltou uma só vez, em dois anos, em seu trabalho como assessora de Jair Bolsonaro. Preencheu sempre as 40 horas semanais. Todavia, como se sabe, nesses dois anos a assessora também trabalhava como personal trainer de famosos e globais no Rio de Janeiro. Todo dia, a prestativa e esforçada Nathália publicava em redes sociais suas fotos em piscinas ou praias cariocas!
Jair Bolsonaro, tendo aprendido com outro presidente, disse que não sabia de nada e que a culpa, se houver, é de seu antigo chefe de gabinete. E claro: reafirmou que não é ilegal alguém ter “dois empregos” para complementar renda. A pobre garota bem podia ser assessora de Jair Bolsonaro e personal trainer de famosos, não é? O detalhe não explicado é como ela voava todo dia do Rio de Janeiro para Brasília e voltava em seguida…
Nathália Queiroz, ao que tudo indica, fazia com Jair Bolsonaro o mesmo que seu pai Fabrício fazia com Flávio Bolsonaro. Era a famosa “rachadinha”: pegava parte do salário parlamentar para si e devolvia a parte do leão para enriquecimento ilícito de seus chefes. Ela própria aprendeu com o pai, pois antes de trabalhar para Jair foi também assessora de Flávio Bolsonaro. Fabrício era o laranja-mór bolsonarista (até agora, ao menos). Ele recebia não apenas dos muitos outros assessores de Flávio, mas também da própria filha, e os passava a seu chefe direto, ou, ainda, à mulher do presidente, Michele Bolsonaro. Será que é por isso que toda a família quis entrar na política?
Assim se explica também, perfeitamente, como Flávio Bolsonaro quadruplicou seus bens em apenas um mandato. E agora, quando, numa suprema cagada, recorreu ao STF para ter Foro Privilegiado, Flávio, que nem era acusado formalmente, reconheceu sua culpa. A carapuça serviu!
Para a nossa sorte — e contra a vontade dos petistas — o Foro Privilegiado foi restringido no ano passado. Deveria ter sido extinto! Parlamentares agora só têm Foro Privilegiado em questões relativas diretamente a seus mandatos no presente. Ou seja: tanto Flávio Bolsonaro quanto seu próprio pai, o Presidente, podem ser investigados e condenados por seus atos com Fabrício Queiroz e sua família. A restrição do foro abriu um caminho claro e consistente para um impeachment do novo presidente. Basta saber se haverá pressão popular, ou seja, antes de tudo, se a oposição terá coragem de ir às ruas contra a corrupção dos Bolsonaro.
Quem se afunda?
Afundam-se, antes de tudo, o clã Bolsonaro e sua escória de gangsters, vigaristas, impostores e aventureiros — os mesmos que foram passear na China, em mais uma cena de terrir. Afunda-se, assim, a esperança inocente na possibilidade de renovação da política brasileira por meio do Poder Executivo e do Legislativo (o “poder do voto” sob a democracia burguesa).
Mas também se afundam outras “grandes” figuras associadas ao “mito”. Dessa forma, Jair Bolsonaro acabará logo com o “mito” Sérgio Moro, afundando mais o Poder Judiciário (que Moro representava). Acabará também o mito das Forças Armadas como “instituição mais bem vista no país”. Os militares provam a cada dia serem feitos do mesmo barro (lama) que os petistas. O Vice-Presidente, Gen. Mourão, saiu em defesa de Flávio Bolsonaro e atacou o MP do RJ! Mourão deveria se preocupar mais em explicar como seu filho virou assessor da presidência do Banco do Brasil e triplicou seu salário. Eles, os militares, são os mesmos que querem aplicar uma reforma da previdência — para toda a nação trabalhar até morrer — e buscam ser a única exceção à reforma! Piada! Também o Poder Militar entrará em descrédito, em processo.
Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Poder Militar — todos se afundam e afundarão mais na conjuntura que se desenha. Mais alguém?
Até agora falamos apenas das forças da ordem burguesa, de sua força subjetiva (sua superestrutura). Mas há ainda outras forças que se afundam e se afundarão mais: as forças de contenção do proletariado, as forças de corrupção da revolta popular instaladas em seu próprio seio. Também se afundam os petistas, seus sindicalistas e grande parte do setor social que, histérica e covardemente, foi de novo para baixo das asas do PT, temendo a “ameaça fascista” de Bolsonaro. O “risco do autoritarismo” teria justificado, mesmo que apenas no segundo turno eleitoral, a pobre lógica do “mal menor”. Vê-se agora que — como afirmávamos — a crise social, econômica e política do país é muito maior do que o tigre de papel chamado Bolsonaro e seus militares.
Por que a “esquerda” foi para baixo das asas do PT no momento decisivo? Não é fortuito. Ocorreu como ocorreu sempre nas últimas décadas. As cenas de terrir bolsonarista apenas fecham o festival de besteiras que assola o país desde o início do ciclo democrático-burguês (metade dos anos 1980). O PT e a maioria que ajudou a construir esse partido, fundamental para a ordem democrático-burguesa, são incapazes de pensar em outra perspectiva, senão a deste ciclo. Por isso, dão o abraço dos afogados. Tais setores não construíram o PT à toa, mas por concordar, em maior ou menor grau, com seu programa pequeno-burguês e reformista, estatista-burguês e não dialético.
O afundar dos bolsonaristas, o afundar das instituições burguesas, o afundar dos petistas e variantes — bloqueio da classe trabalhadora — reabrirão possibilidades de construção de uma nova organização revolucionária do proletariado no Brasil nos próximos anos. É claro: nada é garantido de antemão. Tudo está em aberto e por ser construído. Mas os erros do passado têm de servir de lição, do contrário retornarão sempre, e, com eles, em formas diferentes e em graus superiores, retornarão os males que há séculos nos assolam.
Há séculos, sabe-se que Brasil — quase como a Bahia de Gregório de Matos — tem seis letras, mas suas principais são estas duas: FF. O furtar e o foder (a população). Eis o script do terrir brasileiro, produzido cotidianamente pela lumpem-burguesia e seus capachos da política profissional.
Que se afundem!
Tanto pior para eles, tanto melhor para nós!
Os únicos capazes de resgatar a decência política neste país são os trabalhadores em revolta. Pega fogo, Cabaré!