Transição Socialista

Planalto Central: o picadeiro onde brincam com nossas vidas

Na segunda-feira, 6 de abril, o Brasil amanheceu precisando planejar com urgência o abastecimento de materiais de proteção, no esforço de contenção do coronavírus. Os estoques de máscaras e a quantidade de respiradores funcionais disponíveis, sabia-se, dariam para as próximas três semanas, mais ou menos. O planejamento estratégico e a gestão nacional da saúde paralisaram um dia inteiro, no entanto, à espera da demissão de Mandetta, desconfirmada no fim do dia e que ainda demoraria mais dez dias para ocorrer de fato.

O país acabara de ver fornecedores chineses cancelarem pedido de importação de respiradores, diante de ofertas maiores vindas de outros países – sobretudo, sabe-se, dos EUA. Mas, para aqueles à frente da nação, era dia de disputas palacianas e grandes encenações, com vistas às eleições de 2022.

Esse episódio, por si só, demonstra porque a queda imediata de Bolsonaro é um requisito para a sobrevivência de dezenas ou centenas de milhares de brasileiros. Ao longo da semana passada, entretanto, mais impressionante do que o episódio de segunda-feira foi a análise que dele fizeram alguns “especialistas”.

A demissão, então dada como certa, só se confirmaria após Mandetta colocar-se publicamente contra Bolsonaro, queimando enfim seus navios.

Até duas semanas atrás, setores da imprensa especializada e até mesmo da dita “esquerda” chegaram a cogitar que o general Braga Netto representaria os militares tomando posições-chave no governo, aos poucos, para minimizar o controle real de Bolsonaro sobre o Executivo.

Desde que assumiu a Casa Civil, o general Netto tem na verdade atuado como apaziguador. A princípio, costurou acordo entre militares e Bolsonaro para permanência de Mandetta. E esse acordo só se rompeu quando os militares se voltaram contra o ex-ministro pela sua tomada de posição pública.

Todo o imbróglio entre Bolsonaro e Mandetta, no entanto, não é questão central da atual conjuntura. Na prática, mais uma vez, tudo muda para voltar ao mesmo lugar na Brasília de Bolsonaro. O novo ministro Nelson Teich já reconheceu o papel da OMS e promete atuar em coordenação com os Estados. As pressões por reabertura terão impacto nos governantes locais como nos federais, assim como a subsequente pressão por fechamento.

Este vaivém será nossa vida nos próximos meses, apenas de forma intensificada ao que vinha ocorrendo até aqui, mas sem mudança substancial na trajetória, apesar do alarde. Não haverá abandono completo da quarentena, até porque Bolsonaro não tem poder real para isso. Mas também não haverá o nível necessário de rigor nela, pois nem prefeitos nem governadores estão de fato interessados primeiramente em nossa saúde. As aberturas serão precipitadas e, cada vez menos, as diferenças de discurso entre esferas governamentais serão apenas isso, diferenças de discurso.

A linha geral do Ministério da Saúde seguirá a mesma, mas com uma mudança fundamental: o novo ministro não aparecerá tanto na imprensa. No fundo, o grande problema de Bolsonaro com Mandetta é apenas a evidência pública que o ministro ganhou.

Bolsonarismo como encenação

Bolsonaro governa justamente como um grande personagem, cujas declarações e posicionamentos visam sobretudo conectar-se ao sentimento de setores cada vez mais pauperizados da população, crescentemente marginalizados do processo produtivo. As declarações dele não podem jamais ser tomada pelo seu significado, pois não tem a intenção de produzir qualquer impacto real, mas devem, isto sim, ser entendidas pelo impacto pretendido em sua audiência, seu público fiel. Essa parte da população reduz em tamanho a cada semana, mas demonstra resiliência para manter-se em patamar razoável, entre um quarto e um terço do eleitorado.

A imagem é central na lógica do bolsonarismo e a função e a forma deste governo coincidem com a do ilusionista, que precisa fazer passar aos olhos algo muito distinto do que passa na realidade. É claro que todo governo burguês tem, em grande medida, este papel, mas o atual governo representa uma acentuação dessa necessidade de distanciamento entre a intenção e o gesto.

Bolsonaro não quer dizer o que diz. Ele diz porque precisa, dentro de uma bem desenhada estratégia de comunicação, que até hoje ainda dá um nó naqueles que se dizem “progressistas”, usando-os a seu favor.

Como se têm comprovado, a propaganda, utilizando-se dos meios mais modernos e eficientes disponíveis, pode muito bem manter apoio considerável a algo que, em sua apresentação, diverge das ações reais do governo e também do consenso científico. No fundo, para Bolsonaro, pouco importa o fim da quarentena ou sua continuidade, conquanto ele possa manter saldo positivo em sua avaliação e no alcance orgânico e profissional de suas plataformas de comunicação. Essas são as variáveis que a ele interessam, pois tudo que ele e sua família querem é maximizar sua permanência instável no Estado, obter o máximo de benesses possível neste período, e encontrar-se em boa condição de negociar uma futura “saída” com imunidade judicial.

Até o pico da epidemia passar, Bolsonaro seguirá fazendo jogo de cena com os demais poderes federais e locais, com seus ministros, com a imprensa, com o mundo. Depois da queda do ministro, permanece de pé, com o fortalecimento de apoio de suas bases que, no entanto, derretem lentamente.

Bolsonaro seguirá alimentando divergências de imagem com outras autoridades, enquanto na prática deixa tudo transcorrer exatamente ao contrário do que diz. Porque para ele, o central é isso, o discurso, o véu que encobre a realidade, não o conteúdo por trás dele.

O que importa para o presidente são as reações a suas declarações, mais do que a efetividade ou não de quaisquer medidas que ele ou sua equipe de governo possam propor.

Seria difícil explicar como um governo tão frágil e inepto pode costurar uma unidade como esta e manter-se de pé, usando-se sobretudo de excessivas encenações. Seria, se não fosse a completa falta de ação da oposição, que reiteradamente optou por deixar o governo queimar lentamente, pensando nas eleições de 2022. Mais uma vez, a lógica eleitoral da oposição facilita a vida do governo.

A tese do autogolpe

A análise equivocada que ganhou e perdeu força nas última semanas, de que Bolsonaro estaria sofrendo um golpe dos militares em prestações, foi ainda exagerada por parte da mídia autointitulada “progressista” e “alternativa”, dirigida e mantida pelo PT. O objetivo era criar a impressão de que exigir a saída de Bolsonaro seria perigoso, pois abriria caminho para os militares darem seu golpe e assumirem o controle do país. Essa posição ajudava a reforçar a decisão do PT de colocar-se contra o “Fora Bolsonaro”. Com a justificativa oficial de que não é momento de pensar em impeachment, mas de focar na recuperação da economia e do emprego, Lula orientou o partido a continuar sustentando, indiretamente, o presidente.

Uma das falhas dessa análise que o petismo adotou por conveniência eleitoral é que ela ignora que os militares, hoje, já partilham do poder… E que parte de sua cúpula considera que isso têm lhes custado caro demais, principalmente em termos de imagem. O episódio da publicação dos próprios dados pessoais pelo general responsável pela segurança do governo não foi um ponto fora da curva. Estar no poder têm trazido para os militares impactos mais negativos do que positivos na imagem institucional das forças armadas. Eles temem a desmoralização que uma agonia lenta do governo pode representar.

A queda de Bolsonaro neste momento não só permitiria coordenação superior da contenção da epidemia, mas enfraqueceria as articulações nas diferentes esferas do governo. Para além da crise sanitária, os próximos meses e anos serão de intensa disputa econômica, na qual qualquer arsenal desenvolvimentista deste ou de outro governo se mostrará insuficiente. Será preciso, para eles, reduzir ainda mais os direitos trabalhistas e facilitar o achatamento salarial.

O desemprego se espalhará como praga pelo mundo e os Estados se dividirão entre os que discutirão políticas de renda básica e aqueles em que os serviços públicos e o acesso a itens de primeira necessidade vão retroceder rapidamente. Os salários vão diminuir, comprimidos pela disputa no mercado de trabalho e pela legislação. Passado o ápice da pandemia, governantes dirão mais uma vez que é preciso apertar o cinto do peão ainda mais, para a economia voltar a crescer, num futuro cada vez mais imaginário. A dimensão da crise global que se desenha exigirá do Congresso e do Executivo ataques aos padrões de vida dos trabalhadores. Os patrões vao clamar por isso e seus funcionários em Brasília vão ouvir.

A manutenção deste governo capenga, agora, demonstra grande conciliação entre setores aparentemente antagônicos da política nacional. Enquanto esbravejam como se fossem inimigos, tanto o lulismo quanto o bolsonarismo optam por cozinhar a situação atual para manterem-se vivos. Disputam espaços e alavancas políticas pelo controle da máquina do Estado, mas sabem guardar posição para os momentos de embate nas urnas.

Não há condições políticas nem indicações institucionais sérias de que esteja se desenhando golpe dos militares em Brasília. Cair nesse jogo de discurso, agora, é facilitar o trabalho da nata do empresariado e do mercado financeiro nacional, que já articulam as medidas para sua sobrevivência, que levarão à ruína do peão.

Relativizar a importância da queda de Bolsonaro neste momento também é um erro, ainda que menos grave. Apesar das intenções declaradas de denunciar o sistema político, defender a linha de “Fora Bolsonaro, Mourão e os militares” é um erro por igualar o presidente ao vice, o que, na prática, apenas enfraquece e embaralha o “Fora Bolsonaro”. Ora, Mourão tem apoio superior ao presidente hoje e a população mal o conhece para querer depô-lo. Há uma avaliação geral positiva feita à distância. Nem de longe há rejeição crescente a ele que embase essa palavra de ordem. Nem haverá enquanto ele não for testado aos olhos do povo.

Essa confusão na agitação até mesmo de organizações de esquerda sérias, como o PSTU, é produto de uma incompreensão que nasceu na derrocada do petismo. A dita “esquerda”, mesmo a que não se reivindicava lulista, demorou para se colocar ao lado da população quando a palavra de ordem de “Fora Dilma” ganhou dimensão de massas no Brasil. O próprio PSTU tergiversou por algum tempo e defendeu um “Fora Todos”, que igualmente escondia a tarefa imediatamente colocada, embaralhando-a com tarefas futuras, que ainda pareciam distantes aos olhos do trabalhador, utópicas ou até mesmo desnecessárias.

Essa confusão, criada para explicar a demora e a dúvida em defender a queda do governo petista, acabou criando um erro de procedimento, segundo o qual seria necessário sempre defender palavras de ordem que denunciem o caráter do regime, ou estaríamos sendo coniventes com ele. Não defender a queda de Mourão seria, segundo essa lógica, capitular a ele e aos militares. Assim como defender a queda de Dilma sem atacar Temer teria sido capitular a este último.

Esse vício de procedimento pode ser perigoso, porque defender uma palavra de ordem sem aplicação prática é um equívoco. Mesmo que não haja condições, hoje, dos revolucionários pressionarem pela aplicação efetiva de suas propostas, elas não podem soar impraticáveis, pois assim jamais serão ouvidas. Precisamos basear sempre a denúncia dos serviçais da burguesia na experiencia prática das massas com eles, não em nossas supostas “sabedoria” ou “autoridade”.

Para salvar as nossas vidas, Fora Bolsonaro!