O presidente americano Joe Biden anunciou gigantescos planos capitalistas (dos quais alguns já entraram em vigência). Trata-se da forma de luta da classe burguesa na crise econômica que se instala. Enquanto isso, a chamada “esquerda socialista”, por ter tido seu programa político surrupiado pelo presidente, inventa desculpas teóricas para seguir com seu olhar parado, moroso e burocrático.
Joe Biden é agora o “homem de US$ 6 trilhões de dólares”. Esse é mais ou menos o valor total dos três pacotes até agora lançados pelo presidente americano (estando um deles já aprovado no Congresso e dois em processo inicial de tramitação). Não é pouca coisa. Para se ter uma medida comparativa, lembremos que o PIB da maior economia capitalista do hemisfério sul, o Brasil, foi de US$ 1,84 tri em 2019. Ou seja, é como se Biden planejasse injetar quase três brasis e meio na economia dos EUA (claro, não de uma só vez, mas distribuídos ao longo de dez anos).
Vejamos um resumo dos três pacotes de Biden:
1. American Rescue Plan [Plano de Resgate dos Americanos], no total de US$ 1,9 tri, já vigente, aprovado em março de 2021 pelo Congresso. O plano consiste em medidas emergenciais frente à Covid-19, sobretudo seguro-desemprego (ampliado em valores e tempo), cheques mensais de US$ 1.400,00 a famílias mais pobres (com acréscimo de US$ 300,00 mensais por filhos, que pode se tornar permanente após a epidemia), perdão das dívidas com ensino superior (a segunda maior dívida das famílias americanas), entre outras coisas;
2. American Jobs Plan [Plano de Empregos Americanos], de US$ 2,3 tri (iniciando tramitação). Plano voltado sobretudo a obras públicas, infraestrutura, para mudar o paradigma produtivo dos EUA, reincorporar ao país indústrias americanas espalhadas pelo mundo (“desglobalização”), fomentar a chamada “economia verde” (retomada do chamado Green New Deal), e, com tudo isso, gerar empregos. Destaque deve ser dado ao favorecimento, pelo Estado, da sindicalização em massa dos trabalhadores, entre outras coisas;
3. American Families Plan [Plano de Famílias Americanas]; US$ 1,8 tri (iniciando tramitação). Plano voltado sobretudo ao aumento do grau de formação da força de trabalho americana, com considerável teor de estatização do ensino. Serão destinados US$ 225 bi para pagamento de creches, acesso público e universal à pré-escola; US$ 109 bi para cobrir dois anos de faculdade gratuita a todos (e mais US$ 85 bi para auxiliar os que obtiverem diplomas em até quatro anos); cerca de US$ 110 bi para auxiliar em faculdades alunos de “origem menos favorecida” (com destaque para as universidades que concentram a população negra), entre outras coisas.
Ao que parece, muita gente não tem clareza da dimensão desse conjunto de planos. Entre setores especializados da mídia, entretanto, fala-se correntemente do maior plano desde o New Deal, de Roosevelt, no início dos anos 1930. Para dar uma dimensão do que se trata, montamos uma pequena tabela comparativa. Nela há não apenas dados atualizados do New Deal e do plano do Biden, mas também do plano American Recovery and Reinvestment Act (ARRA, sigla em inglês para “Lei Americana de Recuperação e Reinvestimento”), de 2009, implementado sob a presidência de Barack Obama. Veja-se:
1. valores atualizados (em US$) | 2. valor per capita (em US$) | 3. duração em anos | 4. valor per capita anual (em US$) | 5. proporção do PIB | |
New Deal 1933 | 653 bilhões | 5.231,00 | 4 | 1307,75 | 40% |
ARRA 2009 | 840 bilhões | 2.738,00 | 3 | 912,66 | 5,70% |
Biden 2021 | 6 trilhões | 18.072,00 | 10 | 1807,20 | 28,50% |
(Os dados do New Deal e do plano de 2009 são atualizados para valores de 2015. Foram recolhidos pelo economista Bill Dupor, no departamento de Economic Research do Federal Reserve Bank de St. Louis. Tais dados não são, por isso, uma figura exata da realidade de 2021, embora permitam uma aproximação rica)
Como se vê na coluna 1, o New Deal custou à nação capitalista americana, em termos absolutos, atualizados para 2015, US$ 635 bilhões. O plano de 2009 custou aos cofres americanos, em termos absolutos, mais do que o New Deal: US$ 840 bi. Já os atuais planos de Biden dão um salto tremendo em termos absolutos: US$ 6 tri.
Entretanto, se observarmos apenas os valores absolutos (quantidade), não teremos a dimensão real dos planos. Temos de olhar, antes de tudo, para a qualidade de tais ações, ou seja, para o quanto significam se distribuídos entre o conjunto da população americana de cada época e ao longo do tempo de vigência de cada plano. Trata-se de ver a relação dólar per capita anual. Somente assim podemos refletir sobre a possibilidade de tais planos ativarem a produção capitalista (afinal, é disso que se trata: ativar a economia com uma medida malthusiano-keynesiana que crie “demanda efetiva”; uma intervenção do Estado sobre a esfera da circulação capitalista para fazê-la alimentar artificialmente a produção de valor e mais-valor até que a crise passe).
Observando a coluna da distribuição do valor em dólar per capita (coluna 2), já temos um ganho de qualidade, mas ainda não completo (afinal, tal valor per capita é distribuído em números de anos diferentes, em cada plano). Mas se analisarmos a coluna da distribuição do dólar per capita ao longo dos anos de vigência de cada plano (coluna 4), temos o elemento possivelmente mais rico para considerar a dimensão do plano atual. Essa coluna nos revela que o plano atual de Biden é duas vezes maior do que o plano de resgate de Obama em meio à poderosa crise de 2009 (cerca de US$ 1.812,60 no plano de Biden e de US$ 912,60 no plano de Obama). E, mais interessante ainda, essa coluna nos revela que o plano de Biden é quase um terço maior do que o New Deal de Roosevelt (US$ 1.812,60 no plano de Biden e de US$ 1.307,75 no plano de Roosevelt).
Ou seja: temos à nossa frente a maior intervenção estatal (excetuadas as guerras, é claro) realizada por um Estado burguês na era moderna capitalista. A despeito de usar erroneamente o termo “esquerda”, o Wall Street Journal parece ter razão ao afirmar que se trata da “agenda de esquerda mais ambiciosa da história” (WSJ, 28/04/2021). Note-se: “da história”, não da “história dos EUA”.
Biden afanou completamente o programa da nossa chamada “esquerda socialista”. Seus pacotes estatizantes serão pagos não apenas com taxação sobre o lucro das empresas, mas também com a taxação das grandes fortunas (imposto progressivo). Vejam abaixo alguns trechos de seu importante discurso ao Congresso no dia 28/04 (no marco dos seus cem primeiros dias de governo). O discurso pode ser acessado integralmente neste vídeo.
A partir dos 33 minutos, Biden afirma o seguinte sobre sindicalização e salários:
“Há bons rapazes e mulheres em Wall Street, mas Wall Street não construiu este país. A classe média construiu este país, e os sindicatos constroem a classe média. Eis por que estou requisitando ao Congresso a aprovação da Lei do direito à organização e o envio à minha mesa, para assim apoiarmos o direito à sindicalização. A propósito, já que estamos falando de mandar coisas à minha mesa… aumentemos o salário-mínimo a U$S 15 [a hora]! Ninguém trabalhando 40 horas por semana deveria viver abaixo da linha de pobreza! Temos de garantir uma maior igualdade e oportunidade às mulheres, e para isso tragamos também à minha mesa a lei da justiça na folha de pagamento: salário igual [para trabalho igual]. Já demorou demais!”.
Aos 48 minutos, após apresentar seus “ambiciosos planos”, Biden afirma o seguinte sobre as taxações de fortunas:
“Como pagaremos pelos meus planos para empregos e famílias? Deixei claro que podemos fazê-lo sem aumentar os déficits. Iniciemos pelo que não farei: eu não imporei qualquer aumento de imposto sobre pessoas que ganham até US$ 400 mil [por ano]. É hora de as corporações da América e o um por cento mais rico dos americanos começarem a pagar uma parte justa. […] Estudos recentes mostram que as 55 maiores corporações do país não pagaram nada em impostos federais no último ano. E essas 55 corporações tiveram um acréscimo de US$ 40 bilhões como lucro!”
Pouco após 1h de discurso, Biden fala literalmente de “racismo estrutural” e entra no tema do assassinato de George Floyd, que desatou o movimento Black Lives Matter. Diz ele o seguinte:
“Supremacia branca é terrorismo, não ignoraremos isso. Meus colegas americanos, nós temos de curar conjuntamente a alma desta nação. Há cerca de um ano, antes do funeral, eu falei com Gianna Floyd, filha mais nova de George Floyd. Ela é bem pequena, por isso me ajoelhei para falar com ela, para poder olhá-la nos olhos. Ela me olhou e disse ‘meu pai mudou o mundo’. Bem, após a condenação do assassino de George Floyd, poderemos ver quão certa ela estava, se… se tivermos coragem de agir como Congresso. Todos nós vemos o peso da injustiça sobre as costas dos negros americanos. Agora é a nossa oportunidade para fazer algum progresso real!”
Alguém que ouvisse o discurso em português acharia que se trata de algum candidato do PSOL, ou até mesmo do PSTU, a alguma prefeitura brasileira. Apesar de detalhes, bravatas (às vezes até o uso extravagante da palavra “Conselho”), a lógica é essencialmente a mesma: gestão do Estado capitalista, estatizações e impostos (nunca a abolição da relação capitalista).
Dado que a presidência da maior potência capitalista mundial roubou o programa da “esquerda socialista” (ou teria sido o contrário?), esta, percebendo que sua própria existência foi colocada em risco, desenvolve novas e frágeis teorias dogmáticas. Tudo para segurar a militância. Segundo a nossa esquerda, o plano de Biden necessariamente não dará certo ou porque é modesto demais ou porque é irrealizável na suposta atual fase histórica do capitalismo.
A primeira crítica – ser modesto demais –, como vimos, é falsa. O plano é até maior do que o New Deal. A afirmação de que é modesto sustenta-se apenas na ignorância dos dados acima apresentados. Mas, para piorar, tal crítica exprime um raciocínio na mesma lógica de Biden. Ao afirmar que o plano é modesto, a “esquerda socialista” veste a carapuça da gestão do Estado capitalista. Ela pensa, assim, no mesmo eixo de atuação de Biden, apenas querendo que se aja mais radicalmente (que se aumente as cifras de taxação de grandes fortunas, as verbas para a população etc.).
A segunda crítica é mais complexa. Ela concebe que o capitalismo – devido à transnacionalização do capital, globalização etc. – estaria numa “nova fase histórica” em que toda medida estatal nacional-desenvolvimentista estaria fadada ao fracasso. Medidas como as de Roosevelt não seriam mais possíveis historicamente. O erro consiste em achar que o New Deal de Roosevelt e os planos de Biden são nacional-desenvolvimentistas (quando, na realidade, consistem apenas em medidas anticíclicas para contra-arrestar crises capitalistas). Ao dizer que o nacional-desenvolvimentismo estatista não é mais possível hoje, afirma-se indiretamente que ele foi possível ontem. Assim Roosevelt ganha até certa justificação histórica. Essa esquerda vê todos os problemas a partir da ótica nacionalista. Para ela, não sendo mais possível o programa estatista hoje (por alguma suposta trava objetiva, a “crise estrutural”, a “financeirização” ou outra panaceia do tipo), caberia à classe trabalhadora levar adiante o nacionalismo da burguesia. Ela ignora: 1) que a ação estatal é uma das almas do capitalismo moderno desde sua origem (sua alma malthusiana), agindo sempre em momentos de crise; e 2) que desde que decretaram a vigência da suposta “crise estrutural” (virada da década de 1960 para 1970) o capitalismo usou o Estado para contar suas crises com relativo sucesso (como em 2009, por exemplo, com o ARRA).
Mais do que torcer contra Biden nessa forma desorientada – em que só comprova sua adesão aberta ou velada ao próprio programa do presidente –, a esquerda revolucionária tem de entender a urgência da situação e se armar corretamente. É preciso compreender que essa gigantesca ação da burguesia americana já é sua forma de intervenção na luta de classes em meio à crise que se instala. A burguesia americana tem o sentimento da urgência, e não o olhar parado da nossa esquerda (que parece considerar, em sua morosidade burocrática, que sempre há o amanhã).
A esquerda socialista precisa abandonar completamente suas concepções atuais e se armar com um programa realmente à altura dos embates que se anunciam. Para isso, ela precisa sair do eixo reformista (com o qual segue Biden) e sustentar um programa conscientemente voltado a tornar já o estouro da crise em início de transição ao socialismo. O programa revolucionário para o momento presente consiste no seguinte:
– Não admissão de qualquer arrocho salarial. Reajuste mensal dos salários de acordo com a inflação dos produtos básicos (escala móvel de salários). Com o agravamento da atual crise capitalista, uma situação de inflação galopante ou hiperinflação tende a se instalar. Os reajustes anuais das categorias permitem que a burguesia passe às costas da classe trabalhadora o preço da crise. Contra isso, é necessário reivindicar o reajuste automático mensal, a constar nos acordos coletivos das categorias.
– Não admissão de qualquer demissão! Reajuste mensal da jornada de trabalho entre todos (escala móvel das horas de trabalho). Se em momento de crise a burguesia necessita produzir menos, que o faça, mas sem demitir ninguém ou colocar trabalhador em banco de horas. As horas de trabalho devem ser divididas entre todos os que já trabalham. Da mesma forma, se a burguesia quer introduzir um novo paradigma produtivo, com novas máquinas e instalações, que o faça, mas sem ninguém ir para rua!
– Frentes públicas de trabalho! A classe trabalhadora não pode admitir que uma parcela sua seja usada para pressionar quem está empregado (ou seja, usada para aumentar o grau de exploração do conjunto de sua classe). É necessário um plano de obras de longo prazo, que diminua a pressão dos desempregados sobre os empregados.
As duas primeiras medidas, se implementadas conjuntamente numa ampla região econômica, travam as formas de extração de mais-valia (paralisam ao mesmo tempo o decréscimo do salário relativo e a ampliação da mais-valia relativa). Diferentemente das reivindicações da burocracia sindical de “esquerda”, tais reivindicações não abrem brechas para a lógica da acumulação do capital sempre se reinstalar e contornar as crises ou as lutas proletárias. Mas elas só travam a extração de mais-valia se estiverem acompanhadas da última reivindicação (frentes públicas), cuja função é travar a lei geral de acumulação do sistema capitalista (o uso da superpopulação relativa para aumentar o grau de exploração do proletariado). Assim, os sindicatos e organizações de empregados devem se unir aos movimentos populares de desempregados para aplicar conjuntamente tais medidas.
Não há por que aguardar um segundo sequer para o início da implementação desse programa. A burguesia da principal potência capitalista mundial já passou à ação com pesadas ferramentas.