Por Pablo Paniagua, de Santa Cruz de la Sierra
Até agora se traçam dois caminhos para a conjuntura boliviana: a despressurização das massas que protestam contra a violação da democracia eleitoral (burguesa) por Evo, ou o estouro de uma insurreição popular a médio prazo, para deposição do governo autoritário.
Por um lado, no cenário mais simples (despressurização), vê-se: 1. A OEA (Organização dos Estados Americanos) prepara uma auditoria encomendada por Evo Morales; 2. Morales continua comprando e mobilizando seus aliados para conter – via medo e violência – os manifestantes, que agora já não lutam mais apenas contra a fraude eleitoral, mas também contra o autoritarismo crescente; 3. Os líderes de oposição alimentam a consciência social sem conduzir a ações decisivas.
Falta menos de uma semana para que a OEA emita seu informe de auditoria. Assim como Evo, os bolivianos têm total certeza de que esse organismo revalidará sua “vitória”, mas, diferentemente do mandatário, os bolivianos não creem na legitimidade desse resultado. Para eles, está claro que, assim como na Venezuela de Maduro em 2016, na Bolívia será revalidado um processo fraudulento.
A auditoria se desenvolve apesar de terem sido perdidas as informações que lhe dariam base (parte dos papéis do sufrágio foi queimada e jogada no lixo), e de que o grupo de Morales desconsidera, para a analise dos votos, a interrupção da contagem por 24h por parte da TREP – o que soou o alerta à população para a fraude e deu início aos questionamentos populares.
No último 31 de outubro, Luis Almagro, Secretário Geral da OEA, chegou ao país para instalar um comitiva de 21 especialistas, alguns entre eles vinculados ao caso da legitimação anterior da eleição na Venezuela. A primeira coisa que fez Almagro foi desestimular a recomendação de um segundo turno, feita pelos demais observadores internacionais, quando detectaram as primeiras irregularidades e começaram os protestos.
A segunda coisa que fez Almagro foi – sem o propor – refrescar a memória dos bolivianos: em maio de 2018 ele apoiou a reeleição de Evo Morales, alegando que seria um “ato discriminatório” impedir sua quarta candidatura consecutiva. Somente em abril deste ano se retratou, quando sentiu o peso da opinião pública nacional e internacional. Almagro, a OEA e o TSE gozam da mesma decadência de credibilidade na Bolívia.
Nesse mesmo cenário, Evo Morales luta para reprimir os persistentes protestos populares em todo o país, e mostra-se impermeável frente aos líderes de oposição, que se juntam aos que buscam sua renúncia, apoiados no crescente descontentamento entre os manifestantes (Comitê Cívicos, organizações sociais, políticos oposicionistas não presidenciais) e aqueles que querem apenas ratificar o processo eleitoral (entre eles, Carlos Mesa, candidato presidencial pelo CC e o prefeito de La Paz, Luis Revilla, processado e perseguido judicialmente nos últimos anos).
Hoje, 6 de novembro, cumpre-se duas semanas de resistência “pacífica”. Nos últimos dias, o líder cívico de Santa Cruz de la Sierra, Luis Camacho, a figura de um “herói valente” encarnada num advogado e empresário, surgida pouco antes das eleições, deu um ultimatum a Evo Morales, para que este apresente sua renúncia em um prazo de 48 horas. O prazo se encerrou na segunda-feira, dia 4/11, e Evo se negou a deixar a cadeira presidencial.
Camacho anunciou a radicalização das paralisações, com fechamento de fronteiras e tomada de instituições públicas e bancárias ainda em operação; e indicou que junto com a população levaria uma carta de renúncia, preparada para ser assinada no Palácio do Governo.
Desde o início dos protestos, de maneira estratégica, o governo de Morales se organiza, comprando e mobilizando seus aliados. Na última terça-feira, concentrou em La Paz 5 mil produtores de coca, trazidos numa caravana de ônibus de Chapare, com o objetivo de reforçar a vigília e proteção da sede presidencial, bem como conter violentamente os manifestantes de La Paz, impedindo a anunciada entrega da carta de renúncia encabeçada por Camacho.
Camacho não conseguiu sair do aeroporto de El Alto. A noite de terça-feira se concluiu com enfrentamentos violentos entre os grupos mobilizados do MAS, em estado de ebriedade, e manifestantes em defesa do voto popular, que marcharam indignados devido ao que aconteceu com Camacho. Muitas cópias da carta de renúncia foram distribuídas pelas ruas.
A polícia, que estava relativamente do lado do povo, atuou em defesa dos grupos masistas, lançou gás em estudantes, médicos e trabalhadores, e usou caminhões para os conter. Evo Morales comprou parte do corpo militar com o que se denominou nos meios de comunicação de “bônus de lealdade”, um depósito de 3 mil bolivianos (moeda local), evitando que os efetivos militares se rebelassem contra o governo e os abastecendo de alimento nos dias de conflito.
Hoje, quarta-feira, 6 de novembro, durante o dia, circularam notícias nos meios de comunicação, redes sociais e whatsapp, sobre a nova tentativa de Camacho de chegar em La Paz, com respaldo de manifestantes, e o compromisso do governo de não restringir a liberdade do líder num aeroporto internacional. Enquanto escrevo estas linhas, paro para ver vídeos e mensagens:
Vídeo: em Cochabamba capturaram militantes do MAS que mataram a pauladas um manifestante, deixaram que fossem atendidos por médicos (porque estavam feridos) e os encaminharam para a polícia. Calculo que deve haver 3 mortos, senão mais, e que as cifras de 140 feridos no último relatório oficial estão subestimadas.
Vídeo: policiais antimotins, UTOP, de Oruro, se rebelaram contra sua própria instituição e não vão reprimir o povo, sob risco de serem presos, como sucedeu com seus companheiros de Cochabamba. É genuíno? Fazem-no porque os manifestantes os ultrapassam em número? Circulam também vídeos de tomadas de instituições por parte dos manifestantes.
Mensagem: acaba de me escrever uma amiga de La Paz; diz que manifestar-se está cada vez mais inseguro… Masistas bêbados, policiais antimotins, uso de dinamites… Ela sente que vive num mundo surreal; o cerco do campo contra as cidades foi substituído por uma invasão violenta; enquanto os olhos estão voltados a Camacho, a população sangra nas ruas. Nossos líderes de oposição estão fazendo alianças contundentes com os sindicatos, ou só ocorre o que é oficial?
Está no ar uma sensação de que ocorrem muitas coisas, mas nada que seja determinante. A resistência popular não está sendo conduzida a nenhum lado, e em meio ao impasse político burguês surgem a violência e o esgotamento. Não obstante, também é iminente uma possível insurreição social. Mas como e para onde, se os caminhos não estão claros a ninguém?
Da minha janela, em Santa Cruz, escuto um grupo de mulheres orando pela Bolívia, uma voz forte num megafone e um coral que lhe apoia. Estão recorrendo a todas as instâncias para tentar recuperar a ilusão de uma democracia… mas isso também se esgotará.