Por Julius*
No dia 22/03, dia de paralisação nacional contra a Reforma da Previdência, ainda estávamos no carro, a caminho de São José dos Campos, quando recebemos a notícia: três camaradas nossos haviam sido atacados por bate-paus da CUT no ABC.
Quando ouvimos a notícia, um arrepio gelado subiu à espinha. Isso pode parecer estranho para quem nutre ilusões de que o PT é um partido de esquerda, mas certamente não para quem conhece as práticas da CUT de longa data. Nossa organização política não é estranha às ameaças e agressões dos bate-paus que protegem a burocracia sindical, pelo contrário. Cedo ou tarde, em uma distribuição de O Corneta, nossos militantes se depararão com essa força, sempre a postos para bloquear a luta da classe operária por meio das ameaças, da coação, da delação ao patrão, e da violência física.
Contudo, em São Bernardo, a situação pode ganhar contornos mais graves. Ainda residem na memória os dias em que camaradas foram ameaçados pelos gangsters dessa mesma burocracia nos portões de uma fábrica com armas em punho. Assim, ficamos um pouco mais tranquilos quando recebemos a ligação dos agredidos relatando o que aconteceu. Socos, cotoveladas, joelhadas, roubo de jornais e do material de panfletagem contra a Reforma e o governo Bolsonaro doem, mas os camaradas são insubstituíveis.
Chegamos a São José dos Campos, enfim, um pouco abalados, mas mais calmos. Estacionamos o carro e nos dirigimos ao local de concentração marcado para o ato contra a Reforma da Previdência na cidade. A concentração era ainda pequena, mas aos poucos os participantes foram chegando, e não foi difícil antever qual seria o caráter da atividade.
Muitos sindicatos de São José e região estavam presentes: Sindminérios, Sindserv, Admap, Sinsprev, Sindicato dos Químicos, Sindicato dos Bancários, Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Farmacêuticos, além do próprio Sindicato dos Metalúrgicos, que parecia ser o principal responsável pela direção do ato. Fizeram questão de demarcar que estavam presentes como centrais a CUT, a CSP-Conlutas e a Intersindical Vermelha. De partidos e agrupamentos, além de nós, havia militantes do PT, do PSTU, de algumas correntes do PSOL, incluindo da Resistência (formada a partir de uma dissidência à direita do próprio PSTU, que buscava empurrar o partido para posições de submissão ao PT no último período), da Rede Emancipa, e da LSOC, um grupo anarcossindicalista.
Alguns dos sindicatos e a Ocupação Quilombo Coração Valente conseguiram levar pessoas do que o vocabulário vicioso e ensimesmado da política chama de base, mas o grosso do ato era constituído de sindicalistas e militantes. O que, embora demonstre o quanto a luta contra a reforma da Previdência precisa urgentemente se desgarrar de seus grilhões e avançar, não seria necessariamente um problema. Estavam presentes companheiros de lutas passadas, que se solidarizariam com as agressões sofridas, além de militantes experientes, de quem nossos jovens camaradas poderiam ouvir histórias e, quem sabe, aprender alguma coisa. De fato, as coisas começaram assim mesmo. Encontrei uma militante que havia conhecido na minha época de movimento estudantil, que demonstrou simpatia e solidariedade quando soube dos ataques que sofremos no ABC, e um quadro muito experiente do movimento sindical brasileiro, que nos recebeu muito bem, e se pôs a conversar longamente sobre sua experiência de luta conosco.
Logo ficou demonstrado que esse tom não era uníssono em nossa recepção pelo PSTU. Pelo microfone, as entidades e organizações presentes eram instadas a fazerem suas falas. Fiquei encarregado de inscrever nossa pequena organização, e me dirigi ao sindicalista responsável por ela, um quadro conhecido em São José, que já ocupou postos importantes nas últimas gestões do Sindicato dos Metalúrgicos. Pedi que me inscrevesse.
Ele me olhou de cima abaixo, e então desviou o olhar com desdém, como se uma mosca o atrapalhasse em uma atividade cotidiana. Senti o sangue ferver. Por um segundo, pensei em ceder à tentação de escrever uma denúncia para Secretarias e Setoriais de Negros & Negras, envolver o Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe, e tudo o mais em que eu pudesse me apoiar para criar um ataque verdadeiramente forte e disruptivo. Respiro fundo. Sei que a situação é mais complexa, e reduzir essa complexidade a um comportamento supostamente racista de um dirigente sindical não ilumina em nada o que está ocorrendo.
Enquanto respiro fundo, o candidato ao governo do estado pelo PSTU vem e se inscreve. Avalio que ele não testemunhou o que se passou, nem testemunhará minha inscrição. Mas, a mim e aos meus, serve como ponto de referência de quando será nossa fala. Chamo o sindicalista pelo apelido, e insisto para que ele me inscreva.
Saio da área onde as pessoas se inscrevem e volto à pequena multidão. Distribuo alguns panfletos contados. Minhas camaradas conversam com o simpático militante que nos recebeu. As falas vão se seguindo. CUT, PT, sindicatos, correntes do PSOL se revezam no microfone. Logo, o antigo candidato ao governo do estado é chamado. Preparo-me, pois sei que sou o próximo, vi o momento em que meu nome foi colocado na lista. Ele termina sua fala. O próximo nome chamado é, se a memória não me falha agora, um experiente militante do PSOL.
Assusto-me. Tento pensar em alguma justificativa. Talvez a opção tenha sido por não me deixar entre dois nomes de peso. Talvez algum deles tenha outros compromissos de militância e pediu a cortesia de ter sua fala adiantada. Mas os nomes vão sendo chamados a tomar sua vez no microfone, e o meu não vem.
O ato sai do ponto de concentração e começa a caminhar pelas ruas do centro de São José dos Campos. Encontro um outro militante do sindicato, por quem nutro simpatia e a quem até hoje devo uma camiseta. Trocamos informes de como está o dia. Ele me conta sobre as assembleias nas fábricas da região, das paralisações, e das possibilidades de greve estourarem ou não no período próximo. Divido o relato dos camaradas agredidos em São Bernardo do Campo. Ele vai se afastando, sem se despedir, como se não quisesse ouvir. Compreendo: ali, sou um leproso. A informação que trago é por demais incômoda para a forma como se formou a aliança entre as centrais sindicais presentes.
Enquanto isso, uma de minhas camaradas tenta localizar e conversar com o militante que nos recebeu bem. Ele está envolvido com as atividades do ato, mas ela finalmente consegue encontrá-lo e iniciar uma conversa. Ele vai até a organização do ato, apenas para receber uma negativa.
Terminamos de distribuir nossos materiais, agradecemos ao companheiro que nos recebeu bem, e notamos que ele está um pouco constrangido. Lamentamos entre nós que mesmo um militante de longa data se encontre de mãos tão amarradas. Se quisermos derrotar a Reforma da Previdência, teremos que fazer mais do que isso, e liberar as forças de quem realmente quer lutar. Voltamos para o carro.
Há um longo caminho nos esperando.
* Julius é um pseudônimo. Os presentes na situação relatada e o corpo de militantes facilmente me reconhecerão, bem como as figuras aludidas neste relato. Se escondo meu nome, é porque preciso me proteger da sanha de meus contratantes.