Transição Socialista

Relato: instabilidade na Bolívia após eleição


Publicamos abaixo relato de companheiro boliviano sobre o resultado das eleições presidenciais do último domingo.

por Pablo Paniagua, diretamente de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia

Na terça, 22/10, a Bolívia acordou com um misto de desânimo e alerta ante a tentativa de fraude eleitoral após o TSE [Tribunal Supremo Eleitoral] comunicar de maneira repentina uma aparente vitória de Evo Morales para o quarto mandado consecutivo. Até segunda, 21, a população esperava a confirmação da diferença de votos que faria possível um histórico segundo turno entre Evo Morales e Carlos Mesa, candidato de oposição pela CC (Comunidade Cidadana), como prenunciavam os resultados preliminares do Tribunal no domingo de eleição, antes deste interromper a sua transmissão da “contagem rápida e segura” de votos por 24 horas, fato que ativou imediatamente vigílias e protestos em diferentes cidades de grupos de militantes políticos.   

Até o domingo às 19:40, hora local, Morales tinha obtido 45,28% seguido por Mesa com 38,16%, aos 84% da apuração. Sem nenhum deles ter obtido a maioria de votos (51%) ou diferença maior que 10% entre eles, haveria segundo turno.  Não obstante, retomada a transmissão da contagem do TSE, às 19:40 da segunda-feira, as cifras ampliaram a vantagem de Evo em 10,14% descartando um segundo turno. Morales atingia 46,86% seguido por Mesa com 36,72%, aos 95% da contagem das atas de votações. 

A terça-feira foi tensa, com a reivindicação oficial de se manter o respeito pelo voto popular de maneira pacífica. As lideranças dos Comités Cívicos, conformada principalmente pela elite local, dos nove departamentos [equivalentes aos estados federativos, no Brasil] do país se reuniram e decretaram greve nacional por tempo indeterminado a partir das 00:00 desta quarta-feira; eles estão apoiados, num primeiro momento, pelos setores empresarial, saúde, transportes, e movimentos universitários.

As mobilizações que começaram no domingo à noite se intensificaram durante a tarde de terça-feira, mas ainda não se tornaram massivas. Isso pode estar vinculado ao fato de o TSE não ter oficializado a contagem final dos votos. Escrevo este texto às 23:32 de terça-feira na Bolívia e a contagem de votos oficias do TSE, aos 95,63%, indica novamente um segundo turno, com vantagem inferior a 10% entre Evo e o Mesa: 46,4% frente a 37,07%, respectivamente. Para os dados exatos da contagem conferir o link: https://trep.oep.org.bo

A confirmação da vitória de Morales neste primeiro turno, e inclusive em um segundo, pode virar o estopim da “insurreição cidadã”, conforme os pronunciamentos dos diversos Cabildos cidadãos prévios às eleições no país. (Um Cabildo é um pronunciamento que define linhas gerais sobre políticas e assuntos de interesse coletivo, convocados por comités cívicos e outras lideranças).

É importante não perder de foco que o processo eleitoral na Bolívia se desenvolve num contexto muito delicado, marcado pela crise de credibilidade do TSE, o qual habilitou a atual chapa presidencial para se candidatar novamente nestas eleições alegando que é um direito humano que está acima da CPE [constituição]. Isso inclusive deslegitimou o resultado da consulta popular do Referendum de 21-F de 2016, respaldado pelo governo de Morales, no qual os bolivianos votaram contra a modificação do Art. 168 da Constituição (que estipula que só pode existir uma reeleição presidencial). Ou seja: 51,3% dos bolivianos disseram “Não” em referendum de 2016; disseram ser contra a possibilidade de Evo concorrer a um novo (quarto) mandato.

Há por tudo isso uma séria crise de representatividade política. Os candidatos destes comícios não tinham propostas de governos que tenham cativado os votantes, e em muitos casos há desconfiança em relação à sua vinculação com grupos no poder e a estratégia de fragmentação do voto de oposição por parte do governo.

Carlos Mesa é o candidato do voto útil para evitar que Evo Morales se consagre como governante autoritário da Bolívia, como Chávez e agora Maduro na Venezuela. Mesa foi presidente do país em suplência ao então presidente Gonzalo Sanchez de Lozada, do MNR (Movimiento Nacional Revolucionario), que renunciou ao poder pelos conflitos e mortos do “octubre negro” no 2003. Ele governou o país por 20 meses até sua renúncia por falta de apoio da Assembleia (Congresso Nacional) e pelos protestos dos movimentos sociais influenciados por Morales como dirigente sindical. A demanda marítima boliviana presentada contra o Chile em Haia, em 2013, fez com que estes rivais políticos se aproximassem; Mesa virou porta-voz da causa marítima. Dias depois da decisão do tribunal internacional, com negativa para a Bolívia, Mesa anunciou a sua candidatura em outubro de 2018.

De fato, os bolivianos têm votado e protestado para evitar a instauração de uma eventual ditadura. Mas eles são conscientes de que mesmo votando na oposição não haverá mudança significativa nas condições de vida da maioria.