São Paulo, 18/03, Av. Paulista, uma massa popular gritava e aplaudia efusivamente um velho homem-cobra, líder “operário” que jurava ter realizado os mais incríveis feitos (como elevar os “pobres” na escala social e, ao mesmo tempo, enriquecer os mega-fazendeiros, empresários e banqueiros como nunca antes na história deste país). A cena tinha sua magia, até certa alegria, um pouco de desvario e delírio, como num sonho…
Todavia, esfregando os olhos, percebia-se algo de errado no reino da jararaca. Golpe? Democracia? Igualdade social? Apesar de juramentar suas proezas, as frases do homem não resistiam (nem resistem) a qualquer análise minimamente séria. Apesar da mágica das palavras, a realidade lhe impõe o inverso. Se quebrada a mística por qualquer inferência externa — como por um grito de “vergonha nacional! Ladrão!” —, poder-se-ia perceber facilmente que o tal homem era na verdade um charlatão. O rei estava e está nu.
Tendo isso — o óbvio — em vista, cabe perguntar: por que certas pessoas insistem em lhe emprestar os ouvidos? Há quanto tempo — décadas — esses bons filhos, apesar de tão destratados, retornam à casa? Quem são tais pessoas sempre predispostas à auto-ilusão? Como explicar esse estranho fenômeno social?
A primeira resposta é também óbvia: são os membros da burocracia sindical, dos partidos vinculados ao PT, a claque; todo um corpo político e social dependente do Estado e bem pago. Mas essa resposta não basta; não explica tudo. Há também a massa miserável comprada, infelizmente, que enche boa parte do quadro. Mas ela também não explica tudo. A verdade é que, se comparado com os maiores atos de apoio ao PT no ano passado (cerca de 70 mil pessoas), este, do dia 18/03, pareceu ter o dobro do tamanho. Na hora decisiva todo um setor social correu para baixo das asas de Lula (e levou consigo grande parte da chamada “oposição de esquerda” ao governo). Por que isso ocorreu?
A única explicação, parece-nos, é a seguinte: não só a burocracia vê suas condições de vida como vinculadas ao PT, mas também um setor social mais amplo, não diretamente dependente do Estado, formado por pessoas que construíram suas vidas, carreiras, reconhecimento e prestígio nas últimas décadas de estabilidade política e econômica. Queira-se ou não, tenha-se consciência disso ou não, tais décadas foram estáveis graças ao papel conciliador e traidor do PT na luta de classes brasileira. No seio da estabilidade proporcionada pelo PT à ordem do capital floresceu a pequena-burguesia brasileira, um segmento social pequeno mas não desprezível, pouco estável política e economicamente (pois localizado entre a burguesia e operariado, daí suas oscilações, histeria e confusão).
A pequena-burguesia é formada de proletários melhor remunerados (profissionais liberais, autônomos), pequenos empresários ou pessoas que vivem de renda. Dada a sua condição objetiva — de pessoas não centralizadas pelo processo produtivo, não forçadas a pensar em si mesmas como parte de uma categoria produtiva —, seus membros se veem em geral como autônomos e livres. Essa característica, o particularismo, ela compartilha com a burguesia, o que a torna propriamente a pequena-burguesia.
Assim como o “Lulinha”, a pequena-burguesia é adepta do “paz e amor”, ou seja, da conciliação de classes (justamente por estar entre as duas grandes classes sociais). O que ela mais odeia é a luta de classes, pois acentua sua instabilidade e põe em risco seus projetos pessoais e planos pré-estabelecidos. Ela gostaria que o mundo dos conflitos parasse, para que pudesse seguir em paz em suas pesquisas, suas descobertas e inovações técnicas ou artísticas, em suas salinhas, escritórios, laboratórios ou ateliês. Sua teoria social é uma colcha de retalhos de vários sistemas de pensamento: se nutre do marxismo, da dialética e de tradições revolucionárias do proletariado, mas também do idealismo burguês e da lógica formal. Esse ecletismo — que ela sempre pensa dar base a um novo sistema ou “anti-sistema” científico — expressa-se politicamente ou no utopismo ou no reformismo. Marx e Engels (nas críticas a Proudhon ou a Bakunin, na Crítica ao Programa de Gotha, nas cartas-circulares a Bebel, Liebknecht e Bracke e em vários outros textos) mostraram como esse tipo de teoria corresponde exatamente a esse setor social.
O PT representa e sempre representou essa visão de mundo reformista e pequeno-burguesa. Ele, por si (ou seja, apesar dos sindicatos), nunca foi um partido operário, com programa operário, mas majoritariamente pequeno-burguês e com programa pequeno-burguês. Como todo bom partido reformista e pequeno-burguês, sua função é tirar a centralidade do que é central; apagar a contradição fundamental existente na sociedade capitalista — a extração de mais-valia dos operários pelos capitalistas — e sobrevalorizar o que não deve ser sobrevalorizado. A fórmula é sempre a mesma: o problema central é abstraído em nome de problemas secundários. É como se a questão da mais-valia, o surgimento do capital, já estivesse resolvida e coubesse então reformar as condições de vida, ampliar direitos, melhorar aspectos sócio-culturais, acabar com opressões e o discurso de ódio, o “fascismo” do regime democrático-burguês, a alienação da população pela mídia, a crise na “pedagogia”, e tantos outros inimigos (dezenas ou centenas!) que ela descobre cotidianamente nas “teorias” que ela produz prolixamente.
Entretanto, a triste verdade é que nenhum desses problemas pode ser efetivamente resolvido sem se resolver antes o problema da exploração pelo capital, ou seja, sem se realizar uma revolução econômica e social de grandes proporções. Na verdade, quanto mais se combate tais problemas sem se resolver antes o da mais-valia, mais esses problemas crescem. A pequena-burguesia é cúmplice do que diz combater. Por isso seus partidos, quando crescem, encobrem com posições pequeno-burguesas a submissão vergonhosa ao grande capital.
Eis então que em determinado momento, insustentável, de crise econômica e social, irrompe na cena a maioria da população trabalhadora. Ela traz consigo a comprovação de que a mais-valia é o elemento central da sociedade, pois gasta a maior parte da sua vida preocupada com sua subsistência. Ela é por isso impaciente, bruta e não tem tempo para requinte cultural ou no modo de vida. Ela traz consigo os males engendrados pela barbárie capitalista. Ao entrar em cena e impor os problemas reais e centrais, ela afugenta todos os fantasmas e destrói os moinhos de vento que a pequena-burguesia pensa combater cotidianamente. O mundo da pequena-burguesia é suspenso da noite para o dia. Bate-lhe um desespero no peito; ela olha para o amanhã e não vê nada. É então que ela corre para os mantenedores da ordem e se torna ela própria conservadora. É o que ocorre hoje e ocorreu neste dia 18/03.
A pequena-burguesia deveria perceber que ela não guarda em si o futuro. Como ela sempre tem algo a perder, ela teme o futuro, e isso impede sua capacidade produtiva e criativa. Sua força, nesses marcos, é sempre uma impotente força individual. A classe trabalhadora, pelo contrário, não tem nada a perder (“a não ser suas correntes”), mas um futuro a ganhar. Por isso os mais importantes descobrimentos científicos e culturais se concentram nos períodos de crise ou convulsão social, quando a classe trabalhadora entra em cena e desata uma força social criadora, que inclusive envolve a pequena-burguesia e aponta para o futuro. No Brasil tentou-se algo assim ao final dos anos 1970 e início de 1980, mas o PT bloqueou aquela geração e abortou o que poderia ter surgido de vanguarda revolucionária e cultural. Ainda hoje vivemos presos a uma época morta, com velhos em tantos âmbitos da política e da vida cultural falando e falando, embora há décadas não tenham mais o que dizer.
A questão que resta a essa pequena-burguesia que hoje se alia ao PT é a seguinte: Quem tem medo do futuro? Até quando ajudarão a perpetuar esta situação de mediocridade e caminho para a barbárie?