Transição Socialista

Acerto de contas

Na quarta-feira passada, dia 10 de dezembro, a Comissão Nacional da Verdade apresentou o relatório final sobre os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante os anos da ditadura militar (1964-1985). Após quase três anos de trabalhos, o relatório traz, como grande novidade, a revisão da lista de mortos e desaparecidos, vítimas da perseguição do regime a seus opositores, incluindo 72 nomes, elevando para 434, número do último balanço oficial realizado há sete anos; traz também a ampliação dos nomes a serem responsabilizados e condenados, 377, dentre os quais 196 são ainda vivos.

Para a comissão, os torturadores e assassinos, que colaboraram com a Ditadura, não podem ser beneficiados pela Lei da Anistia, pois cometeram crimes contra a humanidade, de caráter permanente, interpretação que segue resolução anterior da Organização dos Estados Americanos, segundo a qual a Lei da Anistia não deve ser aplicada nestes casos. No entanto, a investigação e julgamento só podem ocorrer caso a Lei seja revista, o que depende de avaliação do Supremo Tribunal Federal, o qual já se posicionou contrário em 2010.

A presidente Dilma Roussef foi presa e torturada pelo Regime Militar, diz-se que alguns de seus hábitos singulares, como o de dormir de sapatos, são reminiscências desse período. No último dia 10, ela protagonizou uma cena rara, chorou enquanto discursava. “Afirmei”, disse ela em 2012, ao empossar a comissão, “que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e, sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam… [chora] familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo, e sempre, a cada dia”, relatou o jornal Folha de S. Paulo.

A presidente tem razão, o golpe militar deve ser lembrado. No entanto, assim como a OEA criticou a posição do governo brasileiro à época do primeiro relatório sobre a tortura, mortes e desaparecimentos (2010), a posição que o governo Dilma sinaliza a partir deste relatório parece colocar o Brasil novamente na retaguarda da América Latina, ratificando uma condescendência com o Regime digna de quem seria aliado dele. Isto não apenas pela pouco provável revisão da Lei de Anistia, fato absolutamente distinto de outros países como Argentina, Uruguai e até mesmo Chile, mas sobretudo pela posição da presidente sobre o tema. Após se emocionar e reivindicar a verdade, Dilma foi direta: “A verdade não significa revanchismo. A verdade não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas.”

Ao rechaçar a “revanche” ou um possível “acerto de contas”, Dilma joga uma pá de cal em qualquer punição aos torturadores e assassinos do regime, à revisão da Lei da Anistia. Mas o que quer dizer politicamente tal posição? Sem dúvida, duas interpretações são possíveis. A primeira é a de que, afastados do poder, os militares já teriam tido a sua devida condenação, e que as reparações necessárias teriam tido o seu momento e não são mais necessárias. Não há imagem mais simbólica de tal discurso do que a própria ex-guerrilheira empossada presidente, figura tão poderosa que foi o grande recurso de mídia durante a campanha por sua reeleição.

A segunda é a de que a presidente, hoje no poder, não tem mais nenhum vínculo com aquela jovem que viria a ser a torturada e presa pelo Regime. “Nós não queríamos esta democracia, nosso objetivo era (claro, hoje eu não concordo com isso) derrubar uma ditadura para colocar outra no lugar”. Quem diz isso, é um dirigente de uma portentosa instituição financeira, que na época era guerrilheiro, como a presidente. A “outra” ditadura a que se refere, é a ditadura do proletariado. Evidente que, por sua posição atual no alto da pirâmide social, ele joga com as palavras, equiparando os dois regimes, pois a ditadura do proletariado nada mais é, para desespero do banqueiro, do que a democracia da maioria.

Isto, de modo algum, invalida suas palavras: muitos daqueles que lutavam contra o Regime Militar não caíram por esta democracia burguesa, mas pelo socialismo, assim como, os militares não deram o golpe contra o presidente João Goulart, mas contra a ameaça de uma revolução social que pairava sobre toda a América Latina. Goulart representava difusamente esta ameaça, que aparecia muito mais claramente nos levantes e protestos populares que seu governo já não conseguia mais dirigir. O golpe e, sobretudo, o Ato Institucional número 5, o AI-5, nada mais foram do que uma resposta da classe dominante, apoiada pelo capital internacional, contra esse estado de coisas.

O desastre que o golpe representou talvez seja irreparável. Quando em 1978 e 80 eclodiram as grandes greves do ABC, uma avenida se abriu, mas seu potencial revolucionário foi conduzido para um pacto, sem revanchismo, nem acerto de contas. O resultado é que embora figuras que antes, como Dilma, lutaram contra a Ditadura estejam em posições relevantes no cenário nacional, estas figuras convivem com as mesmas velhas e putrefatas estruturas político- econômicas desenvolvidas durante a Ditadura Militar. São os mesmos políticos que estão no poder, como a família Sarney e a família Lobão, Collor de Mello, Renan Calheiros e Maluf; seus filhotes estão por toda parte, como os Bolsonaros (do PP partido da base aliada de Dilma), Russomano e Eduardo Cunha.

Na instância econômica, são as mesmas empresas que apoiaram o Regime, financiaram a tortura e a perseguição aos militantes revolucionários e à classe operária que fazem girar a roda da corrupção junto ao Estado brasileiro, alimentando as campanhas durante as eleições para depois saquear e dilapidar o Estado, as estatais e devolver aos trabalhadores mais e mais exploração, privando a juventude de um futuro digno à altura da potencialidade deste país.

É tão turva a realidade atual, é tão distante da verdade, que personagens como Delfim Neto, o grande ministro da economia durante os anos mais sombrios (1974-76), pode transitar no poder, chegando, durante o governo Lula, a ser um dos seus mais próximos consultores.

Delfim, como se sabe, além de chefiar o “milagre econômico”, assinou o AI-5 e notabilizou-se, mais tarde, como arrecadador de fundos para a chamada OBAN, Operação Bandeirantes, o centro de tortura do Regime.

No início deste ano, Delfim foi, como Dilma, taxativo, não deixando espaço para dúvidas e declarou: “não me arrependo. Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria” – sobre ter sido signatário do AI-5. Bem se vê que, assim, diferente de Dilma, Delfim não recusa seu passado e afirma para quem quiser ouvir que não mudou de lado. Suas palavras, confirmam no entanto que Dilma, ao recusar o revanchismo e o acerto de contas, o faz porque ela sim, está do outro lado.